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Diálogo com o controle: prescrição e organizações da sociedade civil

Ao regulamentar a prescrição, Tribunal de Contas ajuda a retirar espada de Dâmocles da cabeça dos dirigentes de Organizações da Sociedade Civil. Falta a Administração Pública federal fazer o mesmo.

sábado, 16 de dezembro de 2023

Atualizado em 15 de dezembro de 2023 14:17

O tema da prescrição envolvendo o ressarcimento de valores e a punição daqueles que administram recursos públicos sempre foi objeto de muita discussão na jurisprudência e na doutrina. A polêmica e as divergências nas decisões dos tribunais não são novidade e costumam gerar muito caos na vida daqueles que, por razões diversas, se vêem enfrentando um processo de tomada de contas especial.

O Judiciário e os Tribunais de Contas, de forma geral, não costumam decidir de forma convergente quando o tema é o reconhecimento da prescrição, o que contribui para a celeuma: afinal, quem administra recursos públicos permanece eternamente responsável por prestar contas desses valores?

O STF, ao julgar o RE 636.886 (tema 889 da Repercussão Geral), fixou a seguinte tese: "É prescritível a pretensão de ressarcimento ao erário fundada em decisão de Tribunal de Contas". Nesses casos, decidiu o STF, o prazo prescricional é de 5 anos, previsto na lei 6.830/80 (lei de Execução Fiscal).

O tema 899 do STF discutiu o alcance do disposto no art. 37, § 5º1 da Constituição Federal, também reconhecendo a prescrição quanto ao ressarcimento do erário fundado em decisão do Tribunal de Contas. Nessa fase executória, a lei 9.873/992 estabeleceu os prazos prescricionais para o exercício de ação punitiva da Administração Pública Federal, direta e indireta, sendo de 5 anos contados da data da prática do ato ou, no caso de infração permanente ou continuada, do dia em que esta tiver cessado. Fixou, ainda, o prazo de 3 anos para fins de prescrição intercorrente, conforme o parágrafo 1º do art. 1º da mesma lei.

Ressalte-se, contudo, que essa tese não se aplica aos casos em que há prática de ato de improbidade administrativa doloso tipificado na lei 8.429/92, hipóteses em que as ações de ressarcimento ao erário são imprescritíveis, conforme tema 897 da Repercussão Geral.

Até recentemente, o TCU vinha decidindo pela prescrição no prazo de 10 anos previsto no art. 205 do Código Civil, conforme Acórdão 1.441/2016-TCU-Plenário, que uniformizou a jurisprudência acerca do tema. Dessa forma, contava-se 10 anos a partir da data de ocorrência da irregularidade sancionada, nos termos do art. 189 do Código Civil, sendo este prazo interrompido pelo ato que ordenar a citação, a audiência ou a oitiva dos responsáveis.

Diante desse cenário de insegurança jurídica, é de grande relevância a edição da Resolução - TCU 344, de 11 de outubro de 2022, em que o TCU regulamenta, no âmbito da Corte, o tema da prescrição para o exercício das pretensões punitiva e de ressarcimento, estabelecendo o prazo de 5 anos como marco temporal para o seu reconhecimento. A Resolução traz parâmetros para o cálculo do início do prazo, as hipóteses de sua interrupção e as situações em que o prazo não corre.

E por qual razão essa novidade normativa é tão relevante para as Organizações da Sociedade Civil - OSC e seus dirigentes?

As OSC têm um papel reconhecido como grandes parceiras da Administração Pública na implementação de políticas públicas, inicialmente através da assinatura de convênios e, mais recentemente, mediante a instrumentalização de termos de fomento e de colaboração conforme a lei 13.019/14, também conhecida como Marco Regulatório das Organizações da Sociedade Civil - MROSC. Ademais, também são usualmente executoras de contratos de repasse e projetos aprovados via leis de incentivo à cultura e ao esporte, Pronas e Pronon, dentre outras.

Assim, as OSC e, solidariamente, seus gestores, são obrigadas a prestar contas dos recursos recebidos para a execução desses projetos e, eventualmente, são notificadas a devolver parcial ou integralmente esses recursos quando o Poder Público entende não ter havido a sua correta aplicação.

