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Advocacia corporativa e as prerrogativas profissionais

Em que pese o avanço normativo, é preciso, na realidade, mudar a visão da advocacia como um todo. Em sua ampla maioria, são profissionais preparados, com sólida formação acadêmica e/ou prática, que têm a função de defender os legítimos interesses de um cidadão, um sujeito de direitos.

sexta-feira, 3 de setembro de 2021

Atualizado às 09:47

(Imagem: Arte Migalhas)

Conforme noticiado, em 24 de agosto do corrente ano, o Conselho Pleno da OAB Nacional aprovou proposição normativa atinente às prerrogativas dos advogados que atuam no âmbito corporativo, exercendo, por exemplo, cargos de gerência ou diretoria jurídicas.

A proposição, a princípio, levando em consideração a clareza do artigo 1º, inciso II, do Estatuto da Advocacia e da OAB (lei 8.906/1994),1 pode parecer despicienda.

Infelizmente, não é.

Nos dias atuais, consoante abordado no plano doutrinário, cresce o movimento de criminalização da advocacia.

Com efeito, advogados contenciosos, não raras vezes, são confundidos com seus constituintes. Ou melhor, são tratados como partícipes dos supostos ilícitos atribuídos a um jurisdicionado. Em megaprocessos, de grande apelo midiático, a criminalização da advocacia, segundo noticiado, serve como relevante elemento de pressão acusatória.2 Como consequência, os defensores não são reconhecidos como profissionais que buscam, independentemente do cliente,3 a garantia dos primados de um Estado Democrático de Direito, o que, hodiernamente, parece letra morta para muitos.

Por outro lado, advogados privados e públicos são investigados, e até mesmo denunciados, pela mera elaboração de pareceres técnicos (alguns com caráter meramente opinativo). Além disso, quando auxiliam, por exemplo, planejamentos tributários, de forma lícita (elisão fiscal), são frequentemente investigados como autores de sonegação fiscal, evasão de divisas, lavagem de capitais, entre outros delitos.

De fato, profissionais que atuam no âmbito consultivo, quando vítimas de uma sanha persecutória, são, equivocadamente, destinatários de um tratamento jurídico diferenciado.4

Diante desse cenário, ignora-se que o advogado, nos termos do artigo 133 da Constituição Federal, é "indispensável à administração da justiça".

Ignora-se, outrossim, por vezes de maneira conveniente, os limites da responsabilidade penal previstos no ordenamento jurídico pátrio (pessoal, subjetiva e personalíssima).5

Ignora-se, por fim, a importância dos advogados consultivos, corporativos e que, de alguma forma, contribuem para que pessoas físicas ou jurídicas (públicas ou privadas) exerçam seus respectivos objetivos sem incorrerem em qualquer ilicitude, ainda que de forma involuntária, o que, a par da complexidade de diversos textos normativos, é absolutamente normal.

Ora, não é possível criminalizar, sem lastro empírico idôneo, a advocacia corporativa, sob pena, inclusive, de desestimular a atividade empresarial, responsável, como é de conhecimento cediço, pela criação de postos de trabalho e pelo pagamento de tributos ao Estado. Em uma época de pandemia sanitária, cujo impacto na economia brasileira é preocupante, deve-se, na realidade, incitar sua retomada.

Nessa ordem de convicções, tem-se como extremamente pertinente a aprovação de provimento visando reforçar os direitos e as prerrogativas da advocacia corporativa.6

É de se ressaltar que, atualmente, há, especialmente em grandes empresas, advogados criminalistas trabalhando como funcionários, a merecer especial proteção quanto ao sigilo das suas comunicações.

Além disso, quando empresas terceirizam a contratação de advogados criminalistas, a interface com eles costuma ser feita pelo Advogado empregado (in-house counsel), a exigir a sobredita especial proteção

Em que pese o avanço normativo, é preciso, na realidade, mudar a visão da advocacia como um todo. Em sua ampla maioria, são profissionais preparados, com sólida formação acadêmica e/ou prática, que têm a função de defender os legítimos interesses de um cidadão, um sujeito de direitos. Em diversas ocasiões, convivem com verdadeiros dramas humanos (uma prisão injusta, um divórcio litigioso, uma dissolução societária sem consenso, entre outras situações igualmente traumáticas).7 É preciso reconhecer, definitivamente, sua importância em uma sociedade pretensamente democrática.

