A cegueira normativa do Rio de Janeiro diante do STF
Estado do Rio de Janeiro insiste em não enxergar o posicionamento já firmado pela mais alta corte do país e amplia a cobrança do fundo que retira parte dos incentivos fiscais concedidos às empresas.
segunda-feira, 20 de outubro de 2025
Atualizado em 17 de outubro de 2025 11:25
O título deste artigo remete ao clássico romance de José Saramago, no qual a sociedade, tomada por uma inexplicável epidemia de cegueira, se dá conta que o verdadeiro colapso não é o da perda repentina da visão em si, mas da própria consciência.
Em nossa realidade institucional, o fenômeno não poderia ser menos simbólico, na medida em que o Estado do Rio de Janeiro, mesmo diante de decisão do STF a respeito dos limites jurídicos para instituição de fundos tendo como base de aferição o valor de benefícios fiscais concedidos, insiste em não enxergar o posicionamento trazido pela mais alta corte do país.
Em essência, o Erário aparenta fazer as vezes de "cegos que, vendo, não veem", nas palavras do festejado autor português.
No caso fluminense, essa cegueira normativa manifesta-se através do PL 6.034/25, que tenta majorar o FOT - Fundo Orçamentário Temporário, de 10% para 30%. Além das questões econômicas envolvidas no aumento abrupto da carga tributária para os contribuintes que gozam de benefícios fiscais no Estado do Rio, deliberadamente se está deixando de observar determinações do STF, conhecida tática de correção de jurisprudência por vias obscuras.
A iniciativa do PL em questão ignora o conteúdo vinculante das decisões do STF, especialmente no RE 1.506.320/RJ (Tema 1386), que, reafirmando a jurisprudência formada na ADI 5.635, reconheceu a constitucionalidade do FOT, porém resguardou o princípio da não cumulatividade, já que não foi afastada sua natureza jurídica de ICMS.
Contudo, nem uma linha sequer a respeito é dedicada no citado PL, cujo objetivo, sem meias palavras, é tão somente arrecadar. Ao omitir tal aspecto, o legislador desconsidera não apenas o comando jurisprudencial, mas também a racionalidade técnica do próprio sistema do imposto, cujo equilíbrio depende da preservação integral dos créditos.
Some-se a isso o recado que o legislativo passa aos contribuintes e cidadãos fluminenses, de que os anos a fio de contenda judicial que resultaram, ao menos, no reconhecimento da necessidade de escrituração do crédito do FOT pago, em respeito à não cumulatividade, não serviram de nada como parâmetro de segurança jurídica e estabilização orçamentária, levando a que, provavelmente, o Judiciário tenha que ser novamente acionado para a preservação do direito constitucional em questão.
Além do ponto destacado acima, o projeto mantém silêncio absoluto acerca do alcance do FOT sobre benefícios fiscais concedidos por prazo certo e sob condição onerosa, além daqueles instituídos via CONFAZ. Ao assim se omitir, afeta diretamente aquilo que o art. 178 do CTN e a LC 159/17 vedam expressamente: a revogação ou diminuição de incentivos condicionados, cujo gozo integra a própria estrutura do direito adquirido do contribuinte.
O ensaio de manter o FOT nesses termos configura, em essência, afronta à segurança jurídica, à estabilidade dos regimes fiscais e, em último turno, à própria economia fluminense, atingindo em cheio, por exemplo, a indústria que mais contribui para a equação financeira do Rio: a de óleo e gás, motor de crescimento do nosso combalido Estado.
Neste particular, é assombrosa a tentativa de tributar pelo FOT o benefício do REPETRO-SPED (além de outros benefícios relacionados à indústria), o qual permite a importação ou aquisição interna de bens destinados às atividades de exploração, desenvolvimento e produção de petróleo e gás natural com suspensão ou isenção de tributos, tornando a atividade atrativa e competitiva. Em poucas palavras, verdadeiro tiro no pé!
Felizmente, o TJ/RJ tem reagido à essas ilegalidades, reconhecendo que não devem se submeter ao FOT os benefícios onerosos e concedidos por prazo certo, além daqueles instituídos via CONFAZ (caso do REPETRO-SPED), como na decisão proferida pela 9ª Câmara de Direito Público (mandado de segurança 0073789-29.2020.8.19.0001), onde restou consignado que "a exigência de contribuição ao FOT - Fundo Orçamentário Temporário, instituído pela lei estadual 8.645/19, não pode incidir sobre os benefícios fiscais usufruídos pela impetrante que tenham sido instituídos por convênios celebrados no âmbito do CONFAZ, por prazo certo e sob condição onerosa, como o REPETRO-SPED, sob pena de violação ao art. 178 do CTN, ao princípio da segurança jurídica e ao direito adquirido."
Desta forma, tal qual o vencedor do Nobel de Literatura demonstra em seu clássico atemporal, a falta de visão do Estado do Rio de Janeiro não é um acidente institucional, mas escolha deliberada de não enxergar os limites da legalidade, verdadeira cegueira seletiva, que observa apenas o curto prazo e o imediatismo da busca incessante pela receita em detrimento da insegurança jurídica que gera, do afastamento daqueles que confiaram em investir em nosso Estado, aniquilando previsões orçamentárias de grandes empresas e projetos estruturais essenciais que confiaram não apenas na manutenção de uma alíquota de 10% já bastante onerosa, mas além disso, enxergaram na decisão do STF um novo norte a balizar a legalidade na relação jurídico-tributária com o Erário Fluminense.
Ao final do clássico de Saramago, repentinamente, os enfermos voltam a enxergar. Podemos ter tal esperança?
Marcelo Carvalho Pereira
Sócio do escritório Gaia Silva Gaede Advogados no Rio de Janeiro.
Leonardo Gusmão
Graduado em Direito pela UERJ. Pós-graduado Lato Sensu em Direito Tributário pela Universidade Cândido Mendes. Membro da Comissão Especial de Assuntos Tributários da OAB/RJ. Professor nos cursos de Direito Tributário da ESA. Sócio do Gaia Silva Gaede Advogados.
Pedro de Alvarenga Sardinha
Graduado pela PUC/RJ. Larga experiência no Direito Tributário, concentrando a atuação em Contencioso Administrativo e Judicial, nas esferas municipal, estadual e federal. Advogado tributário do Gaia Silva Gaede Advogados.





