Migalhas de Responsabilidade Civil

Medicina de precisão, oncogenética e estatuto da pessoa com câncer: dimensões da responsabilidade

Medicina de precisão, oncogenética e estatuto da pessoa com câncer: dimensões da responsabilidade

3/2/2022

1. Medicina de precisão, oncogenética e direito à saúde

O Estatuto da Pessoa com Câncer (Lei 14.238/2021), recentemente aprovado, corroborou a ideia de que o direito à saúde deva ser interpretado a partir de uma acepção dinâmica e evolutiva, na medida em que sofre influência direta das novas possibilidades diagnósticas e terapêuticas da Medicina. O Estatuto apregoou o protagonismo dos direitos da pessoa com câncer e acentuou a importância da esfera da prevenção, contribuindo para a construção de um conceito de saúde não exclusivamente ligado à ideia de combate à doença já instaurada, mas, também, às formas possíveis de evitá-la.

A acepção adequada do direito à saúde deve, no que tange à oncologia, ser compreendida a partir do reconhecimento da proposta da medicina de precisão, que revela, por meio, por exemplo, da oncogenética, melhores caminhos diagnósticos e terapêuticos. Os testes genéticos, para pacientes com diagnósticos de câncer, ou pacientes sem diagnóstico, mas que possuem histórico familiar oncológico expressivo, simbolizam possibilidades profiláticas e terapêuticas relevantes. A alta incidência das doenças oncológicas pressupõe a incorporação paralela dos recursos da Medicina, somente possível se acompanhada de uma política legislativa apropriada1.

O câncer representa uma constelação de doenças que podem agregar múltiplos fatores, inclusive, o genético. A complexidade da doença demanda a busca pelo tratamento personalizado e pela melhor previsão de respostas terapêuticas, possibilitadas pela medicina de precisão2, que promove a ruptura do tratamento uniformizado, quando se volta à realidade individualizada do paciente. Por meio do olhar singularizado sobre a pessoa, podem ser descortinados fatores ambientais e genéticos relacionados à patologia investigada. Tal abordagem tem como foco principal a personalização do diagnóstico e do tratamento e a promoção da prevenção de doenças3.

A oncogenética utiliza informações genéticas do paciente ou de tumores, como biomarcadores diagnósticos, prognósticos e preditivos, por meio, basicamente, de dois tipos de testes. “O primeiro tipo se refere aos testes feitos no tumor para auxiliar no diagnóstico ou determinar um tratamento direcionado a partir de mutações tumorais. O outro tipo de teste é realizado em células normais (não-tumorais) e tem como finalidade averiguar características genéticas do próprio indivíduo”4. A finalidade é analisar a possibilidade de mutação no DNA que, de uma forma geral, aumente a predisposição ao desenvolvimento de câncer, além de investigar como o genótipo pode influenciar no perfil de metabolização de fármacos. 

A avaliação inicial do risco de predisposição a câncer é feita pelo hederograma, que detalha o histórico familiar, relata as informações necessárias e propicia identificar se há critérios para seguir a investigação com testes genéticos. Nos pacientes que já tiveram diagnóstico de câncer, os testes conseguem propiciar a alteração adequada da estratégia de tratamento. Além disso, identificar pacientes de alto risco, antes que a doença aconteça, implica a possibilidade de executar estratégias para reduzir essa chance de forma muito significante5.

A acessibilidade aos testes genéticos ainda é incipiente. Por meio de exames dessa natureza, é possível identificar pessoas que devam ser submetidas a estratégias personalizadas e mais eficazes de vigilância e redução de risco de câncer6. Testes genéticos possuem características e finalidades distintas, de modo que é relevante compreendê-las com o objetivo de identificar a justificativa da expansão de sua cobertura, seja pela saúde suplementar ou pelo Sistema Único de Saúde (SUS). A capacidade de prever um evento potencialmente danoso à vida e à saúde humanas e de fornecer informações capazes de apontar terapias adequadas a cada situação legitima a inclusão dos testes preditivos como protocolos necessários e acessíveis.