Por todo o exposto, reforçar os direitos e as prerrogativas da advocacia é, na nossa visão, salutar, sendo oportuno relembrar o disposto no artigo 43 da lei 13.869/2019 (Abuso de Autoridade),8 cujo bem jurídico tutelado é justamente a prerrogativa da advocacia.9

_______

1 "Art. 1º São atividades privativas de advocacia: (...)

II - as atividades de consultoria, assessoria e direção jurídicas."

2 PRATES, Fernanda; BOTTINO, Thiago. Megaprocessos e o exercício do direito de defesa: uma abordagem empírica. Revista Brasileira de Ciências Criminais, vol. 162/2019. p. 145-170. Versão online.

3 Lembrando a célebre orientação de Rui Barbosa: "Recuar ante a objeção de que o acusado é "indigno de defesa" era o que não poderia fazer o meu douto colega sem ignorar as leis do seu ofício ou traí-las. Tratando-se de um acusado em matéria criminal, não há causa em absoluto indigna de defesa. Ainda quando o crime seja de todos o mais nefando, resta verificar a prova; e ainda quando a prova inicial seja decisiva, falta não só apurá-la no cadinho dos debates judiciais, senão também vigiar pela regularidade estrita do processo nas suas mínimas formas. Cada uma delas constitui uma garantia, maior ou menor, da liquidação da verdade, cujo interesse em todas se deve acatar rigorosamente." (BARBOSA, Rui. O Dever do Advogado. São Paulo: Editora Hunter Books, 2016. Págs. 36/37)

4 Cabe advertir, no entanto, que não é nossa pretensão acobertar práticas criminosas cometidas no exercício (indevido) da advocacia. Como em qualquer segmento (público ou privado), há condutas desviantes que merecem pronta e justa punição.

5 Ressalte-se que a doutrina moderna vem repudiando a tradicional concepção de cumplicidade, restrita à ideia de causação dolosa de um fato injusto principal. Hoje se defende que o tipo objetivo da cumplicidade deve ser enriquecido pelos aportes conceituais da teoria da imputação objetiva de Claus Roxin. Logo, são objetivamente atípicas - não caracterizando participação punível - as chamadas ações neutras ou cotidianas, tais como aquelas praticadas, a princípio, por advogados. Cuida-se de ações praticadas no decorrer de atividades profissionais diárias e juridicamente permitidas, com finalidades próprias e independentes da vontade do autor principal do fato. Sobre o tema, ver: GRECO, Luís. Cumplicidade através de ações neutras: A imputação objetiva na participação. Rio de Janeiro: Renovar, 2004.

6 Disponível aqui. Acesso em: 31/08/2021.

7 Realmente, todos, indistintamente, em algum momento na vida, podem precisar de um advogado, de uma orientação jurídica, haja vista, por exemplo, as seguintes situações: acidentes de trânsito, autos de infração, reclamações trabalhistas etc.

8 "A lei 8.906, de 4 de julho de 1994, passa a vigorar acrescida do seguinte art. 7º-B: 'Art. 7º-B  Constitui crime violar direito ou prerrogativa de advogado previstos nos incisos II, III, IV e V do caput do art. 7º desta lei: Pena - detenção, de 3 (três) meses a 1 (um) ano, e multa.'"

9 "Ser advogado não é fácil, a luta pelo Estado de Direito não é fácil. Contudo, é fácil identificar que a derrocada de um Estado democrático de Direito pode ter início na violação sistemática das prerrogativas dos advogados." (STRECK, Lenio Luiz; LORENZONI, Pietro Cardia. Comentários à nova lei do abuso de autoridade: artigo por artigo. 1ª ed. São Paulo: Tirant lo Blanch, 2020. Pág. 199)

Flávio Mirza

Flávio Mirza

Pós-Doutor em Democracia e Direitos Humanos pela Universidade de Coimbra. Doutor e Mestre em Direito pela UGF. Professor da UERJ e da UCP. Sócio de Mirza & Malan Advogados.

Diogo Malan

Diogo Malan

Pós-doutor em Democracia e Direitos Humanos pela Universidade de Coimbra. Doutor em Direito Processual Penal pela USP. Mestre em Direito pela UCAM. Professor da UERJ e da UFRJ. Sócio de Mirza & Malan Advogados.

André Mirza

André Mirza

Mestre em Direito Constitucional pelo IDP. Pós-Graduado em Direito Penal Econômico e Europeu pela Universidade de Coimbra. Sócio de Mirza & Malan Advogados.

Amanda Estefan

Amanda Estefan

Mestranda em Direito Processual pela UERJ. Sócia de Mirza & Malan Advogados.

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