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Cobertura obrigatória de medicamentos oncológicos sem registro na ANVISA: A distinção do Tema 990 no STJ

segunda-feira, 1 de dezembro de 2025

Atualizado em 28 de novembro de 2025 08:17

O julgamento do REsp 2.076.865/SP, relatado pela ministra Maria Isabel Gallotti da 4ª turma do STJ, representa mais um marco na consolidação do entendimento do STJ quanto à obrigatoriedade de cobertura de medicamentos utilizados no tratamento oncológico, mesmo quando ausente o registro sanitário perante a ANVISA.

No caso concreto, discutia-se o fornecimento do fármaco Thiotepa, prescrito a uma criança acometida por meduloblastoma agressivo, quadro que inviabilizava a realização de radioterapia e demandava o emprego urgente de alternativas terapêuticas com base científica reconhecida. Embora o medicamento não possuísse registro no Brasil à época dos fatos, havia autorização excepcional de importação expedida pela agência reguladora, situação que modificou por completo o enquadramento jurídico pretendido pela operadora de saúde.

A cooperativa sustentava, em síntese, que a ausência de registro sanitário impediria o custeio, invocando o Tema 990 do STJ, segundo o qual as operadoras não estariam obrigadas a fornecer medicamentos não registrados. Entretanto, o Tribunal Superior reafirmou que o precedente não se aplica indistintamente a todas as hipóteses, devendo ser realizada a distinção, ou distinguishing, quando houver autorização excepcional de importação, pois tal autorização pressupõe análise técnica da ANVISA sobre segurança e eficácia do produto, além de afastar qualquer ilicitude sanitária relativa à importação ou uso hospitalar. Não por acaso, o acórdão expressamente relembra que "havendo autorização da ANVISA para importação de medicamento, não podem as operadoras de plano de saúde negar a cobertura apenas em virtude da falta de registro", premissa que evidencia a necessidade de superar leituras meramente formais do Tema 990.

O acórdão também sublinha que, em matéria de tratamento oncológico, a discussão a respeito da natureza taxativa ou exemplificativa do Rol de Procedimentos e Eventos em Saúde da ANS perde relevância jurídica. A própria regulação setorial impõe, de forma autônoma, a cobertura de medicamentos antineoplásicos, razão pela qual a ausência de previsão expressa no rol não autoriza a negativa. Citando precedentes das Turmas de Direito Privado, o Tribunal relembra que "a natureza taxativa ou exemplificativa do rol da ANS é desimportante à análise do dever de cobertura de medicamentos para o tratamento de câncer", reforçando que a prescrição médica devidamente fundamentada é o elemento central da obrigação contratual.

A decisão preserva, assim, a lógica de proteção integral ao paciente oncológico, reconhecendo que a vulnerabilidade clínica e a urgência intrínseca da terapêutica contra o câncer impõem leitura finalística do contrato de plano de saúde. Cláusulas que excluam medicamentos importados, off label ou não padronizados não podem prevalecer quando se está diante de patologia coberta e tratamento essencial à sobrevivência do beneficiário. A função social do contrato, aliada ao princípio da boa-fé objetiva, exige interpretação que impeça que limitações burocráticas retirem eficácia prática da proteção contratada.

É necessário reconhecer ainda que o raciocínio adotado pelo STJ reflete evolução hermenêutica coerente: ao reafirmar que a autorização excepcional de importação configura elemento suficiente para afastar a aplicação do Tema 990, o Tribunal oferece racionalidade sistêmica à jurisprudência e evita contradições internas. A decisão contribui para a segurança jurídica dos pacientes e para a previsibilidade das relações contratuais, ao indicar que a ausência de registro, isoladamente, não pode servir de obstáculo quando a própria autoridade sanitária admite a importação e quando a terapêutica é a única alternativa clinicamente adequada.

O caso evidencia, em última análise, que a interpretação estritamente literal das cláusulas contratuais e das regras administrativas, ou até mesmo de temas do STJ, não pode prevalecer sobre a concretização do direito fundamental à saúde, especialmente em situações de extrema gravidade como o meduloblastoma infantil. Para o STJ, a natureza do contrato de assistência suplementar impõe o dever de cobertura sempre que presentes a indicação médica, a necessidade terapêutica e o respaldo sanitário mínimo, ainda que em regime de autorização excepcional. Trata-se de mais um precedente que aprofunda o compromisso da Corte com a tutela efetiva da vida e da dignidade do paciente oncológico, ao harmonizar os parâmetros sanitários, contratuais e constitucionais que regem o setor.

A decisão da 4ª turma do STJ foi unânime. Jorge Mendes, pai da autora da ação, ressalta que "é gratificante ver que o STJ se sensibilizou ao caso da minha filha, deixando um legado técnico e jurisprudencial que poderá salvar muitas vidas".