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Quem é mais mãe?

Não se deve tratar os desiguais de forma igual, pois as consequências da interpretação podem acarretar decisão que se aproxima muito de uma punição.

10/6/2018

A 2ª Câmara de Direito Público do Tribunal de Justiça de São Paulo, em recente e interessante decisão de apelação interposta em mandado de segurança, manteve in totum decisão proferida em primeiro grau, na qual uma servidora pública municipal pleiteou a concessão da licença-maternidade por cento e oitenta dias, pretensão essa que foi indeferida, com a concessão unicamente da licença-paternidade, por seis dias. Insurge-se a impetrante contra o decisum do primeiro grau, alegando, dentre outros argumentos, que não é pai e sim mãe da criança e que as famílias homoafetivas não devem ser tratadas como as heteroafetivas, por não terem ainda uma consolidação social que permita a analogia. Assim, não se deve tratar os desiguais de forma igual, pois as consequências da interpretação podem acarretar decisão que se aproxima muito de uma punição.

Em breve relato do caso, trata-se de um relacionamento homoafetivo formado por duas mulheres em que uma delas se submeteu à fertilização in vitro, com a consequente gestação e nascimento de um filho, sendo aquinhoada com a licença-maternidade e à mãe não parturiente foi conferida a licença-paternidade.

A família, nos moldes da interpretação atual, apesar das variadas formas de constituição que permitem um alargamento em sua estrutura originária, conserva ainda a formatação de um núcleo doméstico, quer seja no relacionamento de casais heteroafetivos ou homoafetivos, cabendo, desta forma, na conceituação do artigo 226 da Constituição Federal, vez que já se solidificou o entendimento contrário a uma interpretação reducionista, estabelecendo restrições entre as entidades familiares.

Vale lembrar que a Ação Direta de Inconstitucionalidade 4.277/DF e a Arguição de Descumprimento de Preceito Fundamental 132/RJ, ambas julgadas pelo Supremo Tribunal Federal, reconheceram plena igualdade em direitos e deveres dos casais heteroafetivos e homoafetivos.

Desta forma, no caso apontado, em se tratando de convivência homoafetiva do gênero feminino, acentuando que a opção sexual é emanação do princípio da dignidade da pessoa humana, em caso de fertilização in vitro, com a consequente transferência do embrião para uma delas, que vem a gestar e dar à luz a uma criança, apesar de serem ambas mulheres, somente a que exerceu a maternidade em sua plenitude merecerá os benefícios da licença-maternidade de longa duração. Seria, se ambas obtivessem a mesma licença, uma contradictio in adjectu afrontando o espírito legislativo que norteou tal benefício. Não só. Seria também um tratamento desigual com relação aos casais heteroafetivos, em que cabe somente à mulher a licença-maternidade com o prazo dilatado e ao homem um período mais curto.

A convivente não vivenciou a gestação do filho. Pela regra da isonomia e não pelo fato de ser mulher, não tem como ser guindada ao status da companheira, que levou a cabo a gestação e o parto. Contempla-se, desta forma, a igualdade e paridade de tratamento entre as entidades familiares heteroafetivas e homoafetivas, no tocante à licença-maternidade.

E mais. Seria o mesmo caminho a trilhar se se tratasse de doação compartilhada de óvulos em união homoafetiva feminina, em que não exista infertilidade. Referido procedimento, homologado pela resolução 2121/2015 do Conselho Federal de Medicina, ocorre no relacionamento feminino e consiste na implantação de um embrião gerado a partir do óvulo de uma das parceiras e a sua consequente transferência para o útero da outra. A dúvida que pairava a respeito era de se saber se o procedimento deveria ser feito com doação de óvulo de doadora anônima. Porém, como o relacionamento homoafetivo já recebeu a homologação legal, nada mais justo do que considerá-lo como uma das formas de constituição de família.

Mesmo diante de tal hipótese, deve prevalecer a regra preconizada pelo tribunal. Assim, a conceituação de mãe para fins da referida licença, passa a ser aquela que gestou e deu à luz a um filho.

É de se pontuar, por outro lado, que no caso de maternidade de substituição, prevista também na referida resolução, a mãe vem a ser a que cedeu os óvulos para a formação do embrião e, com o nascimento, seguindo rigorosamente os ditames legais, a doadora temporária do útero irá entregar a criança à mãe genética, que passará a gozar da plenitude da licença-maternidade, com o filho registrado em seu nome, derrubando, desta forma, a até então inabalável regra do Direito Romano: maternitas certa est.

Novos tempos. Novas práxis.

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*Eudes Quintino de Oliveira Júnior é promotor de justiça aposentado/SP, mestre em direito público, pós-doutorado em ciências da saúde, reitor da Unorp, advogado.

 

 
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