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Tema 1.203 do STJ: O poder da fiança em créditos não tributários

Um marco para a segurança jurídica e a menor onerosidade do devedor, o Tema repetitivo 1.203/STJ pacifica a antiga controvérsia acerca da suspensão da exigibilidade do crédito não tributário.

quinta-feira, 7 de agosto de 2025

Atualizado em 6 de agosto de 2025 14:26

Em decisão de grande impacto para empresas que prestam serviços à Administração Pública, a 1ª seção do STJ, ao julgar o Tema repetitivo 1.203, estabeleceu um precedente vinculante fundamental: a apresentação de fiança bancária ou seguro-garantia é suficiente para suspender a exigibilidade de um crédito não tributário, desde que a garantia cumpra os requisitos legais. A tese, firmada em junho de 2025, encerra um longo período de incerteza jurisprudencial e representa um alinhamento da execução de dívidas civis e administrativas com os princípios da menor onerosidade para o devedor e da eficiência processual, consagrados no CPC de 2015.

O cenário anterior: Incerteza jurídica e expectativa do prestador

Antes da pacificação do Tema repetitivo 1.203 pelo STJ, a possibilidade de suspender a exigibilidade de créditos não tributários - como multas administrativas, taxas de ocupação, laudêmios, entre outros - mediante a apresentação de seguro-garantia ou fiança bancária, era um campo de grande divergência nos Tribunais de Justiça e Tribunais Regionais Federais.

Muitos juízos, por analogia equivocada, aplicavam a estes casos a lógica restritiva da súmula 112 do próprio STJ, que estabelece que "o depósito somente suspende a exigibilidade do crédito tributário se for integral e em dinheiro". Assim, a fundamentação era frequentemente invocada para rejeitar garantias que não fossem o pagamento do valor em espécie.

Essa prática gerava um cenário de insegurança e de alto custo para as empresas, em especial aquelas que prestam serviços à Administração Pública. A necessidade de depositar o valor integral do débito em juízo para poder discuti-lo judicialmente imobilizava capital de giro, afetando o fluxo de caixa e, por consequência, a atividade econômica. A recusa das garantias representava um forte desestímulo ao questionamento de dívidas, ainda que o devedor possuísse sólidos argumentos para sua defesa.

A decisão paradigmática no Tema 1.203/STJ

A controvérsia chegou ao STJ por meio de três Recursos Especiais (REsp 2.037.787/RJ, REsp 2.007.865/SP e REsp 2.050.751/RJ), que foram afetados para julgamento sob o rito dos repetitivos. O caso líder, originário do Rio de Janeiro, envolvia uma operadora de plano de saúde que buscava oferecer um seguro-garantia para suspender a exigibilidade de multa aplicada pela ANS - Agência Nacional de Saúde Suplementar.

Na decisão recorrida, o Tribunal Regional Federal da 2ª região posicionou-se indicando que "A jurisprudência é assente no sentido de que, em regra, defere-se a suspensão da exigibilidade mediante o depósito prévio, integral e em dinheiro dos valores em discussão, em analogia ao disposto no art. 151, II, do CTN. Em regra, o mero oferecimento do seguro garantia não leva à suspensão da exigibilidade do crédito não tributário, pois alguns problemas reiterados surgem, ligados à temporariedade da garantia e ao tema de fundo debatido, no qual o Judiciário é transformado em instância recursal de decisões da Administração."

Analisando o caso e reformando a decisão, o Ministro Afrânio Vilela conduziu o voto vencedor que resultou na fixação da seguinte tese "O oferecimento de fiança bancária ou de seguro-garantia, desde que corresponda ao valor atualizado do débito, acrescido de 30%, tem o efeito de suspender a exigibilidade do crédito não tributário, não podendo o credor rejeitá-lo, salvo se demonstrar insuficiência, defeito formal ou inidoneidade da garantia oferecida."

O fundamento central da decisão reside na aplicação direta do § 2º do artigo 835 do CPC, que equipara a fiança bancária e o seguro-garantia a dinheiro para fins de substituição de penhora, desde que acrescidos de 30% do valor do débito. O STJ entendeu que, se a lei processual confere a essas garantias um status de alta liquidez, a ponto de serem equiparáveis a dinheiro, não há razão lógica ou jurídica para negar-lhes o efeito de suspender a exigibilidade do crédito enquanto a dívida é discutida em juízo.

A distinção essencial: Créditos tributários vs. não tributários

A principal contribuição dogmática do Tema 1.203 foi estabelecer uma distinção clara e definitiva entre o regime jurídico aplicável à suspensão da exigibilidade dos créditos tributários e o aplicável aos créditos não tributários. Por anos, a ausência dessa distinção foi a fonte da controvérsia.