A extensão da noção de direito à saúde advém da necessidade de incorporar novas possibilidades diagnósticas, terapêuticas e profiláticas. Naturalmente, não há que se negar que a promoção do acesso ao conhecimento científico, bem como o seu uso, precisa estar sempre associada às dimensões de responsabilidade, nas suas esferas ética e jurídica.

2. O estatuto da pessoa com câncer

A lei 14.238/21, o Estatuto da Pessoa com câncer, estabeleceu diretrizes importantes à conformação adequada do tratamento do paciente oncológico, recepcionando princípios e objetivos, positivados por influência de normativas internacionais e nacionais já vigentes.

 

Dentre tantas previsões contidas na legislação, deve-se ressaltar um encaminhamento relevante quanto ao tratamento da doença oncológica. Os objetivos e princípios previstos na legislação contemplam uma noção de direito à saúde que se antecipa à ideia de doença, ou seja, que se preocupa com a possibilidade de prevenção. O diagnóstico precoce e o estímulo à prevenção foram postos como princípios, corroborando as reflexões sobre a importância da medicina de precisão e da oncogenética na configuração da assistência.

A medicina preditiva torna-se ferramenta essencial para a efetiva garantia do direito à saúde, na medida em que, por meio de ação prematura, é capaz de antecipar-se à manifestação de uma condição patológica, ou, até mesmo, à forma com que tal condição pode se manifestar. Predição e precisão passam a ser elementos centrais à efetiva noção de direito à saúde. “A possibilidade de antecipar precocemente a manifestação de uma patologia, como as neoplasias, transforma a noção clássica de saúde, tradicionalmente vinculada à esfera interventiva de cura, ou seja, quando a doença já foi instaurada”7.

A incorporação pragmática da esfera preditiva do direito à saúde deve ocorrer por meio de regulamentação satisfatória da saúde suplementar e da efetivação de políticas públicas concernentes ao Sistema Único de Saúde.  Acrescente-se que estudos econômicos já apontam para o barateamento dos custos das análises genéticas, por meio da bioinformática (reunião da genética, ciência da computação, matemática e estatística). As ferramentas da bioinformática permitem que “dados sobre expressão gênica e suas variações possam ser processados, viabilizando sua interpretação e posterior correlação com doenças ou condições de saúde.”8

A legislação destinada ao paciente oncológico demandará oferta adequada de diagnósticos e tratamentos pelas saúdes pública e suplementar, contribuindo para a distribuição de responsabilidades quanto à cobertura acessível das medidas propostas pela oncogenética e quanto à escolha dos tratamentos atuais.

3. Saúde pública e saúde suplementar: breves apontamentos sobre as dimensões da responsabilidade

No Brasil, a discussão sobre a implantação no Sistema Único de Saúde de programas voltados à prevenção e ao manejo de doenças genéticas em geral esbarra no problema da distribuição de recursos e da reserva orçamentária. Patologias genéticas, não só de natureza oncológica, são, muitas vezes, subdiagnosticadas, o que ocasiona a perda de oportunidade para a prevenção e orientações antecipadas, gerando prejuízo à saúde (ou à vida) dos pacientes, além de custos a eles e ao sistema de saúde (público ou privado).

A ineficiência da precisão dos tratamentos e a insuficiência de investimento na prevenção geram responsabilidades expressivas, seja do Estado, que não efetivou políticas públicas capazes de contemplar as demandas em saúde em totalidade, ou dos planos de saúde, que negaram a cobertura para diagnósticos e tratamentos que eram fundamentais à realidade de um paciente e/ou família.

A interpretação de dados genéticos para a predição da possibilidade de manifestação da doença oncológica e para escolher tratamentos que se adequem à capacidade de resposta individual podem promover impactos nos custos com a saúde. No entanto, identificar o tratamento correto, além de melhorar os resultados, pode, também, reduzir despesas originadas em gastos com protocolos insistentes e ineficazes9.

A insistência no uso de tratamentos inadequados, por não serem aptos à realidade personalizada da doença e do indivíduo, podem ter repercussões negativas. A mais importante é a ocorrência de efeitos colaterais, danos iatrogênicos ou danos que poderiam ter sido evitados, podendo, neste caso, culminar em demandas judiciais calcadas na responsabilidade dos profissionais, dos planos de saúde e do Estado. Os tratamentos ineficientes, insuficientes e ineficazes podem, considerando a circunstância em concreto, ensejar demandas judiciais por responsabilidade, posto que não representam, dentro da Medicina, a melhor escolha em termos de possibilidades clínicas.