O problema é que o passivo de prestações de contas na esfera administrativa é imenso, haja vista a ausência de clareza no ordenamento jurídico e os parcos recursos humanos para analisar todos os processos que aguardam uma conclusão. Resultado: os processos se arrastam ao longo de anos - e até mesmo décadas - sem que as OSC nada possam fazer para acelerá-los, além de responder aos pedidos de esclarecimentos que recebem.

Assim, a edição de uma Resolução, por parte do TCU, estabelecendo limites temporais para responsabilização dos gestores de recursos públicos é de grande valia, pois define que esses gestores não ficarão obrigados a, para sempre, arquivar documentos, responder a solicitações e, ao final, devolver recursos, com a devida correção monetária e juros de mora de 1% ao mês, sem prejuízo da aplicação de multa individual ao responsável 

Afinal, no dizer do Excelentíssimo Ministro Marco Aurélio Mello, por ocasião do julgamento do Recurso Extraordinário 669.069 pelo STF, "será que, considerada a Carta que se disse cidadã, que trouxe ares democráticos, tem-se esse poder insuplantável do Estado, de deixar que permaneça sobre a cabeça daquele obrigado a ressarcir uma verdadeira espada de Dâmocles?" 

Quando a Resolução foi editada, se questionava qual seria o seu impacto na esfera administrativa, ou seja, na etapa anterior à instauração de Tomada de Contas Especial - TCE e sua remessa ao Tribunal. Os órgãos de controle interno reconheceriam a prescrição por conta própria, encerrando o processo? Ou providenciariam a instauração da TCE e seu envio ao TCU, para que este arquive o processo, ainda que esse trâmite signifique um elevado custo administrativo desnecessário?

Logo após a edição da Resolução do TCU, em reunião realizada em 24/1/23, a Diretoria Colegiada da Agência Nacional do Cinema - ANCINE decidiu, por unanimidade, pela imediata aplicação da Resolução a todos os processos de prestação de contas em andamento na Agência, independentemente do momento em que fora iniciado o procedimento. Decidiu, ainda, pelo retorno da aplicação do decreto 8.281/14, para revisão da metodologia de análise do passivo de prestação de contas, especificamente quanto à verificação do cumprimento do objeto, para tornar mais eficiente e efetiva a fiscalização dos recursos públicos.

Na área da cultura, há ainda que se saudar o decreto 11.453, de 23 de março de 2023, que regulamenta os mecanismos de fomento do sistema de financiamento à cultura, dentre eles a lei 8.313/91, mais conhecida como lei Rouanet. No seu Artigo 79, a norma estabelece que o Ministério da Cultura "conhecerá de ofício os casos de prescrição do poder administrativo sancionatório, nos termos do disposto na lei 9.873, de 23 de novembro de 1999" e que "a análise da ocorrência de prescrição para o exercício das pretensões punitivas e de ressarcimento precederá as análises de documentação de prestações de contas".

O Ministério do Esporte, no entanto, em manifestações mais recentes em processos de prestações de contas de projetos apoiados via lei de Incentivo ao Esporte (lei 11.438/06), tem informado que a análise sobre a ocorrência da prescrição em processos administrativos, com fundamento na Resolução do TCU, é exclusiva daquela Corte de Contas, que se pronunciará mediante a instauração de Tomada de Contas Especial. Ou seja, quando verificado o transcurso do prazo de 5 anos, o Ministério não reconhece a prescrição e remete o processo ao TCU para decisão quanto ao seu arquivamento em razão da prescrição.

Atualmente está ainda em andamento o processo de alteração do decreto 8.726/16, que regulamenta a lei 13.019/14 e em cujo processo de consulta pública aberta, recebeu contribuições sobre a necessidade de aplicação da norma e de se reconhecer a prescrição de forma expressa. A Comissão de Direito do Terceiro Setor da OAB/SP se manifestou nesse exato sentido. A expectativa é que o novo texto preveja a regra e que os demais normativos federais também sejam revisados com esse olhar.

O movimento no âmbito federal para conferir mais agilidade e eficiência no reconhecimento do prazo prescricional, seja na própria esfera administrativa, seja no envio do processo ao TCU para decisão, é bastante relevante.

