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Voto plural à brasileira: um verdadeiro "antes feito que perfeito"

A ótima e muito jovem ferramenta societária que, por suas distorções legislativas, poderá ter sua utilidade prejudicada.

terça-feira, 11 de janeiro de 2022

Atualizado em 18 de janeiro de 2022 09:17

 (Imagem: Arte Migalhas)

(Imagem: Arte Migalhas)

É inegável que 2021 ficará marcado para o direito empresarial brasileiro como um dos anos em que a legislação societária mais apresentou mudanças e novidades. Começando pelo Marco Legal das Startups, que, dentre várias outras novidades, instituiu a SAS - Sociedade Anônima Simplificada, passando pela Lei de Ambiente de Negócios e terminando com a entusiasmante Lei da SAF - Sociedade Anônima do Futebol.

 A mencionada Lei de Ambiente de Negócios (Lei 14.195/21), sancionada ainda no final de agosto de 2021,  trouxe uma das mais discutidas e aguardadas alterações da Lei das Sociedades por Ações ("Lei das S.A."): a inclusão do chamado "voto plural" ou "super voto".

Tal mecanismo, em síntese, permite que empresas emitam ações ordinárias com poder de voto superior às demais, possibilitando que um acionista (geralmente o fundador) exerça o controle da companhia ainda que com pequena participação no capital social. Na prática, o voto plural possibilita a captação pública de recursos sem perda do poder de mando na companhia, o que representa uma interessante opção para escalada de empresas que pretendem manter o plano de gestão e desenvolvimento dos seus fundadores.

A flexibilização da regra do "one share one vote" atribuída às ações ordinárias representa um marco na legislação societária brasileira, mas o voto plural já era amplamente utilizado em países com maior desenvolvimento do mercado de capitais, como Estados Unidos, Singapura e Hong Kong. Fato que, em conjunto com tantos outros, culminava na fuga para abertura de capital no exterior de algumas empresas brasileiras, tendo como um dos exemplos mais famosos o caso da XP Inc., que optou por listar seus papéis nos Estados Unidos.

O instituto trouxe acalorados debates na doutrina e no mercado brasileiro, contrapondo os que se dizem defensores dos direitos dos minoritários e dos standards de governança corporativa e os que visualizavam no voto plural uma condição de amadurecimento do mercado de capitais brasileiro.

A intenção desta breve provocação, entretanto, não está em repisar os pontos levantados pelos que nutrem simpatia ou antipatia pelo voto plural, mas sim analisar as principais peculiaridades e efeitos deste instituto de acordo com a legislação aprovada.

A redação do novo art. 110-A da Lei das S.A. sedimentou o voto plural brasileiro, estabelecendo o teto de 10 votos por ação ordinária. Questiona-se, neste ponto, a racionalidade utilizada para determinação deste teto tão exato, mas fato é que a disposição permite que um acionista detenha o controle majoritário da companhia com menos de 10% das ações ordinárias, ou menos de 5% para os casos em que existam ações preferenciais sem direito de voto até o limite de 50% imposto pela Lei das S.A.

Outra característica importante da Lei 14.195/21 foi estabelecer uma "data de validade" ao voto plural, que possui uma vigência inicial de até 7 anos, prorrogáveis por qualquer prazo, quando aprovado por metade, no mínimo, dos acionistas titulares de ações sem direito a voto plural e restando garantido o direito de retirada mediante reembolso aos acionistas divergentes. A disposição, chamada de sunset clause, cria, na prática, uma espécie de "julgamento" da administração pelo "tribunal de acionistas" - assembleia geral especial -, já que os acionistas sem direito a voto plural é que estarão incumbidos de decidir pela prorrogação daquele controlador ou expiração do voto plural e volta, às ações ordinárias, do regramento "one share one vote".

Um dos possíveis efeitos da sunset clause poderá ser a especulação das ações de companhias abertas quando for chegado o momento dos demais acionistas decidirem pela continuação ou não do voto plural. Por um lado, a prorrogação poderá ser vista como uma premiação e voto de confiança dos acionistas ao eventual bom trabalho realizado pela administração/controlador, gerando a posterior valorização das cotações.

