Impressões Digitais

Muita coisa mudou na advocacia neste período de isolamento, mas ainda há espaço para novos avanços

Muita coisa mudou na advocacia neste período de isolamento, mas ainda há espaço para novos avanços.

14/8/2020

Na maior parte dos escritórios de advocacia brasileiros, estamos há aproximadamente cinco meses trabalhando em home office. O que antes era tabu para muitos ou a exceção permitida em esquema de rodízio e apenas um dia da semana – e olhe lá – virou regra, aplicável a toda equipe. Faltou preparação prévia, é certo, mas o fato é que a advocacia foi uma das profissões que melhor se adaptou à necessidade de isolamento social.

Assim como já havia ocorrido com inúmeras outras profissões, nossa rotina migrou do ambiente físico para o virtual e, como as disputas não param, logo estávamos realizando o que parecia impossível: despachos, audiências e até sustentações orais por videoconferência. Aprender a operar1 ferramentas como o Zoom ou o Teams passou a ser mais importante que ter prática com editores de texto e planilhas, atingindo o mesmo grau de relevância para a profissão que o domínio do processo eletrônico.

Para entender como foi possível chegarmos até aqui no que diz respeito à tecnologia, é necessário retornar uma década, para os anos de 2008 a 2010, quando, sob a presidência do ministro Cesar Asfor Rocha, o Superior Tribunal de Justiça (STJ) tomou uma iniciativa pioneira que, tempos depois, foi seguida pelos demais tribunais: a digitalização dos processos, com abandono paulatino dos autos físicos para os eletrônicos2. Mas a digitalização, que permitiu a consulta aos autos e o protocolo de petições à distância, foi apenas o primeiro passo. Pouco tempo depois, por exemplo, os órgãos julgadores do STJ passaram a adotar os julgamentos eletrônicos, trazendo maior rapidez às sessões, além do ganho em eficiência, ao permitir que os ministros – e o advogado que ocupasse a tribuna – consultassem online precedentes e, no caso dos julgadores, acompanhassem a leitura do voto do relator.

Desde então, os avanços foram muitos, tendo-se a lamentar apenas o fato de os diferentes sistemas de processos eletrônicos em uso não conversarem entre si. Nesse sentido, embora não seja nada fácil a situação dos advogados, que precisam aprender os caminhos e nuances de sistemas eletrônicos muito diferentes entre si, os esforços do Conselho Nacional de Justiça para que todos os tribunais passassem a utilizar um único sistema foram extemporâneos, na medida em que as cortes já haviam investido tempo e dinheiro em determinado sistema para depois abandoná-lo.

Chegamos então a 2020 e às mudanças ocorridas por conta da necessidade de adaptação do mundo jurídico ao isolamento social. Mas, como bem ponderado recentemente pelo criminalista Alberto Zacharias Toron, se é verdade que – salvo raríssimas exceções3 – não se utilizava a videoconferência para despachos com magistrados, até pelas dificuldades técnicas e a pouca familiaridade com a ferramenta, por que nunca antes se pensou no uso do telefone para esta função?4 Com efeito, é dispendioso e até mesmo ilógico o deslocamento a Brasília, que em geral consome um dia inteiro entre ida e volta, para um despacho que não costuma ultrapassar 15 ou 20 minutos.

Neste sentido, o momento especial em que vivemos deve ser utilizado não apenas para que as adaptações já consolidadas permaneçam em uso após o término da quarentena. A continuidade da realização de despachos e julgamentos por videoconferência já representará um ganho em efetividade do trâmite processual, mas é possível avançar muito mais.

Num despacho presencial, os advogados levam memoriais escritos para entregar ao julgador. Por que não se permitir que se exiba uma apresentação – em compartilhamento de tela – durante o despacho virtual? Essa apresentação não precisa ficar restrita a um texto, podendo ser utilizado um PowerPoint, um vídeo técnico ou até mesmo acessar um determinado website sobre o qual se pretenda produzir determinada prova.

Semelhante ferramenta pode ser facilmente utilizada também nos julgamentos. Não há mais motivos para que não se permita utilizar a tecnologia durante a sustentação oral, respeitando-se o tempo destinado a ela e ficando sob a responsabilidade do advogado a qualidade do material a ser exibido durante o tempo de sua intervenção. A exibição do documento sob o qual reside a controvérsia, perante o órgão colegiado, facilita a compreensão de todos, trazendo ganho não apenas ao advogado que utiliza a ferramenta, mas também ao Judiciário e, em última análise, à sociedade, caso se chegue a decisões mais justas.

Outro ponto em que se pode progredir – e muito – é na comunicação dos atos processuais. O Código de Processo Civil já traz algumas regras sobre a comunicação eletrônica5, mas a quarentena possibilitou o aprimoramento de novas facilidades, algumas das quais revestidas de grande informalidade, como o uso de aplicativos de mensagens. Desde que respeitado devido processo legal e asseguradas as garantias processuais, não há porque, passado este período, se retornar às comunicações físicas, em especial as cartas precatórias e rogatórias, cujos procedimentos burocráticos acabam por retardar o andamento processual. O uso das modalidades não eletrônicas pode ser reservado para determinadas situações em que a internet não possa substituí-la.

Em conclusão, o período de pandemia fez com que o mundo jurídico rapidamente se adaptasse a novas rotinas. Agora, é o momento de aproveitar a tecnologia para ir além, para que as mudanças não se limitem à mera substituição do que antes era realizado presencialmente, mas contribuam com o aprimoramento da atividade jurisdicional.

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1 O uso equivocado já mostrou o enorme risco à reputação e imagem dos operadores de direito. Exemplos de maus comportamentos em sessões de julgamento aparecem diariamente na imprensa e nas redes sociais, a ponto de já ter sido afirmado que o uso correto dos botões de ligar/desligar a câmera e o microfone ser tão importante quanto a mensagem a ser transmitida.

2 É certo que antes do STJ já havia outras experiências com processos eletrônicos, mas a Corte Superior merece o reconhecimento porque foi a partir do incentivo do STJ – que passou a digitalizar todos os novos recursos e devolver os autos físicos aos tribunais de origem – que os tribunais estaduais e regionais viram que este era um caminho sem volta.

3 A ministra Nancy Andrighi, também do STJ, há anos despacha por videoconferência, via Skype.

4 Webinar Migalhas "Novas Tecnologias e o Judiciário", ocorrido em 06/08/2020.

5 Citação por meio eletrônico, "conforme regulado por em lei" (art. 246, V e §§ 1º e 2º), expedição de cartas eletrônicas (arts. 263 e 264) e intimação do advogado da parte contrária por correio eletrônico (art. 269, § 1º), todos do CPC.

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Daniel Bittencourt Guariento é sócio da área contenciosa do Machado Meyer Sendacz e Opice Advogados, especialista em Direito Digital e tecnologia. Membro da Comissão Especial de Tecnologia e Informação da OAB, do Conselho de Tecnologia e Informação do IASP e do Comitê de Direito Digital do Centro de Estudos das Sociedades de Advogados (CESA). Ex-assessor de ministros do STJ, na sessão de Direito Privado.

Ricardo Maffeis Martins é advogado especialista no Contencioso Digital e de Proteção de Dados. Professor de Direito Processual Civil da Escola Paulista de Direito e do Curso Damásio. Foi assessor de ministros e coordenador da Segunda Seção do STJ. Certificado em Privacidade e Proteção de Dados pelo Data Privacy Brasil. Membro da Comissão de Direito, Inovação e Tecnologia do IASP.