Os limites à autonomia dos tribunais de contas
A lei 14.133/21 e a resolução 6 da Câmara de SP são alvo de críticas por ferirem a autonomia dos tribunais de contas, impondo prazos que comprometem sua independência e função fiscalizatória.
sexta-feira, 10 de janeiro de 2025
Atualizado às 14:17
A lei 14.133/21, também conhecida como lei de licitações, trouxe avanços significativos para a modernização e a transparência dos processos licitatórios no Brasil. Contudo, a fixação de prazos e a regulamentação do controle externo, conforme disposto nos §§ 1º e 3º do art. 171, suscitaram questionamentos acerca de sua constitucionalidade sob os aspectos formal subjetivo, formal orgânico e material.
Esses dispositivos, que buscam estabelecer prazos rígidos para a atuação dos tribunais de contas, revelam-se incompatíveis com a autonomia e independência asseguradas pela CF/88 a esses órgãos.
O debate torna-se ainda mais grave no âmbito do município de São Paulo, onde a resolução 6 da Câmara Municipal, ao regulamentar o julgamento de suspensões cautelares de processos licitatórios, agrava a problemática ao impor prazos que interferem diretamente na competência e no funcionamento do Tribunal de Contas Municipal, utilizando-se de um instrumento normativo inadequado para tanto.
O art. 171 da lei 14.133/21 dispõe:
Art. 171. Na fiscalização de controle será observado o seguinte:
§ 1º Ao suspender cautelarmente o processo licitatório, o tribunal de contas deverá pronunciar-se definitivamente sobre o mérito da irregularidade que tenha dado causa à suspensão no prazo de 25 dias úteis, contado da data do recebimento das informações a que se refere o § 2º deste artigo, prorrogável por igual período uma única vez, e definirá objetivamente:
I - as causas da ordem de suspensão; II - o modo como será garantido o atendimento do interesse público obstado pela suspensão da licitação, no caso de objetos essenciais ou de contratação por emergência.
§ 3º A decisão que examinar o mérito da medida cautelar a que se refere o § 1º deste artigo deverá definir as medidas necessárias e adequadas, em face das alternativas possíveis, para o saneamento do processo licitatório, ou determinar a sua anulação.
O TCU - Tribunal de Contas da União, no acórdão 2.463/21, destacou a inconstitucionalidade formal subjetiva do § 1º, argumentando que a fixação de prazos para o julgamento de medidas cautelares nos processos licitatórios viola a competência privativa dos tribunais de contas, conforme disposto nos arts. 73 e 96 da CF/88. De acordo com esses dispositivos, a regulamentação da atuação, organização e funcionamento dos tribunais de contas deve partir exclusivamente deles próprios, e não do legislador ordinário.
Além disso, verifica-se também a inconstitucionalidade formal orgânica, pois o art. 75 da Constituição assegura que os tribunais de contas estaduais e municipais têm competência para dispor sobre sua própria organização e funcionamento, sem interferência da União. A imposição de um prazo uniforme e rígido desconsidera as particularidades de cada ente federativo, violando a autonomia dos tribunais e configurando uma invasão na esfera de competências constitucionalmente asseguradas.
No plano material, a norma também apresenta inconstitucionalidade ao comprometer a capacidade dos tribunais de contas de exercer suas funções fiscalizatórias de forma plena e eficaz. O prazo exíguo de 25 dias úteis limita a análise detalhada e fundamentada de processos licitatórios, prejudicando a função essencial desses órgãos de garantir a regularidade e a transparência das licitações. Essa limitação é especialmente prejudicial em casos complexos, que demandam maior tempo para apuração.
No contexto do município de São Paulo, a resolução 6/22, em seus artigos 1º e 2º, dispõe que:
Art. 1º Na suspensão cautelar do processo licitatório, a decisão de mérito deve ser proferida rigorosamente no prazo de 25 dias úteis, prorrogável por igual período uma única vez, contados do recebimento das informações enviadas em resposta pelo órgão ou entidade fiscalizada, sob pena de responsabilização funcional e obrigação de reparação do prejuízo causado ao erário, conforme o disposto no art. 171, §§ 1º e 4º, da lei federal 14.133, de 1º de abril de 2021, tanto nos processos a cargo da Câmara Municipal, quanto daqueles sob a responsabilidade do Tribunal de Contas do Município.
Art. 2º Expirado o prazo, a suspensão cautelar do processo licitatório fica cancelada, exceto se prorrogado o prazo para proferir a decisão de mérito, de maneira justificada.
Conforme informativo divulgado em plenário do TCM-SP - Tribunal de Contas do Município de São Paulo, essa resolução utiliza um instrumento normativo inadequado para regular matéria que afeta o controle externo, o que representa não apenas uma invasão de competência, mas também uma afronta à estrutura e à autonomia do TCM-SP. Resoluções, enquanto atos normativos secundários, não possuem prerrogativa para disciplinar questões de tamanha relevância e impacto.
Diante das inconstitucionalidades formal subjetiva, formal orgânica e material, é evidente que os §§ 1º e 3º do art. 171 da lei 14.133/21 são incompatíveis com a CF/88. A ingerência do legislador na estrutura e funcionamento dos tribunais de contas compromete sua autonomia, independência e capacidade de fiscalização, prejudicando o exercício pleno de suas funções constitucionais. No caso do município de São Paulo, a problemática gerada pela resolução 6 reforça a urgência de revisão e correção desses dispositivos para resguardar o equilíbrio constitucional e assegurar a eficácia e independência do sistema de controle externo no Brasil.
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ZENITE. Decisões do TCU sobre a nova Lei de Licitações - Parte 1. Disponível em: https://zenite.blog.br/decisoes-do-tcu-sobre-a-nova-lei-de-licitacoes-parte-1/. Acesso em: 8 jan. 2025.
CÂMARA MUNICIPAL DE SÃO PAULO. Resolução nº 6, de 2022. Dispõe sobre prazos e procedimentos relacionados à suspensão cautelar de processos licitatórios. Disponível em: https://www.saopaulo.sp.leg.br/cgi-bin/wxis.bin/iah/scripts/?IsisScript=iah.xis&lang=pt&format=detalhado.pft&base=legis&nextAction=search&form=A&indexSearch=^nTw^lTodos%20os%20campos&&exprSearch=RESOLUCAO*DA*CMSP*6/(6)*2022. Acesso em: 8 jan. 2025.
TRIBUNAL DE CONTAS DO MUNICÍPIO DE SÃO PAULO. Resolução nº 6/2022: normativo que regulamenta a suspensão cautelar de processos licitatórios. Disponível em: https://portal.tcm.sp.gov.br/Pagina/54436. Acesso em: 8 jan. 2025.
BRASIL. Lei nº 14.133, de 1º de abril de 2021. Institui a nova Lei de Licitações e Contratos Administrativos. Disponível em: https://www.planalto.gov.br/ccivil_03/_ato2019-2022/2021/lei/l14133.htm. Acesso em: 8 jan. 2025.