Por outro lado, companhias que detenham um quadro acionário repartido e conflituoso poderão ver uma queda de suas cotações gerada pela não valorização e interrupção dos trabalhos de uma administração que, apesar das disputas internas, vinha realizando um bom trabalho. Caberá saber se haverá questionamentos, nesses casos, quanto à abusividade do voto de tais minoritários, nos termos do art. 115 da Lei das S.A.

Considera-se, contudo, positivo o fato da sunset clause minimizar o efeito de encastelamento (entrenchement) da administração, uma das consequências naturalmente geradas pela admissão do voto plural.

Outro aspecto relevante do voto plural brasileiro é a restrição de seu uso apenas para companhias fechadas ou companhias abertas que não tenham negociado ações ou valores mobiliários conversíveis em ações em mercados organizados. Ou seja, o voto plural continua vedado às companhias já listadas em bolsa de valores. A intenção do legislador, nesse ponto, foi "não mudar as regras no decorrer jogo", já que a adoção do voto plural poderia representar um prejuízo aos acionistas minoritários de tais companhias. Acontece que a vedação, em contrapartida, representou uma situação de "duas regras para o mesmo jogo", que terminou por "penalizar" aqueles que aderiram primeiro a ele. Talvez uma opção menos desigual poderia ser a estipulação de quóruns mais exigentes para instituição do voto plural em companhias abertas já listadas, mas essa não foi a escolha do legislador.

Para tais companhias, que estarão excluídas das benesses do novo instituto, restará a adoção de outras medidas já conhecidas do mercado para estabilização de um controle minoritário, como as Poison Pills e a limitação de número de votos por acionista (voting right ceiling)1. Esta última, por sua vez, pode ter consolidada ainda mais a sua compatibilidade com o ordenamento societário brasileiro, já que agora expressamente permitida a flexibilização da regra "uma ação um voto" para as ações ordinárias.

Também ficou estipulada a vedação (com risco de automática conversão em ordinárias comuns) à transferência, a qualquer título, das ações com voto plural a terceiros, guardadas algumas exceções. A regra de conversão automática em ordinárias comuns também se aplica aos casos em que o acordo de acionistas entre titulares de ações com e sem voto plural dispor sobre exercício conjunto do direito de voto.

Ficaram vedadas, ainda, operações de incorporação e fusão de companhia aberta já listada que não adote voto plural com outras companhias que adotem voto plural, além da vedação à cisão/incorporação de parcela cindida de companhia aberta já listada que não adote voto plural para constituição de nova companhia com adoção do voto plural.

Percebe-se que tantas vedações e limitações terminaram por amarrar demasiadamente o instituto, restringindo sua utilidade e versatilidade. Esqueceram, talvez, que a opção por tornar-se ou continuar a ser acionista de determinada companhia sempre será uma escolha do próprio investidor, além de que o voto plural, em si, não traz mais controvérsias e perigos que outros mecanismos já utilizados no país para estabilização de controle minoritário. O aumento do custo de agência nas Poison Pills2 é um exemplo disso.

Apesar de algumas amarras serem importantes, acredita-se que houve um engessamento do voto plural; caberá, assim, à criatividade dos societaristas e da consolidação da regulação da CVM para que seja possível visualizar, na prática, a efetividade da referida alteração legal. Os ditames populares classificariam a novidade legislativa como um "antes feito que perfeito". De fato, essa é a percepção inicial de um instituto que desagradou tanto aos seus entusiastas quanto aos seus críticos.

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1 Trata-se de medida defensiva com a função de limitar a um número máximo a quantidade de votos que um mesmo acionista poderá exercer. Ou seja, desconsidera-se a participação acionária excedente ao teto, impondo-se uma limitação do direito de voto por acionista. Essa cláusula já é adotada em companhias como a própria B3 S.A., Embraer - Empresa Brasileira de Aeronáutica S.A., Petro Rio S.A. e Lojas Renner S.A.

2 Em Memorando aprovado no Parecer 36/2009, os ex-diretores da CVM Otávio Yazbek e Marcos Pinto ressaltam: "Poison pills dificultam ofertas hostis de controle e, por isso, aumentam custos de agência" e "Para a nossa análise, os custos de agência mais importantes são as perdas sofridas em virtude da ineficiência ou oportunismo da administração".

Daniel Magalhães

Daniel Magalhães

Bacharel em direito pela UFPE (Universidade Federal de Pernambuco). Advogado atuante na área de direito societário, M&A e mercado de capitais do Monteiro de Castro Setoguti Advogados.

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