Família e Sucessões

Viúvo ou ex-cônjuge têm o dever de colacionar as liberalidades recebidas?

A questão, nesse caso, é saber se o ex-cônjuge tem ou não o dever de colacionar as liberalidades recebidas. O exemplo que indicamos no início do artigo realça exatamente essa questão. Pois bem, sobre essa problemática, existem duas correntes bem definidas.

29/11/2023

Começamos este texto com um caso concreto, a fim de analisar a polêmica do seu tema central. Suponha-se que um marido tenha doado um apartamento, de um milhão de reais, para a sua esposa. Na época, esse marido tinha um outro imóvel, uma casa também de um milhão de reais. Tempos depois, o marido vende a casa e gasta o dinheiro com viagens de luxo pelo mundo afora. Após acabar o dinheiro, gasto por ele, o casal entra em uma grave crise, se divorcia e a ex-esposa permanece com o apartamento doado como um bem particular.

Alguns anos depois, o ex-marido falece, sem deixar qualquer bem aos seus herdeiros. Supondo-se que o falecido tenha deixado dois filhos unilaterais (descendentes apenas dele, e não da esposa), indaga-se: esses filhos podem exigir da ex-madrasta a colação daquele apartamento?

O caso acima chama a atenção para uma questão que não está bem explicitada no texto do Código Civil, qual seja a dúvida se o viúvo ou o ex-cônjuge têm ou não o dever de colacionar. A resposta para essa indagação gira em torno dos arts. 544 e 2.002 do Código Civil. De acordo com o primeiro comando, inserido no capítulo da codificação privada que trata dos contratos em espécie, “a doação de ascendentes a descendentes, ou de um cônjuge a outro, importa adiantamento do que lhes cabe por herança”. Já o segundo preceito enuncia que “os descendentes que concorrerem à sucessão do ascendente comum são obrigados, para igualar as legítimas, a conferir o valor das doações que dele em vida receberam, sob pena de sonegação”. Ainda, consoante o parágrafo único desse art. 2.002, “para cálculo da legítima, o valor dos bens conferidos será computado na parte indisponível, sem aumentar a disponível”.

Observe-se que os dois dispositivos possuem uma aparente contradição em relação ao cônjuge. O art. 544 do Código Civil prevê que a liberalidade feita ao cônjuge implica antecipação de herança. Todavia, contraditoriamente, o art. 2.002 da Lei Geral Privada não menciona o viúvo como obrigado a colacionar as liberalidades recebidas. Trata-se de um grave lapso do legislador, pois o instituto da colação destina-se exatamente a permitir que os herdeiros necessários – especificamente os descendentes e o cônjuge – igualem os quinhões hereditários (rectius, as legítimas ou reservas, quotas destinadas aos herdeiros necessários). Devem ser levados em conta, para tanto, o monte-mor e as heranças antecipadas em vida por meio de liberalidades.

Como lembram Pablo Stolze Gagliano e Rodolfo Pamplona Filho, “a tal processo de conferência de valores, para igualação das legítimas, é dado o nome de colação” (Novo curso de direito civil. 10. ed. São Paulo: Saraiva, 2023. p. 404). Conforme o segundo autor deste texto e João Costa-Neto em seu manual de Direito civil: “disciplinado nos arts. 2.002 ao 2.012 do CC, a colação é instituto destinado a viabilizar que os herdeiros necessários igualem os seus quinhões sobre a legítima, computando, para esse efeito, as liberalidades feitas pelo falecido” (Direito civil. 3. ed. Rio de Janeiro: Forense, 2023. p. 1489).

Definido o instituto, a citada contradição é resolvida pela doutrina majoritária para as hipóteses em que estamos diante de um viúvo, e não de um ex-cônjuge, caso de um divorciado. Como o viúvo é também um herdeiro, é forçoso reconhecer seu dever de colacionar, apesar da omissão do art. 2.002 do Código Civil. Isso, porque o art. 544 da codificação é expresso em categorizar a liberalidade recebida como antecipação do que lhe cabe por herança. Como realçado pelo primeiro autor no volume 6 de sua coleção de Direito civil ao tratar do lapso redacional do retrocitado art. 2.002, “filiamo-nos à corrente doutrinária pela qual o cônjuge também é destinatário do referido dever legal (por todos, DINIZ, Maria Helena. Código ..., 2003, p. 1356; LÔBO, Paulo. Direito ..., 2012, p. 89; DIAS, Maria Berenice. Manual ..., 2011, p. 594; e VELOSO, Zeno. Comentários ..., 2003, p. 413)” (TARTUCE, Flávio. Direito civil. 16. ed. Rio de Janeiro: Forense, 2023. v. 6: Direito das sucessões. p. 574).

