MIGALHAS DE PESO

  1. Home >
  2. De Peso >
  3. Migalhas de peso >
  4. O princípio da boa-fé na lei 14.181/21

O princípio da boa-fé na lei 14.181/21

Definição e aplicabilidade do princípio da boa-fé na lei 14.181/21.

segunda-feira, 2 de maio de 2022

Atualizado às 21:18

(Imagem: Arte Migalhas)

Com a chegada da lei 14.181/21, ora denominada lei do superendividamento, houve alteração na lei 8.078/90 (CDC), com o intuito reforçar o carácter de prevenção e tratamento sobre educação financeira ao cidadão comum.

Elaborada durante o estado de calamidade pública que atormentava milhares de cidadãos brasileiros, a chamada Lei do superendividamento surgiu com o intuito de minorar os danos financeiros surgidos após o início da pandemia do covid-19.

Aliado a tudo isso, acrescenta-se o fato que em meados do presente século XXI existe forte crescente contínua e generalizada do aumento dos preços de bens e serviços, pois vivenciamos um período marcado por uma economia caracterizada por uma inflação bastante acelerada e desenfreada, com aumento de impostos para cobrir despesas e repasse de custos aos consumidores.

Logo no seu início, existe definição criteriosa bastante incompleta quanto a sua aplicabilidade, porquanto na referida norma existe orientação que ela apenas se aplica aos consumidores de boa-fé, mas não exemplifica, ou melhor, nem aprofunda o conceito do termo utilizado.

Além do conceito propriamente dito do termo superendividamento, a nova Lei em comento ratificou algumas noções e formas de prevenção já inseridas no CDC, como por exemplo, do dever de informação no fornecimento de crédito e na venda a prazo.

Atualmente pode existir conciliação a requerimento do consumidor pessoa natural superendividado, ou seja, poderá ser elaborado plano de pagamento com prazo máximo de 5 (cinco) anos, ao teor do disposto no art. 104-A da Lei do superendividamento, vejamos:

A requerimento do consumidor superendividado pessoa natural, o juiz poderá instaurar processo de repactuação de dívidas, com vistas à realização de audiência conciliatória, presidida por ele ou por conciliador credenciado no juízo, com a presença de todos os credores de dívidas previstas no art. 54-A deste Código, na qual o consumidor apresentará proposta de plano de pagamento com prazo máximo de 5 (cinco) anos, preservados o mínimo existencial, nos termos da regulamentação, e as garantias e as formas de pagamento originalmente pactuadas.

Dito isso, observemos o conceito utilizado no art. 54-A da lei 14.181/21, nestas palavras:

Este Capítulo dispõe sobre a prevenção do superendividamento da pessoa natural, sobre o crédito responsável e sobre a educação financeira do consumidor.

§ 1º Entende-se por superendividamento a impossibilidade manifesta de o consumidor pessoa natural, de boa-fé, pagar a totalidade de suas dívidas de consumo, exigíveis e vincendas, sem comprometer seu mínimo existencial, nos termos da regulamentação.
§ 2º As dívidas referidas no § 1º deste artigo englobam quaisquer compromissos financeiros assumidos decorrentes de relação de consumo, inclusive operações de crédito, compras a prazo e serviços de prestação continuada.
§ 3º O disposto neste Capítulo não se aplica ao consumidor cujas dívidas tenham sido contraídas mediante fraude ou má-fé, sejam oriundas de contratos celebrados dolosamente com o propósito de não realizar o pagamento ou decorram da aquisição ou contratação de produtos e serviços de luxo de alto valor.

Conforme se depreende, o termo boa-fé, ora utilizado no art. 54-A, § 1º, da lei 14.181/21, é bastante omisso quanto ao seu modo de interpretação.

A redação imposta é vazia, já que não expôs os requisitos necessários/exemplificativos para explicar a origem do consumidor de boa-fé frente a mesma Lei.

Fato é que no direito civil brasileiro existem duas definições relativas ao princípio da boa-fé, sendo possível uma análise objetivamente e também subjetiva.

No que tange a boa-fé objetiva, "[...] em uma dada relação jurídica, presente o imperativo dessa espécie de boa-fé, as partes devem guardar entre si a lealdade e o respeito que se esperam do homem comum" (GAGLIANO; FILHO, 2021, p. 41).

Na boa-fé objetiva espera-se uma atitude ética e moral recíproca, isto por tal princípio ser analisado sob os aspectos de lealdade, confiança, assistência, confidencialidade e sigilo.

Quanto ao seu conceito, "[o] princípio da boa-fé entende mais com a interpretação do contrato do que com a estrutura. Por ele se significa que o literal da linguagem não deve prevalecer sobre a intenção manifestada na declaração de vontade, ou dela inferível" (GOMES, 2019, p. 35).

