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Cobertura obrigatória de medicamentos oncológicos sem registro na ANVISA: A distinção do Tema 990 no STJ

A coluna aborda como a cobertura oncológica é reafirmada pelo STJ ao distinguir o Tema 990 e validar medicamento importado com autorização da ANVISA, garantindo tratamento essencial.

1/12/2025

O julgamento do REsp 2.076.865/SP, relatado pela ministra Maria Isabel Gallotti da 4ª turma do STJ, representa mais um marco na consolidação do entendimento do STJ quanto à obrigatoriedade de cobertura de medicamentos utilizados no tratamento oncológico, mesmo quando ausente o registro sanitário perante a ANVISA.

No caso concreto, discutia-se o fornecimento do fármaco Thiotepa, prescrito a uma criança acometida por meduloblastoma agressivo, quadro que inviabilizava a realização de radioterapia e demandava o emprego urgente de alternativas terapêuticas com base científica reconhecida. Embora o medicamento não possuísse registro no Brasil à época dos fatos, havia autorização excepcional de importação expedida pela agência reguladora, situação que modificou por completo o enquadramento jurídico pretendido pela operadora de saúde.

A cooperativa sustentava, em síntese, que a ausência de registro sanitário impediria o custeio, invocando o Tema 990 do STJ, segundo o qual as operadoras não estariam obrigadas a fornecer medicamentos não registrados. Entretanto, o Tribunal Superior reafirmou que o precedente não se aplica indistintamente a todas as hipóteses, devendo ser realizada a distinção, ou distinguishing, quando houver autorização excepcional de importação, pois tal autorização pressupõe análise técnica da ANVISA sobre segurança e eficácia do produto, além de afastar qualquer ilicitude sanitária relativa à importação ou uso hospitalar. Não por acaso, o acórdão expressamente relembra que “havendo autorização da ANVISA para importação de medicamento, não podem as operadoras de plano de saúde negar a cobertura apenas em virtude da falta de registro”, premissa que evidencia a necessidade de superar leituras meramente formais do Tema 990.

O acórdão também sublinha que, em matéria de tratamento oncológico, a discussão a respeito da natureza taxativa ou exemplificativa do Rol de Procedimentos e Eventos em Saúde da ANS perde relevância jurídica. A própria regulação setorial impõe, de forma autônoma, a cobertura de medicamentos antineoplásicos, razão pela qual a ausência de previsão expressa no rol não autoriza a negativa. Citando precedentes das Turmas de Direito Privado, o Tribunal relembra que “a natureza taxativa ou exemplificativa do rol da ANS é desimportante à análise do dever de cobertura de medicamentos para o tratamento de câncer”, reforçando que a prescrição médica devidamente fundamentada é o elemento central da obrigação contratual.

A decisão preserva, assim, a lógica de proteção integral ao paciente oncológico, reconhecendo que a vulnerabilidade clínica e a urgência intrínseca da terapêutica contra o câncer impõem leitura finalística do contrato de plano de saúde. Cláusulas que excluam medicamentos importados, off label ou não padronizados não podem prevalecer quando se está diante de patologia coberta e tratamento essencial à sobrevivência do beneficiário. A função social do contrato, aliada ao princípio da boa-fé objetiva, exige interpretação que impeça que limitações burocráticas retirem eficácia prática da proteção contratada.

É necessário reconhecer ainda que o raciocínio adotado pelo STJ reflete evolução hermenêutica coerente: ao reafirmar que a autorização excepcional de importação configura elemento suficiente para afastar a aplicação do Tema 990, o Tribunal oferece racionalidade sistêmica à jurisprudência e evita contradições internas. A decisão contribui para a segurança jurídica dos pacientes e para a previsibilidade das relações contratuais, ao indicar que a ausência de registro, isoladamente, não pode servir de obstáculo quando a própria autoridade sanitária admite a importação e quando a terapêutica é a única alternativa clinicamente adequada.

