CPC na prática

"Iura novit cúria" e o princípio do contraditório

"Iura novit cúria" e o princípio do contraditório.

14/10/2021

Nos dias 26 a 28 de setembro de 2021, aconteceram as XIII Jornadas de Direito Processual Civil e houve uma série de palestras dedicadas a homenagear o Professor Carlos Alberto Alvaro de Oliveira.

Na ocasião, tomei a liberdade de trazer como inspiração um artigo do saudoso professor que chegou ao meu conhecimento quando ainda estava no curso de graduação da Faculdade de Direito do Largo São Francisco. Trata-se de “A garantia do contraditório”, publicada em uma coletânea coordenada pelo meu então professor José Rogério Cruz e Tucci1.

Nesse artigo, o autor aborda o tema da decisão que surpreende os litigantes em um processo por se apoiar "numa visão jurídica de que não se tenham apercebido"2. Afirma, categoricamente, que "o tribunal deve, portanto, dar conhecimento prévio de qual direção o direito subjetivo corre perigo, permitindo-se o aproveitamento na sentença apenas dos fatos sobre os quais as partes tenham tomado posição, possibilitando-as assim melhor defender o seu direito e influenciar a decisão judicial"3.

Em outras palavras, mais de quinze anos antes da entrada em vigor do atual Código de Processo Civil (Lei n. 13.105/2015), Carlos Alberto Alvaro de Oliveira já se manifestava contra a decisão-surpresa que é proibida hoje pelo art. 10 (“O juiz não pode decidir, em grau algum de jurisdição, com base em fundamento a respeito do qual não se tenha dado às partes oportunidade de se manifestar, ainda que se trate de matéria sobre a qual deva decidir de ofício”), como decorrência do próprio princípio do contraditório insculpido no art. 5º, LV, da Constituição Federal.

Com efeito, Carlos Alberto Alvaro de Oliveira critica com veemência a aplicação de dois aforismos sem a prévia observância do contraditório pelo juiz. Os aforismos são da mihi factum, dabo tibi ius e iura novitu cúria.

Quanto ao primeiro (da mihi factum, dabo tibi ius), ele diz "(...) afigura-se algo arbitrário valorizar abstratamente a aquisição ou o juízo sobre o fato, como totalmente divorciados do juízo de direito. Não somente se exibe artificial a distinção entre fato e direito – porque no litígio fato e direito se interprenetram –, mas perde força sobretudo o tema ora em exame, em virtude da necessidade do fato na construção do direito e da correlativa indispensabilidade da regra jurídica para determinar a relevância do fato."4

No tocante ao segundo (iura novi curia), ele ensina "O mesmo sucede em relação ao aforismo iura novit curia, a impor ao juiz, na sua conceituação tradicional, conhecer o direito e investigá-lo de ofício, caso não o conheça, tornando-o também totalmente independente na sua aplicação dos pedidos e alegações das partes a respeito, permitindo-lhe extrair do material fático trazido pelas partes conclusões jurídicas não aportadas por elas nos autos"5. E continua, "todavia, nada obstante a liberdade desfrutada pelo órgão judicial nessa matéria, podem e devem as partes aportar a sua cooperação também quanto à valorização jurídica da realidade externa ao processo, investigação que hoje de modo nenhum pode constituir labuta exclusiva do órgão judicial".6

Lamentavelmente, o Superior Tribunal de Justiça, em pelo menos um julgado, deixa transparecer que o seu entendimento está bastante aquém da inteligência de Carlos Alberto Alvaro de Oliveira. Confira-se:

"PROCESSUAL CIVIL. RECURSO ESPECIAL. PRINCÍPIO DA NÃO SURPRESA.

ACÓRDÃO QUE, EM APELAÇÃO, DECLAROU A INÉPCIA DA INICIAL. INEXISTÊNCIA DE FUNDAMENTO JURÍDICO DECORRENTE DE FATOS NOVOS. DESNECESSIDADE DE INTIMAÇÃO DAS PARTES PARA MANIFESTAÇÃO PRÉVIA. OFENSA AO ARTIGO 10 DO CPC NÃO CONFIGURADA.