Testes genéticos evidenciam resultados que justificam a necessidade de repensar as restrições de cobertura pelo Sistema Único de Saúde e pela saúde suplementar. O rol de cobertura obrigatória na saúde suplementar contempla a investigação diagnóstica de alguns genes associados aos casos de cânceres hereditários, como mama, ovário, intestino e estômago, mas ainda há outras necessidades não contempladas. Na saúde pública, além de beneficiar as pessoas, o uso da medicina de precisão pode impactar na reprogramação dos gastos com o sistema de financiamento, em especial no caso dos tratamentos oncológicos. A descoberta da característica hereditária do câncer é capaz de justificar a opção por estratégicas profiláticas, “como cirurgias para retirada de órgãos, exames de rastreamento mais apropriados e uso de medicamentos para reduzir a chance de manifestação da doença”10.

Demandas judiciais que envolvem o tratamento das neoplasias aumentaram, substancialmente, à medida em que surgiram alternativas terapêuticas personalizadas e aptas a melhores resultados. Note-se que o ativismo judicial que reveste as ações para a cobertura de tratamentos e medicamentos oncológicos, seja no âmbito público ou privado, começa a ser acompanhado das demandas de responsabilidade quanto ao uso persistente de tratamentos ultrapassados e não adequados a determinados contextos de uma doença, já que podem representar a perda da oportunidade de uma maior sobrevida.

Cabe ao Estado repensar parte da regulamentação da saúde suplementar e estabelecer políticas públicas capazes de contemplar uma melhor realidade aos pacientes oncológicos. A legislação positivou os direitos, justificando-os pelo lastro dos princípios, sendo fundamental, para a vida das pessoas, efetivá-los de maneira justa e benéfica. 

____________

1 MEIRELLES, Ana Thereza; GUINDALINI, Rodrigo. Oncogenética e dimensão preditiva do direito à saúde: A relevância da informação genética na prevenção e tratamento do câncer. In: MEIRELLES, Ana Thereza et al (Coords.). Direito e Medicina: Interseções científicas. Genética e Biotecnologia. V.I. Belo Horizonte: Editora Conhecimento, 2021.

 

2 GUINDALINI, Rodrigo et al. Personalizing Precision Oncology Clinical Trials in Latin America: An Expert Panel on Challenges and Opportunities. The Oncologist 2019, 24,709- 719.

3 GUINDALINI, Rodrigo et al. Ethics in Clinical Cancer Research. In: R. L. C. Araújo, R. P. Riechelmann (eds.). Methods and Biostatistics in Oncology. 2018.

4 MEIRELLES, Ana Thereza; GUINDALINI, Rodrigo. Oncogenética e dimensão preditiva do direito à saúde: A relevância da informação genética na prevenção e tratamento do câncer. In: MEIRELLES, Ana Thereza et al (Coords.). Direito e Medicina: Interseções científicas. Genética e Biotecnologia. V.I. Belo Horizonte: Editora Conhecimento, 2021, p.158.

5 MEIRELLES, Ana Thereza; GUINDALINI, Rodrigo. Oncogenética e dimensão preditiva do direito à saúde: A relevância da informação genética na prevenção e tratamento do câncer. In: MEIRELLES, Ana Thereza et al (Coords.). Direito e Medicina: Interseções científicas. Genética e Biotecnologia. V.I. Belo Horizonte: Editora Conhecimento, 2021.

6 GUINDALINI, Rodrigo. In: Entrevista. SBOC. Sociedade Brasileira de Oncologia Clínica. Brasileiro associa câncer a fatores hereditários, mas não tem acesso a exames ou aconselhamento genético. 27 nov. 2018. Disponível aqui. Acesso em: 03 mar. 2021.