Em julgamento recente, de 1º de novembro de 2023, o Plenário do TCU decidiu, nos termos do Acórdão 2234/23-Plenário, "dar ciência ao Ministério do Esporte e ao Ministério do Desenvolvimento e Assistência Social, Família e Combate à Fome que a Resolução/TCU 344/2022 é de aplicação interna aos processos de controle externo em andamento no TCU, e que os seus parâmetros devem ser utilizados para identificar as prestações de contas sujeitas à prescrição iminente e priorizar sua respectiva análise, sem implicar o arquivamento de processos de prestação de contas ou mesmo de tomada de contas especial no âmbito dos ministérios".

A despeito da conclusão de que a Resolução se aplica apenas no âmbito do TCU, o Relator do processo, Ministro Marcos Bemquerer Costa, ponderou:

23. No entanto, é importante levar em conta que utilizar recursos da Administração Pública Federal para conduzir processos que já estão prescritos parece ser injustificado e contrário ao princípio da eficiência estabelecido no art. 37 da Constituição Federal, já que não oferecem nenhuma chance de reparação pecuniária. Dessa forma, mostra-se razoável que os critérios previstos na Resolução TCU 344/2022 possam ser utilizados como critérios de priorização para a análise dos processos de prestação de contas e de TCEs.

Portanto, ainda que o TCU entenda que a Resolução não possa ser adotada como fundamento, pela Administração Pública para arquivar processos em razão da prescrição, fica claro que seus preceitos não só podem, como devem, ser aplicados, haja vista a necessidade de respeito ao princípio da eficiência, sem, naturalmente, deixar de observar a legalidade. Essa decisão recente só reforça a importância de regulamentação do tema no âmbito da Administração Pública federal para alicerçar o tema e orientar os gestores públicos e as organizações da sociedade civil.

É de se ficar atento para o envio de notificações desnecessárias às OSC e seus dirigentes, com o fim único e exclusivo de interromper e reiniciar a contagem do prazo prescricional. Afinal, todo o procedimento de investigação deve respeitar e observar o prazo de 3 anos para possível reconhecimento de prescrição intercorrente, nos termos do art. 8º da Resolução - TCU 344, de 11 de outubro de 2022, em consonância com o tema repetitivo 328 do STJ, pois é que a Resolução estabelece que, se a prescrição for causada por omissão da autoridade administrativa ou de agente público, deve ser promovida imediata apuração do ilícito e ser dada a imediata ciência da falha ao TCU, sob pena de responsabilidade solidária. Em ocorrendo a apuração do fato, o TCU poderá aplicar as sanções cabíveis proporcionais à conduta e, se for o caso, imputar a integralidade débito, quando comprovado o dolo.

Por fim, importante mencionar que a Resolução prevê que o reconhecimento da prescrição impede a imposição de sanção e de reparação do dano, mas não impede o julgamento das contas nem a adoção de determinações, recomendações ou outras providências. Porém, o julgamento das contas somente ocorrerá quando o colegiado competente reconhecer a relevância da matéria tratada, a materialidade exceder em 100 vezes o valor mínimo para a instauração de Tomada de Contas Especial e já tiver sido realizada a citação ou audiência.

Não há dúvidas de que a edição da Resolução - TCU 344, de 11 de outubro de 2022 pode - e deve - ser celebrada, não só pelos gestores de recursos públicos, mas também pelos órgãos de controle interno e externo, pois estabelece critérios mais claros e objetivos para o reconhecimento da prescrição nos processos que envolvem prestações de contas. Além disso, a Resolução "unifica" os prazos prescricionais envolvendo o ressarcimento de valores e a punição daqueles que administram recursos públicos com todas as legislações existentes, em consonância com os julgados e temas do STF e do STJ.

Recentemente a Advocacia-Geral da União lançou uma iniciativa louvável: a Câmara de Promoção de Segurança Jurídica no Ambiente de Negócios. O tema da prescrição nas prestações de contas das parcerias das organizações da sociedade civil com a Administração Pública Federal, com recursos diretos ou via projetos com incentivo fiscal, deveria fazer parte da pauta dos trabalhos do grupo por ser um dos temas candentes que o Poder Executivo Federal também tem a tarefa de unificar e resolver.

