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O anti-indigenismo - Uma política de destruição do índio brasileiro

Walter Gustavo Lemos

A ideia inicialmente trazida, e que acabou ganhando corpo nas instituições ocupadas da questão indígena no Brasil, era de que os índios “devem ser protegidos pelo governo federal a partir de invasões na fronteira fechada, parques indígenas e reservas, e estar preparado gradualmente, como independente, grupos étnicos, para se integrarem na sociedade em geral e a economia do Brasil”

31/10/2019
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"Morrer se preciso for, matar nunca". Estas palavras de Marechal Rondon demonstram um espírito de política indigenista adotada no Brasil no século XX de preservação, localização, contato e demarcação de territórios indígenas.

Assim, as pessoas de Marechal Rondon, os irmãos Villas-Bôas e Darcy Ribeiro sempre foram nomes importantes ligados a esta política que se estabeleceu no Brasil e que buscou contatar e proteger nações indígenas no território nacional, a partir do estabelecimento do Parque Nacional do Xingu.

A ideia inicialmente trazida, e que acabou ganhando corpo nas instituições ocupadas da questão indígena no Brasil, era de que os índios “devem ser protegidos pelo governo federal a partir de invasões na fronteira fechada, parques indígenas e reservas, e estar preparado gradualmente, como independente, grupos étnicos, para se integrarem na sociedade em geral e a economia do Brasil”1

Tal política promovida tinha como objetivo a preservação dos valores indígenas e cada um dos seus grupos étnicos, respeitando suas culturas e formações sociais, para que esses se integrassem na sociedade em geral somente se assim desejassem, de forma a manter suas práticas e tradições de modus vivendi.

Estas políticas partiam do ideário de respeito e demarcação das terras ocupadas por estes povos, para garantir a preservação de sua população e seus valores culturais, mas também como proteção dos ambientes naturais em que essas populações estavam inseridas.

Uma política de clara intenção de preservação dos indivíduos, de seus valores, culturas e tradições, como também da manutenção intacta do meio ambiente no entorno destas populações, com a conservação da fauna e flora destes habitats.

Tais políticas tinham como fator determinante a visão dos irmãos Villas-Bôas de que a) os índios só sobrevivem em sua própria cultura; e de que b) os processos integrativos ocorridos historicamente no Brasil teriam, via de regra, conduzido à desagregação das comunidades indígenas e não à sua efetiva participação em nossa sociedade.

Tudo em uma expressão da preocupação de proteger e preservar os povos indígenas, “procurando, contudo, interferir o mínimo possível na vida e na organização social desses povos”.2

E este tipo de pensamento acabou sendo inserido de forma paulatina e gradual nos órgãos e instituições brasileiras que se ocuparam da questão indígena, em contrário ao pensamento de uma integração forçada destes povos a sociedade brasileira em geral.

Mas tais ideários não ficaram somente adstritos às fronteiras e às instituições brasileiras, mas ganharam o mundo ao influenciar as políticas estabelecidas entre os Estados da sociedade internacional, como também ao estabelecer tratados internacionais com relação aos povos tradicionais, indígenas e aborígenes, de forma a garantir os direitos à preservação das terras e valores destes povos ancestrais. Tanto que na leitura um pouco mais detida da Declaração das Nações Unidas sobre os Direitos dos Povos Indígenas3 é possível perceber a influência dos pensamentos indigenista na construção de tal norma internacional, como em outras normas emitidas no âmbito internacional. 

E tal direcionamento político pode ser sentido até o ano 2018, mas com o início do ano de 2019 o que o governo brasileiro passou a promover de política na questão indígena foi justamente oposto, bem como retornando a uma política já abandonada a tempos, de se lançar sobre as terras desses povos tradicionais para lhes explorar as riquezas, em detrimento dos valores, culturas, tradições e ancestralidades expressas.

Podemos sentir este tipo de manifestação do governo brasileiro atual desde o primeiro momento do ano de 2019 e vem se mantendo, inclusive com as últimas manifestações governamentais de exploração de minérios existentes em tais terras.

Na primeira semana do mês de outubro, o que era ruim acaba ficando pior, com uma série de reuniões que o ministro de Minas e Energia fez em Rondônia, na tentativa de promover apoio para a exploração mineral das terras indígenas, sendo que após tais atos os chamou de audiências públicas. E as parvoíces não pararam por aí, já que para nenhum desses atos foram ouvidas as comunidades indígenas possivelmente afetadas por tais atos.

Isso demonstra que o governo promove uma política para as terras indígenas, mas sem se importar ou respeitar os indígenas em si, promovendo um agir de incompreensão e desrespeito com as culturalidades destes povos.

Esta forma de agir não reflete o pensamento esposado ao longo do tempo pelo pensamento governamental e normativo brasileiro, mas reflete um pensamento abandonado a décadas de culturalização, ocidentalização, implementação de religião e modus vivendi para os indígenas, ou seja, de embranquecer os indígenas e “civilizá-los”.