1. Na origem, trata-se de Ação Civil Pública movida pelo Ministério Público do Estado de Minas Gerais com o argumento de que os réus, ora recorridos, são herdeiros de um vereador, já falecido, do município de Juramento, que, no exercício do cargo, recebeu indevidamente, no ano de 1991, a importância de R$ 8.026,82 (oito mil, vinte e seis reais e oitenta e dois centavos) atualizada até outubro de 2011. Como, na partilha dos bens deixados pelo falecido, cada um recebeu a importância de R$ 34.836,10 (trinta e quatro mil, oitocentos e trinta e seis reais e dez centavos), ficam obrigados a devolver o que foi recebido indevidamente pelo autor da herança, sob pena de enriquecimento ilícito.

2. A sentença julgou procedente o pedido. Por sua vez, o Tribunal de origem julgou "prejudicado o recurso voluntário, para cassar a sentença e, dar pela nulidade do processo desde o início, em face da inépcia da petição inicial, nos termos do art. 295, I, § único, I e II, do anterior ou art. 330, § 1°, I e III, do novo Código de Processo Civil." (grifos no original).

3. Cinge-se a controvérsia a discutir a violação do art. 10 do Código de Processo Civil, que veda a chamada "decisão-surpresa", pois, no entender da parte recorrente, o Tribunal a quo não poderia ter declarado a inépcia da inicial antes de ter-lhe facultado manifestar-se sobre esse fundamento legal, uma vez que a questão ainda não havia sido discutida nos autos.

4. O art. 10 do CPC/2015 deve ser interpretado cum grano salis e com uso da técnica hermenêutica não ampliativa, à luz do princípio da não surpresa. Nesse sentido, "a aplicação do princípio da não surpresa não impõe, portanto, ao julgador que informe previamente às partes quais os dispositivos legais passíveis de aplicação para o exame da causa. O conhecimento geral da lei é presunção jure et de jure." (AgInt no REsp 1.701.258/SP, Rel. Ministra Maria Isabel Gallotti, Quarta Turma, DJe de 29.10.2018).

(...)

 (REsp 1781459/MG, Rel. Ministro HERMAN BENJAMIN, SEGUNDA TURMA, julgado em 02/06/2020, DJe 21/08/2020)"

A Constituição Federal (art. 5º, LV) e a lei (CPC, art. 10) são evidentes no sentido de proibir que seja tomada uma decisão cujo fundamento não tenha sido objeto de conhecimento prévio das partes, ainda que exista autorização para se conhecer de ofício. No julgamento acima, o tribunal reconheceu a inépcia da petição inicial, sem que tivesse sido dada oportunidade para as partes se manifestarem sobre a questão. Ninguém duvida que o juiz ou desembargador possam fazer isso (reconhecer a inépcia de uma petição inicial). Mas o que não se pode fazer, é deixar de viabilizar o contraditório antes de se tomar tal decisão. Ou seja, é inaceitável negar para as partes a oportunidade de se manifestarem sobre a suposta inépcia da inicial antes que ela seja decretada. Veja-se, o aforismo iura novit curia não deixa de ser aplicado nesse caso. Apenas se dá às partes a oportunidade de influenciarem o juiz antes de ele tomar uma decisão baseada na lei que ele entendeu e anunciou ser aplicável ao processo.

Ademais, não é só o interesse das partes que está em jogo, mas a própria credibilidade do Poder Judiciário. Como ensina Carlos Alberto Alvaro de Oliveira, "a problemática não diz respeito apenas ao interesse das partes, mas conecta-se intimamente com o próprio interesse público, na medica em que qualquer surpresa, qualquer acontecimento inesperado, só faz diminuir a fé do cidadão na administração da justiça" (grifos nossos).7

Talvez por isso a fé do cidadão na administração da justiça venha minguando a cada dia que passa e as palavras do professor Carlos Alberto Alvaro de Oliveira, apesar de terem sido lançadas no século passado, são tão atuais.

__________

1 OLIVEIRA, Carlos Alberto Alvaro de. A garantia do contraditório. In.: CRUZ E TUCCI, José Rogério (coord.). Garantias constitucionais do processo civil: homenagem aos 10 anos da Constituição Federal de 1988. São Paulo: Revista dos Tribunais, 1999. p. 132-150.