O ponto crucial da decisão foi o raciocínio de que a lei de execução fiscal não trata expressamente da suspensão da exigibilidade do crédito. No Direito Tributário, o art. 151 do Código Tributário Nacional prevê a possibilidade de suspensão da exigibilidade mediante depósito em dinheiro. No entanto, no caso dos créditos não tributários, a suspensão da exigibilidade não se limita às situações previstas no referido dispositivo, sendo admissível, nesses casos, a aplicação do art. 9º, II, § 3º, da lei 6.830/1980, combinado com o art. 835, § 2º, do CPC/15, os quais reconhecem a fiança bancária e o seguro garantia como formas legítimas de garantir a execução, equiparando-os ao depósito em dinheiro.

Com isso, concluiu-se que a fiança bancária e o seguro garantia judicial, além de atenderem ao princípio da menor onerosidade (art. 805 do CPC/15), produzem os mesmos efeitos jurídicos que o depósito em dinheiro, garantindo segurança e liquidez ao crédito do exequente. Aliado a isso, a idoneidade da garantia deve ser aferida com base na conformidade de suas cláusulas com as normas expedidas pelas autoridades competentes, sendo que a simples estipulação de um prazo de validade determinado não enseja, por si só, sua inidoneidade.

Implicações práticas da tese firmada

A decisão do Tema 1.203 traz consequências práticas imediatas e positivas:

Para os devedores: A principal vantagem é a preservação do capital de giro. Em vez de imobilizar recursos financeiros significativos em um depósito judicial, a empresa pode contratar um seguro-garantia ou uma fiança bancária, cujo custo é uma fração do valor total da dívida. Isso libera o fluxo de caixa para investimentos, pagamento de salários e manutenção da atividade produtiva, em total conformidade com o princípio da menor onerosidade (art. 805 do CPC).

Para os credores (públicos ou privados): A decisão não deixa o credor desprotegido. A tese exige que a garantia seja idônea e corresponda ao valor do débito atualizado com um acréscimo de 30%. Esse percentual adicional serve justamente para cobrir custos acessórios, como juros e honorários advocatícios, que possam surgir ao longo do processo.

Além disso, o credor mantém o direito de recusar a apólice ou a carta de fiança caso demonstre, de forma fundamentada e efetiva, a ausência dos requisitos quantitativos e qualitativos da fiança.

Requisito quantitativo: a garantia deve corresponder ao valor atualizado do débito, acrescido de 30%. Esse acréscimo, já previsto no § 2º do art. 835 do CPC, não é arbitrário; sua finalidade é conferir uma margem de segurança ao credor, garantindo a cobertura de encargos legais, juros, correção monetária e eventuais honorários que possam se acumular ao longo da discussão judicial.

Requisito é qualitativo: insuficiência, defeito formal ou inidoneidade. A insuficiência refere-se ao valor da garantia que não atende ao requisito quantitativo. O defeito formal abrange vícios no instrumento, como a ausência de cláusulas essenciais, informações incorretas ou o descumprimento de formalidades exigidas pelos órgãos reguladores, como a SUSEP - Superintendência de Seguros Privados ou o BACEN - Banco Central.

O conceito de inidoneidade é o mais aberto, mas a jurisprudência já fornece balizas para sua interpretação. Refere-se à capacidade real da garantia de satisfazer o crédito ao final do processo. Um ponto importante, já pacificado pelo próprio STJ e reiterado no julgamento, é que a mera estipulação de um prazo de validade na apólice de seguro ou na carta de fiança não a torna, por si só, inidônea, desde que haja previsão de renovação automática ou que a renovação seja comprovada antes do vencimento. A inidoneidade estaria ligada, por exemplo, à questionável solidez financeira da instituição garantidora ou à existência de cláusulas na apólice que restrinjam indevidamente a cobertura.

Para o sistema de Justiça: A pacificação do tema gera previsibilidade e segurança jurídica, reduzindo a litigiosidade nos processos sobre essa questão instrumental. Com uma tese vinculante, juízes de todo o país seguirão a mesma orientação, evitando decisões conflitantes e diminuindo o número de recursos que chegam aos tribunais superiores.

Conclusão

A decisão proferida pela 1ª seção do STJ no Tema repetitivo 1.203 não representa uma ruptura, mas sim a consolidação de uma evolução legislativa e jurisprudencial que se desenhava há mais de uma década. Ao estabelecer que o seguro-garantia e a fiança bancária são instrumentos hábeis a suspender a exigibilidade de créditos não tributários, o Tribunal não apenas resolveu uma controvérsia jurídica, mas também supriu uma lacuna legislativa e fortaleceu um ambiente de negócios mais equilibrado e dinâmico.

A decisão prestigia o CPC de 2015 e reafirma que a busca pela satisfação do crédito deve caminhar lado a lado com a preservação da atividade econômica, garantindo que o processo seja um instrumento de justiça, e não um obstáculo ao desenvolvimento. O resultado é um sistema mais equilibrado e racional.