Já em relação à boa-fé subjetiva, distingue-se da objetiva pelo fato de que a primeira se refere a um estado subjetivo e racional do indivíduo, enquanto a última consagra o agir esperado costumeiramente conhecido pelos valores morais e éticos.

Na boa-fé subjetiva, o manifestante vontade acredita na legalidade da sua conduta segundo um estado de consciência ou aspecto psicológico (VENOSA, 2021, p. 39).

Seguindo o mesmo rumo, no negócio jurídico deverá existir agente capaz, objeto lícito, possível, determinado ou determinável, além de ter forma prescrita ou não defesa em Lei, tudo em conforme com o previsto no art. 104 do CC/02.

Quanto aos demais requisitos para a validade de um negócio jurídico, existe ainda a necessidade de livre declaração de vontade, como bem previsto no art. 107 do CC/02.

Dentro desse contexto, a boa-fé a ser analisada na lei 14.181/21 é objetiva, porquanto ela consiste em uma regra de comportamento com cunho ético e de exigibilidade jurídica.

O intuito do legislador quando da edição do art. 54-A, § 1º, da comentada Lei até então, foi de atribuir eficácia da lei aos contratos celebrados sob os aspectos norteadores da boa-fé objetiva do direito civil brasileiro, tais como, o da transparência, da lealdade, respeito e livre manifestação da vontade.

Foi exatamente essa a intenção do legislador no momento que incluiu o termo boa-fé como requisito indispensável para aplicação, ou seja, de garantir segurança ao aplicador do direito tão logo quando for requerida a sua aplicação pelo consumidor.

Até mesmo porque "[o] Código Civil de 2002 deu relevância ao princípio da boa-fé, desde a manifestação da vontade das partes, como se extrai de seu art. 112: "Nas declarações de vontade e atenderá mais à intenção nelas consubstanciada do que ao sentido literal da linguagem" (RIZZARDO, 2022, p. 34).

Por tais razões, o conceito da boa-fé previsto na lei 14.181/21 é destinado à sua forma objetiva, atribuída eficácia da Lei aos contratos celebrados sob os aspectos norteadores da transparência, da lealdade, respeito e cooperação.

Assim, conclui-se que a referida boa-fé inserida na chamada Lei do superendividamento atribui ao operador do direito o dever de análise e cautela quanto aos comportamentos objetivamente perseguidos na concreta relação obrigacional.

Não se nega a importância do seu carácter objetivo, mas, no decorrer do tempo e se existir porventura uma judicialização excessiva de demandas, certamente pode-se afirmar que o texto de Lei poderá ser alterado, de modo a restringir a sua forma de eficácia aos demais consumidores.

Portanto, para fins de entendimento do termo utilizado no art. 54-A, § 1º, da lei 14.181/21, deverá ser observada que a boa-fé objetiva serve de fator basilar de interpretação.

________

BRASIL. Lei 10.406, de 10 de janeiro de 2002. Código Civil. Disponível em: http://www.planalto.gov.br/ccivil_03/leis/2002/l10406compilada.htm. Acesso em: 10 abr. 2022.

BRASIL. Lei 14.181, de 1º de julho de 2021. Disponível em: http://www.planalto.gov.br/ccivil_03/_ato2019-2022/2021/lei/L14181.htm. Acesso em: 10 abr. 2022.

BRASIL. Lei 8.078, de 11 de setembro de 1990. Disponível em: http://www.planalto.gov.br/ccivil_03/leis/l8078compilado.htm. Acesso em: 10 abr. 2022.

GAGLIANO, Pablo S.; FILHO, Rodolfo Mário Veiga P. Contratos. São Paulo: Editora Saraiva, 2021. Disponível em: https://integrada.minhabiblioteca.com.br/#/books/9786555593051/. Acesso em: 22 abr. 2022.

GOMES, Orlando. Contratos. Rio de Janeiro: Grupo GEN, 2019. Disponível em: https://integrada.minhabiblioteca.com.br/#/books/9788530986735/. Acesso em: 20 abr. 2022.

VENOSA, Sílvio de S. Direito Civil. Contratos. São Paulo: Grupo GEN, 2021. Disponível em: https://integrada.minhabiblioteca.com.br/#/books/9788597027129/. Acesso em: 20 abr. 2022.

RIZZARDO, Arnaldo. Contratos. Rio de Janeiro: Grupo GEN, 2020. Disponível em: https://integrada.minhabiblioteca.com.br/#/books/9788530992637/. Acesso em: 21 abr. 2022.

Caio Almeida Monteiro Rego

Caio Almeida Monteiro Rego

Advogado do escritório Barreto Dolabella Advogados. Pós-graduando em Direito Civil pela PUC/MG.

AUTORES MIGALHAS

Busque pelo nome ou parte do nome do autor para encontrar publicações no Portal Migalhas.

Busca