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Autonomia e independência dos Tribunais de Contas

Deve-se reconhecer o Tribunal de Contas como órgão sui generis (órgão satelital), detentor dos atributos da independência e autonomia, com funções claramente desenhadas pela Constituição da República Federativa do Brasil, especialmente quanto à legalidade, legitimidade e economicidade dos atos sujeitos à sua atribuição.

quinta-feira, 30 de setembro de 2021

Atualizado às 13:11

 (Imagem: Arte Migalhas)

(Imagem: Arte Migalhas)

Os Tribunais de Contas possuem inequívoco protagonismo no cenário jurídico brasileiro, atuando em questões relevantes em todas as esferas da federação (União, Estados, Distrito Federal e Municípios), especialmente no controle (técnico) e na fiscalização contábil, financeira, orçamentária e patrimonial do Poder Público e de diversos outros órgãos e entidades.  

Para o cumprimento das funções delineadas na Constituição, o Poder Público realiza despesas, mas também aufere receitas, atos que se constituem na essência da gestão pública. Além disso, todo aquele que realiza a administração da coisa pública tem o dever constitucional de prestar de contas, ante a determinação do parágrafo único do art. 70 da CRFB/1988.

É nesse contexto que se apresenta o Tribunal de Contas, como órgão que "auxilia" o Congresso Nacional (Legislativo) no controle externo1. Na CRFB/1988, sob o aspecto topográfico, a disciplina do Tribunal de Contas encontra-se na seção referente à "fiscalização contábil, financeira e orçamentária" e dentro do capítulo do Poder Legislativo, embora não seja órgão deste poder.

O Tribunal de Contas não é órgão integrante do Poder Judiciário, na medida em que não exerce jurisdição2 no sentido técnico-processual. Aliás, suas decisões não possuem o atributo da definitividade (coisa julgada), razão pela qual podem sofrer controle jurisdicional, ante a previsão do art. 5º, XXXV, da CRFB/19883.

Apenas são órgãos do Poder Judiciário os previstos no art. 92 da Constituição da República Federativa do Brasil de 1988, de modo que no referido rol ou mesmo no capítulo do Poder Judiciário não há qualquer menção ao Tribunal de Contas.  

Também não é órgão do Poder Executivo, eis que não exerce tipicamente a gestão da coisa pública ou realiza, em sua atividade fim, função administrativa, sequer a implementação de políticas públicas.

A despeito de o texto constitucional mencionar o caráter "auxiliar" do Tribunal de Contas no controle externo, a cargo do Poder Legislativo, trata-se, em verdade, de órgão autônomo, independente e não integrante da estrutura daquele Poder. Isso porque a ordem constitucional conferiu ao Tribunal de Contas "quadro de pessoal próprio" (art. 73, caput), a iniciativa para propor a criação, extinção e transformação de cargos (art. 73, parte final c/c alínea "e" do inciso I do art. 96) e a alteração de sua organização e funcionamento (art. 73, parte final c/c alínea "d" do inciso II do art. 96), assegurando-lhe, pois, autogoverno (autonomia e independência).   

Na ADIn 4418, o Pleno do STF, em 2014, asseverou que "as cortes de contas seguem o exemplo dos tribunais judiciários no que concerne às garantias de independência, sendo também detentoras de autonomia funcional, administrativa e financeira". No mesmo sentido, no julgamento da ADIn 4643 - MC, o Pleno do STF, em 2016, reconheceu que "as Cortes de Contas do país, conforme reconhecido pela Constituição de 1988 e por esta Suprema Corte, gozam das prerrogativas da autonomia e do autogoverno".

A propósito, no RE 576920, o Tribunal Pleno entendeu que "a competência desempenhada pelo Tribunal de Contas não é, necessariamente, a de mero auxiliar do poder legislativo", evidenciando, mais uma vez, o seu protagonismo.

É perceptível, por outro lado, que os Tribunais de Contas, outros órgãos e até mesmo pessoas jurídicas da Administração Indireta atuam no modelo de Estado contemporâneo brasileiro como ombudsman, ou seja, a sociedade civil pode valer-se de mecanismos de interlocução para salvaguardar seus direitos e o patrimônio publico através da Corte de Contas.