O caso evidencia, em última análise, que a interpretação estritamente literal das cláusulas contratuais e das regras administrativas, ou até mesmo de temas do STJ, não pode prevalecer sobre a concretização do direito fundamental à saúde, especialmente em situações de extrema gravidade como o meduloblastoma infantil. Para o STJ, a natureza do contrato de assistência suplementar impõe o dever de cobertura sempre que presentes a indicação médica, a necessidade terapêutica e o respaldo sanitário mínimo, ainda que em regime de autorização excepcional. Trata-se de mais um precedente que aprofunda o compromisso da Corte com a tutela efetiva da vida e da dignidade do paciente oncológico, ao harmonizar os parâmetros sanitários, contratuais e constitucionais que regem o setor.

A decisão da 4ª turma do STJ foi unânime. Jorge Mendes, pai da autora da ação, ressalta que “é gratificante ver que o STJ se sensibilizou ao caso da minha filha, deixando um legado técnico e jurisprudencial que poderá salvar muitas vidas”.

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Colunistas

Alexandro de Oliveira é doutorando e mestre em Bioética, Ética Aplicada e Saúde Coletiva (UFRJ). Pesquisador, Advogado e Bioeticista. Instituto Brasileiro de Estudos de Responsabilidade Civil (IBERC) , da Academia Nacional de Cuidados Paliativos (ANCP), da Sociedade Brasileira de Bioética (SPP), do Instituto Miguel Kfouri Neto (IMKN), Membro do Comitê de Ética em Pesquisa da Faculdade de Medicina da Universidade Federalcis Fluminense (UFF).

Fernanda Schaefer tem pós-Doutorado no Programa de Pós-Graduação Stricto Sensu em Bioética da PUC/PR, bolsista CAPES. Doutorado em Direito das Relações Sociais na UFPR, curso em que realizou Doutorado Sanduíche nas Universidades do País Basco e Universidade de Deusto (Espanha) como bolsista CAPES. Professora do UniCuritiba. Coordenadora do Curso de Pós-Graduação em Direito Médico e da Saúde da PUC/PR. Assessora Jurídica CAOP Saúde MP/PR.

Miguel Kfouri Neto é desembargador do TJ/PR. Pós-doutor em Ciências Jurídico-Civis junto à Faculdade de Direito da Universidade de Lisboa. Doutor em Direito das Relações Sociais pela PUC/SP. Mestre em Direito das Relações Sociais pela UEL. Bacharel em Direito pela Universidade Estadual de Maringá. Licenciado em Letras-Português pela PUC/PR. Professor-Doutor integrante do Corpo Docente Permanente do Programa de Doutorado e Mestrado em Direito Empresarial e Cidadania do Centro Universitário Curitiba (UNICURITIBA). Coordenador do grupo de pesquisas "Direito da Saúde e Empresas Médicas" (UNICURITIBA). Membro da Comissão de Direito Médico do Conselho Federal de Medicina.

Rafaella Nogaroli é assessora de desembargador no TJ/PR. Mestre em Direito das Relações Sociais pela UFPR. Especialista em Direito Aplicado, Direito Processual Civil e Direito Médico. Supervisora acadêmica do curso de especialização em direito médico e bioética da EBRADI. Coordenadora do grupo de pesquisas "Direito da Saúde e Empresas Médicas" (UNICURITIBA), ao lado do prof. Miguel Kfouri Neto. Diretora adjunta e membro do IBERC.

Wendell Lopes Barbosa de Souza é juiz de Direito do TJ/SP desde 2003 e Membro Titular da COMESP (Coordenadoria Estadual da Mulher em Situação de Violência Doméstica e Familiar do TJ/SP). Pós-doutor e professor da temática "Feminicídio" na pós em "Direitos Humanos, Saúde e Justiça" pelo POSCOHR, sediado na Faculdade de Medicina da Universidade de Coimbra. Especialista em Direito Penal pela Escola Paulista da Magistratura. Mestre e doutor em Direito Civil Comparado pela PUC/SP. Pesquisa e Curso de Introdução ao Direito Americano na Fordham University – NY/EUA. Professor em diversas instituições. Autor de livro e publicações. MBA Executivo em Gestão da Saúde pela FGV.