Tal pensamento retoma os pensamentos anteriores ao próprio Serviço de Proteção ao Índio e Localização de Trabalhadores Nacionais (SPILTN), de 1910, que foi o primeiro órgão estatal brasileiro responsável por uma política indigenista oficial, sendo que deste órgão se originou o Serviço de Proteção aos Índios (SPI), que depois foi transformado na atual Fundação Nacional do Índio – Funai, hoje vinculada ao Ministério da Justiça4. Este órgão tinha como intuito a proteção dos índios, mas ao mesmo tempo de implementação de ocupação territorial do país, ou seja, ainda não estabelecendo a política indigenista que vivíamos antes do atual governo, mas que já se livrava dos laços colonizadores das nossas heranças anteriores.

Assim, a política brasileira foi caminhando no sentido de incluir as práticas de Rondon e dos irmãos Villas-Bôas, bem como das epistemologias de respeito, proteção, preservação das tradicionalidades e culturalidades indígenas desenvolvidos nas últimas décadas no Brasil, como práticas governamentais.

E tudo isso parece ser deixado de lado com o que o atual governo se propõe fazer com relação aos índios brasileiros, ao se lançar sobre as suas terras, descrever a necessidade de sua culturalização e ocidentalização, bem como de torná-los “produtivos”. Ou seja, o governo brasileiro somente pensa o produtivo a partir de um viés econômico central, monetário e de desenvolvimento de renda e de riqueza, mas não de ligação com a natureza, com as suas culturas e práticas preservadas, construídas ao longo do tempo com um diferente modus vivendi, ancestral e pautado em outras cosmovisões, não antropocentristas.

E, portanto, o governo brasileiro, não respeitando tais elementos indígenas, busca promover o aproveitamento econômico de suas terras, com mineração, extração de madeiras e outros produtos florestais, tudo em troca de alguma riqueza direcionada ao índio, mas de forma que este perca com toda a sua conexão com a terra e a sua essência indígena, de se reconhecer a partir da sua ligação com a natureza, com as suas culturas e a terra em que vive e protege.

Assim, é neste sentido que se descreve este pensamento anti-indigenista brasileiro, que retoma uma forma arcaica e preconceituosa de ver o índio, retomando práticas e conceitos pré-SPILTN, na busca de apropriação do território nacional e de suas riquezas, com a exploração e o desrespeito aos povos indígenas.

Este pensamento se descreve no intuito de não é reconhecer a existência das sociedades indígenas, ao impor uma compreensão da sociedade brasileira de forma homogênea, com a necessidade de “homogeneizar” o que não está “homogeneizado”. E, destarte, não reconhecer a diversidade étnica e cultural existente no país e sobre a qual é formado o povo brasileiro, para, então, catequizar e explorar os grupos índios como força de trabalho subalternizada, retomando as práticas coloniais, ainda que com outros nomes e identidades.

Isso importa diretamente um significativo impacto sobre as terras ocupadas e sobre estes próprios povos, já que não se busca a sua proteção e a preservação da natureza, e sim a exploração e culturalização. Este tipo de política contraria todas as construções normativas e principiológicas construídas no último século, que visam defender a cultura de tais povos, ao quer tratá-los de forma desvalorizada e desconexa de sua construção cultural e ancestral.

Assim, o caminho desta política imposta pelo governo brasileiro para os indígenas retomará os ciclos de exploração vivenciados na época colonial, com a propagação da morte, da destruição da natureza e do pensamento indigenista, num pensamento que nega o diferente, a diversidade e a multiculturalidade existente no país, para pregar um anti-indigenismo, que parafraseando Marechal Rondon, dita a ideia do “matar se preciso for, (...)”, apontando que a solução para o futuro está no passado.

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1 DAVIS, Shelton. Victims of the miracle: development and the indians of Brazil. Nova York: Cambridge University Press, 1977

2 Verbete Irmãos Villas-Bôas, Wikipédia, 2019. Disponível em: Clique aqui. Acesso out 2019.

3 Declaração das Nações Unidas sobre os Direitos dos Povos Indígenas, 2008. Disponível em: Clique aqui. Acesso out 2019

4 Política Indigenista, FUNAI. Disponível em: Clique aqui. Acesso out 2019.
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*Walter Gustavo Lemos é advogado. Doutorando em Direito pela UNESA/RJ. Mestre em História pela PUC/RS e Mestre em D. Internacional pela UAA/PY. Especialista em Direito Processual Civil pela FARO - Faculdade de Rondônia e em D. Processual Penal pela ULBRA/RS. Professor de Hermenêutica Jurídica e D. Internacional da FARO e da FCR - Faculdade Católica de Rondônia.

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