Na tradicional estrutura da tripartição dos Poderes (Legislativo, Judiciário e Executivo), não há lugar para o Tribunal de Contas nessa classificação. À semelhança do Ministério Público, da Ordem dos Advogados do Brasil4 e de outras instituições de relevância constitucional, o Tribunal de Contas é órgão que não se vincula ao Legislativo, Judiciário e Executivo.

Dito isto, é imperioso destacar o papel instrumental do Tribunal de Contas que, junto com o Ministério Público, funciona como órgão satelital, que orbita os Poderes na fiscalização do Princípio Republicano, ou seja, atua diretamente na tomada de contas públicas.

Aliás, no Estado de Direito, os atos e decisões praticados pelos agentes públicos, ou por órgãos e entidades, devem sempre estar sujeitos a algum tipo de controle e responsabilidade.    

Portanto, deve-se reconhecer o Tribunal de Contas como órgão sui generis (órgão satelital), detentor dos atributos da independência e autonomia, com funções claramente desenhadas pela Constituição da República Federativa do Brasil, especialmente quanto à legalidade, legitimidade e economicidade dos atos sujeitos à sua atribuição.

_____________

1 O caput do art. 70, bem como o art. 74 da CRFB/1988, estabelecem a existência também do controle interno, que exerce relevante função institucional e coopera com órgãos de controle externo.

2 O STF, no MS 34950, julgado em 31/05/2021, explicitamente reconheceu que o Tribunal de Contas é "órgão sem função jurisdicional".  

3 Nesse sentido: MS 35410, de Relatoria do Ministro Alexandre de Moraes, julgado em 13/04/2021 (Tribunal Pleno). 

4 Em relação à natureza jurídica da OAB, há controvérsias. Alguns enquadram a OAB como uma autarquia sui generis ou especial. O Pleno do STF já reconheceu, na ADI 5367, que "os Conselhos Profissionais, enquanto autarquias corporativas criadas por lei com outorga para o exercício de atividade típica do Estado, tem maior grau de autonomia administrativa e financeira, constituindo espécie sui generis de pessoa jurídica de direito público não estatal (...)". Não obstante, especialmente em relação à OAB, o STF, na ADI 3.026, de Relatoria do Min. Eros Grau, decidiu o seguinte: "3. A OAB não é uma entidade da Administração Indireta da União. A Ordem é um serviço público independente, categoria ímpar no elenco das personalidades jurídicas existentes no direito brasileiro. 4. A OAB não está incluída na categoria na qual se inserem essas que se tem referido como "autarquias especiais" para pretender-se afirmar equivocada independência das hoje chamadas "agências". 5. Por não consubstanciar uma entidade da Administração Indireta, a OAB não está sujeita a controle da Administração, nem a qualquer das suas partes está vinculada. Essa não-vinculação é formal e materialmente necessária. 6. A OAB ocupa-se de atividades atinentes aos advogados, que exercem função constitucionalmente privilegiada, na medida em que são indispensáveis à administração da Justiça [artigo 133 da CB/88]. É entidade cuja finalidade é afeita a atribuições, interesses e seleção de advogados. Não há ordem de relação ou dependência entre a OAB e qualquer órgão público. 7. A Ordem dos Advogados do Brasil, cujas características são autonomia e independência, não pode ser tida como congênere dos demais órgãos de fiscalização profissional. A OAB não está voltada exclusivamente a finalidades corporativas. Possui finalidade institucional". Portanto, entendeu o STF que a OAB é um serviço público independente, não se enquadrando como autarquia.   

João Bosco Won Held Gonçalves de Freitas Filho

João Bosco Won Held Gonçalves de Freitas Filho

Professor de Direito e advogado do escritório João Bosco Filho Advogados.

Rafael Alvarez

Rafael Alvarez

Professor, advogado e sócio do escritório João Bosco Filho Advogados.

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