7 MEIRELLES, Ana Thereza; GUINDALINI, Rodrigo. Oncogenética e dimensão preditiva do direito à saúde: A relevância da informação genética na prevenção e tratamento do câncer. In: MEIRELLES, Ana Thereza et al (Coords.). Direito e Medicina: Interseções científicas. Genética e Biotecnologia. V.I. Belo Horizonte: Editora Conhecimento, 2021, p.166.

8 NEGRI, Fernanda de; UZIEL, Daniela. O que é medicina de precisão e como ela pode impactar o setor de saúde? In: INSTITUTO DE PESQUISA ECONOMICA (IPEA). Texto para Discussão. Rio de Janeiro: IPEA, 2020, p. 10.

9 MEIRELLES, Ana Thereza; GUINDALINI, Rodrigo. Oncogenética e dimensão preditiva do direito à saúde: A relevância da informação genética na prevenção e tratamento do câncer. In: MEIRELLES, Ana Thereza et al (Coords.). Direito e Medicina: Interseções científicas. Genética e Biotecnologia. V.I. Belo Horizonte: Editora Conhecimento, 2021.

10 MEIRELLES, Ana Thereza; GUINDALINI, Rodrigo. Oncogenética e dimensão preditiva do direito à saúde: A relevância da informação genética na prevenção e tratamento do câncer. In: MEIRELLES, Ana Thereza et al (Coords.). Direito e Medicina: Interseções científicas. Genética e Biotecnologia. V.I. Belo Horizonte: Editora Conhecimento, 2021, p.174.

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Carlos Edison do Rêgo Monteiro Filho é professor titular e ex-coordenador do programa de pós-graduação em Direito da Faculdade de Direito da UERJ (mestrado e doutorado). Doutor em Direito Civil e mestre em Direito da Cidade pela UERJ. Presidente do Fórum Permanente de Direito Civil da Escola Superior de Advocacia Pública da Procuradoria-Geral do Estado do Rio de Janeiro (ESAP/PGE). Vice-presidente do IBERC (Instituto Brasileiro de Estudos da Responsabilidade Civil). Autor de livros e artigos científicos. Advogado, parecerista e consultor em temas de Direito Privado.

Fernanda Schaefer é pós-doutora pelo Programa de pós-graduação Stricto Sensu em Bioética da PUC-PR. Doutora em Direito das Relações Sociais pela Universidade Federal do Paraná, curso em que realizou Doutorado Sanduíche nas Universidades do País Basco e Universidade de Deusto (Espanha). Professora do UniCuritiba. Coordenadora do Curso de Pós-Graduação em Direito Médico e da Saúde da PUC-PR. Assessora Jurídica do CAOP Saúde MPPR.

Igor de Lucena Mascarenhas é advogado e professor universitário nos cursos de Direito e Medicina (UFPB / UNIFIP). Doutorando em Direito pela UFBA e doutorando em Direito pela UFPR. Mestre em Ciências Jurídicas pela UFPB. Especialista em Direito da Medicina pelo Centro de Direito Biomédico vinculado à Faculdade de Direito da Universidade de Coimbra.

Nelson Rosenvald é advogado e parecerista. Professor do corpo permanente do Doutorado e Mestrado do IDP/DF. Pós-Doutor em Direito Civil na Università Roma Tre. Pós-Doutor em Direito Societário na Universidade de Coimbra. Visiting Academic na Oxford University. Professor Visitante na Universidade Carlos III, Madrid. Doutor e Mestre em Direito Civil pela Pontifícia Universidade Católica de São Paulo – PUC/SP. Presidente do Instituto Brasileiro de Estudos de Responsabilidade Civil – IBERC. Foi Procurador de Justiça do Ministério Público de Minas Gerais.

Paulo Roque Khouri é doutorando em Direito Constitucional pelo Instituto Brasiliense de Direito Público — IDP. Graduado em Direito pelo Centro Universitário de Brasília – UNICEUB (1992) e em Jornalismo pela Universidade Federal de Juiz de Fora (UFJF) (1987); mestrado em Direito Privado pela Universidade de Lisboa (2006). Atualmente é professor do Instituto Brasiliense de Direito Público (IDP), sócio do escritório de advocacia Roque Khouri & Pinheiro Advogados Associados S/C.