Leitura Legal

O aposentado e o dinheiro encontrado

O relato apresentado descreve uma situação em que um funcionário público aposentado encontrou uma quantia significativa de dinheiro enterrada em sua propriedade, decidindo agir de acordo com seus princípios éticos e legais ao reportar o achado às autoridades.

25/2/2024

Um funcionário público aposentado adquiriu uma casa para sua filha morar, há seis meses aproximadamente. Ao tomar posse do imóvel foi fazer uma limpeza no jardim, oportunidade em que avistou um saco preto enterrado atrás de alguns arbustos. Ao puxá-lo percebeu que, em seu interior, continha um pote e, ao abri-lo, para sua surpresa, encontrou várias notas de R$100,00 e 50,00, totalizando quase R$ 60 mil.  Assustado, disse ele posteriormente à autoridade policial: "Eu tirei a tampa e quando eu notei que era dinheiro, eu tampei e botei no mesmo lugar. Nem cheguei a tocar no dinheiro, não. Aí retornei o pote para o mesmo local e entrei em contato com a polícia, exatamente para eles fazerem a investigação de onde foi que esse dinheiro surgiu."1

É muito comum alguém relatar ter encontrado, na rua ou em qualquer lugar público, uma carteira ou bolsa contendo documentos ou até mesmo dinheiro e não saber o que fazer para localizar o proprietário com o intuito de realizar a devolução.

De quando em quando se publica notícia neste sentido, com a intenção de enobrecer a conduta da pessoa que encontrou determinada soma em dinheiro e providencia a restituição ao proprietário, justamente por não ser um fato corriqueiro. Exemplos retirados da ocorrência popular, relatando uma conduta exemplar, cria uma imagem consistente e digna de imitação, pela simples capacidade de distinguir o certo e o errado. Fornece estabilidade e durabilidade de conceitos positivos, abrindo espaços para os mais jovens modelarem um caráter compatível com os princípios éticos e morais. Pode-se dizer que o homem se resume no próprio contexto de suas relações sociais e, em razão do compromisso de convivência assumido, é o construtor do próprio mundo e de sua história individualizada.

"O indivíduo torna-se justo, corajoso, prudente, sentencia Oliveira, à proporção que, agindo, ele se “habitua” (adquire o hábito) ao que, na cidade, é eticamente justo, corajoso, prudente. A ação do indivíduo deita raízes no costume e no uso."2 

Daí, que a sociedade trilha o caminho da excelência ou da própria estupidez humana, dependendo de seus valores e de suas virtudes morais. Não acredito que a lei, somente a lei, seja o caminho mais credenciado para levar o homem a ter uma vida inteligente, regrada pela honestidade e sabedoria. A lei é cogente e os princípios éticos coletivos apresentam-se como a melhor opção. Realizam-se espontaneamente, sem qualquer reserva ou restrição, com aplicação imediata e eficaz. 

A honestidade do consciente aposentado, na realidade, está contida na essência da ética, como sendo um dos braços de sua atuação. Assim, a ética, na sua análise estrutural, nada mais é do que o costume, a tradição, ambos voltados para a moral. Seria, num linguajar mais liberal, a regularização moral e correta da conduta humana, passada de geração para geração, sempre procurando atingir os pontos harmônicos da convivência humana, facilitando a realização espontânea dos bons valores que permanecem como ideal de compartilhamento. A ética não é acabada, é um pensamento em constante evolução, que, com o passar do tempo, vai se aperfeiçoando. Não é, por outro lado, o resultado de condutas codificadas, não se revoga, nem é derrogada. É resultado do próprio pensamento evolutivo do homem. 

Já do ponto de vista jurídico, a conduta do zeloso aposentado, foi mais do que correta. Mesmo não conhecendo a lei, agiu de acordo com seus parâmetros.  Assim, se a coisa for realmente perdida, de modo que se encontra distante de seu dono, fora de sua esfera de proteção, o sujeito que se apropria do bem incide no delito do art. 169, parágrafo único, II, do CP, que é a apropriação de coisa achada. Pelo artigo citado, constitui crime "quem acha coisa alheia perdida e dela se apropria, total ou parcialmente, deixando de restituí-la ao dono ou legítimo possuidor ou de entregá-la à autoridade competente, dentro no prazo de quinze dias."

Se a pessoa que encontrou o objeto perdido não logrou êxito em localizar o proprietário, o correto é fazer a comunicação à autoridade policial para que registre a ocorrência e providencie as diligências necessárias para localizá-lo. Mandamento idêntico é encontrado no artigo 1.233 do Código Civil, in verbis: "Quem quer que ache coisa alheia perdida há de restituí-la ao dono ou legítimo proprietário", sendo que a mesma determinação vinha contida no anterior código já revogado, de 1.916. É de se observar que a referência legal é somente com relação à coisa perdida ou res desperdita e não tem qualquer incidência quando se tratar de coisa abandonada, isto é, aquela em que o dono não tem mais interesse em sua propriedade e a despreza, deixando-a disponível para quem tiver interesse. É a chamada res derelicta.

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1 Disponível aqui.

2 Oliveira, Manfredo Araujo de. Ética e sociabilidade. São Paulo: Loyola, 1993, p. 57.

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Coordenação

Eudes Quintino de Oliveira Júnior promotor de Justiça aposentado, mestre em Direito Público, pós-doutorado em Ciências da Saúde e advogado.