Nessa mesma esteira e como tema conexo, se debruçar sobre guaridas regulatórias mais claras para a operacionalização do controle de resultados é relevante. Pelas normas vigentes, muito se poderia resolver na esfera administrativa em relação à análise das contas quando o objeto, metas e resultados foram cumpridos. O art. 37 da Constituição Federal diz que todos devem prestar contas e as leis específicas dizem como deve ser feita essa prestação de contas. O MROSC, por exemplo, já deixou claro que a análise deve focar na obtenção de resultados, prioritariamente, mas ainda há resistência por parte dos servidores públicos sua aplicação. 

As entidades privadas sem fins lucrativos não são órgãos públicos e não devem ser tratadas como tal por executarem projetos e atividades conectadas a políticas públicas com recursos públicos. Precisam de mais segurança jurídica para empreender e gerar impacto. Melhor estaríamos se pudéssemos ter uma ambiência de mais estímulo às parcerias e não o contrário, haja vista a importância das organizações na formulação, entrega e avaliação de serviços e direitos.    

Está mais do que na hora de passar uma régua nos passivos expressivos de prestação de contas que se acumulam para análise e libertar as OSC e seus dirigentes dessa espada de Dâmocles. Se, por um lado, são notórios os avanços nos debates regulatórios, por outro, ainda temos muito o que evoluir em segurança jurídica efetiva no país. Reconhecer as especificidades do Terceiro Setor e de suas relações com o Estado nos tornará uma sociedade mais fortalecida e democrática.

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1 Art. 37. A administração pública direta e indireta de qualquer dos Poderes da União, dos Estados, do Distrito Federal e dos Municípios obedecerá aos princípios de legalidade, impessoalidade, moralidade, publicidade e eficiência e, também, ao seguinte: (...) § 5º A lei estabelecerá os prazos de prescrição para ilícitos praticados por qualquer agente, servidor ou não, que causem prejuízos ao erário, ressalvadas as respectivas ações de ressarcimento. 

2 Art. 1o  Prescreve em cinco anos a ação punitiva da Administração Pública Federal, direta e indireta, no exercício do poder de polícia, objetivando apurar infração à legislação em vigor, contados da data da prática do ato ou, no caso de infração permanente ou continuada, do dia em que tiver cessado.

§ 1o  Incide a prescrição no procedimento administrativo paralisado por mais de três anos, pendente de julgamento ou despacho, cujos autos serão arquivados de ofício ou mediante requerimento da parte interessada, sem prejuízo da apuração da responsabilidade funcional decorrente da paralisação, se for o caso.

Laís de Figueirêdo Lopes

Laís de Figueirêdo Lopes

Advogada, Doutoranda em Direito Público pela Universidade de Coimbra, Mestre em Direitos Humanos pela PUC/SP e Sócia de Szazi, Bechara, Storto, Reicher e Figueirêdo Lopes Advogados. Integra o Conselho Consultivo da Ouvidoria-Geral da Defensoria Pública do Estado de São Paulo e a Coordenação da Frente Jurídica da Coalizão Brasileira pela Educação Inclusiva. Foi Conselheira do Conade - Conselho Nacional dos Direitos das Pessoas com Deficiência representando o Conselho Federal da OAB, de 2006 a 2011, e Ex-Assessora Especial do Ministro da Secretaria-Geral da Presidência da República, de 2011 a 2016. Participou do comitê ad hoc de elaboração da Convenção sobre os Direitos das Pessoas com Deficiência da ONU de 2005 a 2006, e do processo de ratificação no Brasil de 2007 a 2009.

Juliana Brandão de Andrade

Juliana Brandão de Andrade

Advogada do escritório Szazi, Bechara, Storto, Reicher e Figueirêdo Lopes Advogados.

Rodrigo Kroth Bitencourt

Rodrigo Kroth Bitencourt

Advogado de Szazi, Bechara, Storto, Reicher e Figueirêdo Lopes Advogados, com Master of Laws (LL.M) em Direito Corporativo, IBMEC Business School e pós-graduado em processo civil pelo Instituto de Direito Romeu Felipe Bacellar.

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