Portanto, garante-se ao devedor o direito de discutir suas obrigações sem sofrer um estrangulamento financeiro desproporcional, ao mesmo tempo em que se protege de forma robusta, moderna e eficaz o interesse público na satisfação de seus créditos. Assim, o Tema 1.203 é uma demonstração da capacidade do Judiciário de adaptar a aplicação da lei às realidades econômicas e sociais, promovendo justiça e previsibilidade para todos os envolvidos.

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Referências

BRASIL. Lei n. 13.105, de 16 de março de 2015. Código de Processo Civil. Disponível em: https://www.planalto.gov.br/ccivil_03/_ato2015-2018/2015/lei/l13105.htm. Acesso em: 05 ago. 2025.

BRASIL. Lei n. 5.172, de 25 de outubro de 1966. Código Tributário Nacional. Disponível em: https://www.planalto.gov.br/ccivil_03/leis/l5172compilado.htm. Acesso em: 05 ago. 2025.

DEMAREST ADVOGADOS. STJ firma tese vinculante sobre suspensão da exigibilidade de créditos não tributários mediante apresentação de seguro-garantia ou fiança bancária. Publicado em 14 de junho de 2024. Disponível em: https://www.demarest.com.br/stj-firma-tese-vinculante-sobre-suspensao-da-exigibilidade-de-creditos-nao-tributarios-mediante-apresentacao-de-seguro-garantia-ou-fianca-bancaria/. Acesso em: 05 ago. 2025.

MIGALHAS. STJ: fiança e seguro-garantia suspendem exigibilidade de crédito não tributário. Publicado em 13 de junho de 2024. Disponível em: https://www.migalhas.com.br/quentes/408994/stj-fianca-e-seguro-garantia-suspendem-exigibilidade-de-credito-nao-tributario. Acesso em: 05 ago. 2025.

STJ NOTÍCIAS. Fiança bancária e seguro-garantia podem suspender exigibilidade de crédito não tributário. Publicado em 12 de junho de 2024. Disponível em: https://www.stj.jus.br/sites/portalp/Paginas/Comunicacao/Noticias/2024/12062024-Fianca-bancaria-e-seguro-garantia-podem-suspender-exigibilidade-de-credito-nao-tributario.aspx. Acesso em: 05 ago. 2025.

SUPERIOR TRIBUNAL DE JUSTIÇA. Recurso Especial n. 2.007.865/SP (leading case do Tema 1.203). Relator: Ministro Afrânio Vilela. Primeira Seção. Julgado em 12 de junho de 2024. Disponível em: https://processo.stj.jus.br/processo/pesquisa/?termo=REsp+2007865. Acesso em: 05 ago. 2025.

SUPERIOR TRIBUNAL DE JUSTIÇA. Súmula n. 112. Disponível em: https://www.stj.jus.br/docs_internet/SumulasSTJ.pdf. Acesso em: 05 ago. 2025.

SUPERIOR TRIBUNAL DE JUSTIÇA. Tema Repetitivo n. 1.203. Relator: Ministro Afrânio Vilela. Primeira Seção. Julgado em 12 de junho de 2024. Disponível em: https://processo.stj.jus.br/repetitivos/temas_repetitivos/pesquisa.jsp?novaConsulta=true&tema=1203. Acesso em: 05 ago. 2025.

Bruno Aviani Jucá da Costa Valença

Bruno Aviani Jucá da Costa Valença

OAB/DF 78.838. Bacharel em Direito pelo UniCeub. Especialização em Direito Digital pelo UniCeub. Atuação voltada para o direito tributário, empresarial e cível.

Giovana Sousa Ferreira

Giovana Sousa Ferreira

Advogada Tributarista. Bacharel em Direito pelo UniCeub. Especialização em Direito Administrativo pela FGV. MBA em Gestão Tributária pela USP. Ex-Conselheira Fiscal da International Association of Artificial Intelligence (I2AI) - Biênio 2023/2024. Membro da Comissão de Assuntos Tributários da OAB/DF.

Gustavo Borges de Melo

Gustavo Borges de Melo

Advogado Tributarista. Bacharel em Direito pela UDF. Especialização em Direito Civil e Processo Civil. Cursando MBA em Gestão Tributária na USP

Menndel Assunção Oliver Macedo

Menndel Assunção Oliver Macedo

Advogado Tributarista. Bacharel em Direito pelo UniCeub. Especialização em Direito, Estado e Constituição pelo SuiJuris. MBA na Massachusetts Institute of Business (MIB) Especialização em Contabilidade Tributária no IBET. Diretor Jurídico da Câmara Brasil-Ásia (CBA). Cientista Tributário da Federação Nacional das Operações Portuárias (FENOP).

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