Portanto, no exemplo que mencionamos no início deste texto, se não tivesse ocorrido o divórcio do casal, a viúva teria o dever de colacionar o apartamento de um milhão de reais recebido a título de doação do falecido marido, para igualar os quinhões hereditários devidos aos dois filhos dele. Isso sob pena de imposição a ela da pena de sonegados, com a perda dos direitos sobre o imóvel, como está no art. 1.992 do Código Civil, in verbis: “o herdeiro que sonegar bens da herança, não os descrevendo no inventário quando estejam em seu poder, ou, com o seu conhecimento, no de outrem, ou que os omitir na colação, a que os deva levar, ou que deixar de restituí-los, perderá o direito que sobre eles lhe cabia”.

O problema, porém, reside na hipótese em que, antes do falecimento, tenha ocorrido o fim do relacionamento do casal. A questão, nesse caso, é saber se o ex-cônjuge tem ou não o dever de colacionar as liberalidades recebidas. O exemplo que indicamos no início do artigo realça exatamente essa questão. Pois bem, sobre essa problemática, existem duas correntes bem definidas.

A primeira delas afirma que o ex-cônjuge não tem qualquer dever de colação, pois trata-se de instituto reservado apenas a herdeiros necessários, especificamente aos descendentes e ao cônjuge que ainda mantinha vínculo conjugal com o falecido ao tempo da morte. Em síntese, como o ex-cônjuge não é herdeiro por ter rompido o vínculo conjugal antes da abertura da sucessão mortis causa, nada lhe caberia colacionar. O fato de ele ter se divorciado antes da morte seria uma espécie de blindagem às liberalidades recebidas. Só restaria aos filhos unilaterais, no exemplo indicado no início deste texto, o lamento. Nem mesmo lhes sobraria eventual tentativa de invalidação de doação inoficiosa, uma vez que, à época da liberalidade, o falecido havia respeitado os limites da sua parte disponível, em consonância com o art. 549 do Código Civil, que veda as doações inoficiosas, com a seguinte dicção: “nula é também a doação quanto à parte que exceder à de que o doador, no momento da liberalidade, poderia dispor em testamento”.

A segunda corrente, por sua vez, é pela obrigatoriedade de o ex-cônjuge colacionar a liberalidade recebida, mesmo não sendo herdeiro. Essa colação, porém, seria feita apenas para o ex-cônjuge devolver o eventual excesso do que foi recebido, supondo-se que ele não tivesse se divorciado e ainda fosse herdeiro. A colação não transformará o ex-cônjuge em herdeiro e, portanto, jamais poderá beneficiá-lo com mais bens. A ideia, para essa vertente, é a de que o dever de colação do ex-cônjuge não é para beneficiá-lo com a condição de herdeiro, mas sim para evitar que os descendentes sejam prejudicados pelo simples fato de, antes da morte, o falecido ter se divorciado. Objetiva-se proteger os descendentes do falecido na hipótese de o patrimônio líquido deixado por ele não ser suficiente para aquinhoá-los com uma porção, no mínimo, igual à liberalidade recebida pelo ex-cônjuge.

No exemplo citado no início deste texto, como o falecido nada deixou de patrimônio, pois tudo gastou, a ex-esposa teria de colacionar o apartamento de um milhão de reais para igualação de legítimas com os dois filhos unilaterais do falecido. E, considerando-se a atual concorrência sucessória entre os descendentes e o viúvo quanto a bens particulares – nos termos do que está no art. 1.829, inc. I, do Código Civil –, cada um deles deveria ficar com um terço do citado apartamento. Logo, a ex-esposa teria de transferir dois terços do apartamento para repartição entre os dois filhos unilaterais, descendentes somente do autor da herança.

Caso, porém, o falecido tivesse partido desta vida em prosperidade financeira, deixando, a título de ilustração, um patrimônio de dez milhões de reais, não haveria qualquer necessidade de a ex-esposa transferir frações ideais do apartamento aos dois filhos unilaterais do falecido. Isso porque os filhos já haverão de receber, a título de herança, cinco milhões de reais, valor muito superior à liberalidade recebida em vida pelo ex-cônjuge. Evidentemente, o ex-cônjuge nada poderá reivindicar a título de herança, pois não é herdeiro. Portanto, a colação será imposta apenas para beneficiar os descendentes do falecido, e não para prejudicá-los.

Entre as duas correntes, adotamos, com unanimidade, a segunda e última, fruto de uma interpretação extensiva e sistemática dos arts. 544 e 2.002 do Código Civil e que efetiva, com justiça, equidade e correição, a aplicação do bom Direito.

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Colunista

Flávio Tartuce é pós-doutor e doutor em Direito Civil pela USP. Mestre em Direito Civil Comparado pela PUCSP. Professor Titular permanente e coordenador do mestrado da Escola Paulista de Direito (EPD). Professor e coordenador do curso de mestrado e dos cursos de pós-graduação lato sensu em Direito Privado da EPD. Patrono regente da pós-graduação lato sensu em Advocacia do Direito Negocial e Imobiliário da EBRADI. Diretor-Geral da ESA da OABSP. Presidente Nacional do Instituto Brasileiro de Direito Contratual (IBDCONT). Presidente do Instituto Brasileiro de Direito de Família em São Paulo (IBDFAMSP). Advogado em São Paulo, parecerista e consultor jurídico.