2 OLIVEIRA, Carlos Alberto Alvaro de. A garantia do contraditório. In.: CRUZ E TUCCI, José Rogério (coord.). Garantias constitucionais do processo civil: homenagem aos 10 anos da Constituição Federal de 1988. São Paulo: Revista dos Tribunais, 1999. p. 143.

3 OLIVEIRA, Carlos Alberto Alvaro de. A garantia do contraditório. In.: CRUZ E TUCCI, José Rogério (coord.). Garantias constitucionais do processo civil: homenagem aos 10 anos da Constituição Federal de 1988. São Paulo: Revista dos Tribunais, 1999. p. 143.

4 OLIVEIRA, Carlos Alberto Alvaro de. A garantia do contraditório. In.: CRUZ E TUCCI, José Rogério (coord.). Garantias constitucionais do processo civil: homenagem aos 10 anos da Constituição Federal de 1988. São Paulo: Revista dos Tribunais, 1999. p. 140.

5 OLIVEIRA, Carlos Alberto Alvaro de. A garantia do contraditório. In.: CRUZ E TUCCI, José Rogério (coord.). Garantias constitucionais do processo civil: homenagem aos 10 anos da Constituição Federal de 1988. São Paulo: Revista dos Tribunais, 1999. p. 141.

6 OLIVEIRA, Carlos Alberto Alvaro de. A garantia do contraditório. In.: CRUZ E TUCCI, José Rogério (coord.). Garantias constitucionais do processo civil: homenagem aos 10 anos da Constituição Federal de 1988. São Paulo: Revista dos Tribunais, 1999. p. 144.

7 OLIVEIRA, Carlos Alberto Alvaro de. A garantia do contraditório. In.: CRUZ E TUCCI, José Rogério (coord.). Garantias constitucionais do processo civil: homenagem aos 10 anos da Constituição Federal de 1988. São Paulo: Revista dos Tribunais, 1999. p. 144.

Veja mais no portal
cadastre-se, comente, saiba mais

Colunistas

André Pagani de Souza é doutor, mestre e especialista em Direito Processual Civil pela PUC/SP. Bacharel em Direito pela USP. Professor de Direito Processual Civil e coordenador do Núcleo de Prática Jurídica da Universidade Presbiteriana Mackenzie em São Paulo. Pós-doutorando em Direito pela Faculdade de Direito da Universidade de Lisboa. Autor de diversos trabalhos na área jurídica. Membro do IBDP, IASP e CEAPRO. Advogado.

Daniel Penteado de Castro é mestre e doutor em Direito Processual pela Universidade de São Paulo. Especialista em Direito dos Contratos pelo Centro de Extensão Universitária. Membro fundador e conselheiro do CEAPRO – Centro de Estudos Avançados em Processo. Membro do Instituto Brasileiro de Direito Processual – IBDP. Professor na pós-graduação Lato Sensu na Universidade Mackenzie, Escola Paulista de Direito e Escola Superior da Advocacia. Professor de Direito Processual Civil na graduação do Instituto de Direito Público. Advogado e Autor de livros jurídicos.

Elias Marques de M. Neto tem pós-doutorado em Direito Processual Civil na Faculdade de Direito da Universidade de Lisboa (2015). Pós Doutorado em Democracia e Direitos Humanos, com foco em Direito Processual Civil, na Faculdade de Direito da Universidade de Coimbra/Ius Gentium Conimbrigae (2019). Pós Doutorado em Direitos Sociais, com foco em Direito Processual Civil, na Faculdade de Direito da Universidade de Salamanca (2022). Pesquisador visitante no Instituto Max Planck, em Direito Processual Civil (2023). Doutor (2014) e Mestre (2009) em Direito Processual Civil pela PUC/SP. MBA em Gestão Empresarial pela FGV (2012). Especialista em Direito da Economia e da Empresa pela FGV (2006). Especializações em Direito Processual Civil (2004) e em Direito dos Contratos (2005) pelo IICS/CEU. Especialização em Direito do Agronegócio pela FMP (2024). Pós Graduação Executiva nos Programas de Negociação (2013) e de Mediação (2015) da Harvard Law School. Pós Graduação Executiva em Business Compliance na University of Central Florida - UCF (2017). Pós Graduação Executiva em Mediação e Arbitragem Comercial Internacional pela American University / Washington College of Law (2018). Pós Graduação Executiva em U.S. Legal Practice and ADR pela Pepperdine University/Straus Institute for Dispute Resolution (2020). Curso de Extensão em Arbitragem (2016) e em Direito Societário (2017) pelo IICS/CEU. Bacharel em Direito pela USP (2001). Professor Doutor de Direito Processual Civil no Curso de Mestrado e Doutorado na Universidade de Marilia - Unimar (desde 2014), nos cursos de Especialização do CEU-Law (desde 2016) e na graduação da Facamp (desde 2021). Professor Colaborador na matéria de Direito Processual Civil em cursos de Pós Graduação Lato Sensu e Atualização (destacando-se a EPD, Mackenzie, PUC/SP-Cogeae, UCDB, e USP-AASP). Advogado. Sócio de Resolução de Disputas do TozziniFreire Advogados (desde 2021). Atuou como Diretor Executivo Jurídico e Diretor Jurídico de empresas do Grupo Cosan (2009 a 2021). Foi associado sênior do Barbosa Mussnich e Aragão Advogados (2002/2009). Apontado pela revista análise executivos jurídicos como o executivo jurídico mais admirado do Brasil nas edições de 2018 e de 2020. Na mesma revista, apontado como um dos dez executivos jurídicos mais admirados do Brasil (2016/2019), e como um dos 20 mais admirados (2015/2017). Recebeu do CFOAB, em 2016, o Troféu Mérito da Advocacia Raymundo Faoro. Apontado como um dos 5 melhores gestores de contencioso da América Latina, em 2017, pela Latin American Corporate Counsel Association - Lacca. Listado em 2017 no The Legal 500's GC Powerlist Brazil: Teams. Recebeu, em 2019, da Associação Brasil Líderes, a Comenda de Excelência e Qualidade Brasil 2019, categoria Profissional do Ano/Destaque Nacional. Recebeu a medalha Mérito Acadêmico da ESA-OABSP (2021). Listado, desde 2021, como um dos advogados mais admirados do Brasil na Análise 500. Advogado recomendado para Resolução de Disputas, desde 2021, nos guias internacionais Legal 500, Latin Lawyer 250, Best Lawyers e Leaders League. Autor de livros e artigos no ramo do Direito Processual Civil. Presidente da Comissão de Direito Processual Civil da OAB/SP, Pinheiros (desde 2013). Presidente da Comissão de Energia do IASP (desde 2013). Vice Presidente da Comissão de Direito Processual Civil da OAB/SP (desde 2019). Membro fundador e Conselheiro (desde 2023) do Ceapro, tendo sido diretor nas gestões de 2013/2023. Conselheiro curador da célula de departamentos jurídicos do CRA/SP (desde 2016). Membro de comitês do Instituto Articule (desde 2018). Membro da lista de árbitros da Camarb. Membro do Instituto Brasileiro de Direito Processual (IBDP), do CBar e da FALP. Foi presidente da Comissão de Defesa da Segurança Jurídica do Conselho Federal da OAB (2015/2016), Conselheiro do CORT/FIESP (2017), Coordenador do Núcleo de Direito Processual Civil da ESA-OAB/SP (2019/2021) e Secretário da comissão de Direito Processual Civil do CFOAB (2019/2021).

Rogerio Mollica é doutor e mestre em Direito Processual Civil pela USP. Especialista em Administração de Empresas CEAG-Fundação Getúlio Vargas/SP. Especialista em Direito Tributário pelo Instituto Brasileiro de Estudos Tributários – IBET. Bacharel em Direito pela USP. Professor doutor nos cursos de mestrado e doutorado na Universidade de Marilia - Unimar. Advogado. Membro fundador, ex-conselheiro e ex-presidente do Ceapro - Centro de Estudos Avançados de Processo. Membro do Instituto Brasileiro de Direito Processual (IBDP). Membro do Instituto Brasileiro de Direito Tributário (IBDT).