Migalhas de Peso

Precisamos falar sobre biossegurança

Neste artigo discute-se a importância da biossegurança no cenário nacional e internacional, realçada pelo atual contexto da pandemia provocada pela covid-19.

27/1/2021

(Imagem: Arte Migalhas)

Há mais de cinco anos, Bill Gates era um dos poucos líderes empresariais a alertar o mundo sobre a potencialidade de danos à vida humana, ao meio ambiente e à economia por uma eventual pandemia.

Sua defesa consistia em uma mudança de postura dos governos quanto a elaboração de políticas públicas e relacionamento internacional na área de saúde pública e biossegurança. Mais que um alerta sobre as deficiências desses setores, Gates demonstrava a fragilidade dos países e dos mercados diante de uma contaminação global por um vírus hipotético. As suas previsões estavam certas.

O mundo não se preparou e a pandemia da covid-19 vem demonstrando que os setores público e privado estavam (e ainda continuam) muito despreparados para enfrentar inimigos biológicos.

Desde o país mais rico ao de menor PIB e IDH, todos sofreram as dores do contágio do coronavírus em 2020. Uns menos, outros mais. Verificou-se que as estruturas de governo e os projetos da iniciativa privada não eram adequados para mitigar os efeitos da crise pandêmica na saúde pública e na economia.

O caos instalou-se em todo o mundo, evidenciando falhas catastróficas nos mecanismos de controles migratórios, falta de conscientização social, farmacopeia insuficiente, legislações inadequadas sobre o tema e entidades internacionais sem força e alcance necessários.

No Brasil, a lei 11.105/2005, que estabelece normas de segurança e mecanismos de fiscalização de atividades que envolvam organismos geneticamente modificados – OGM e seus derivados, cria o Conselho Nacional de Biossegurança – CNBS, reestrutura a Comissão Técnica Nacional de Biossegurança – CTNBio, dispõe sobre a Política Nacional de Biossegurança – PNB. 

A referida lei tem impactos sanitários, culturais, ambientais, econômicos e sociais, abrangendo o uso de organismos geneticamente modificados e seus derivados, utilização de células-tronco embrionárias, dentre outros assuntos de grande complexidade na área.

Válido ressaltar que seus dispositivos não se aplicam às modificações genéticas, desde que não impliquem a utilização de organismos geneticamente modificados (OGM) como receptor ou doador, obtidas através das seguintes técnicas: I – mutagênese; II – formação e utilização de células somáticas de hibridoma animal; III – fusão celular, inclusive a de protoplasma, de células vegetais, que possa ser produzida mediante métodos tradicionais de cultivo; e IV – autoclonagem de organismos não-patogênicos que se processe de maneira natural.

Dentre as proibições, a lei o faz expressamente às seguintes práticas:  

I – Implementação de projeto relativo a organismos geneticamente modificados (OGM), sem a manutenção de registro de seu acompanhamento individual;

II – Engenharia genética em organismo vivo ou o manejo in vitro de ADN/ARN natural ou recombinante, realizado em desacordo com as normas previstas na lei;

III – Engenharia genética em célula germinal humana, zigoto humano e embrião humano;

 IV – Clonagem humana;

V – Destruição ou descarte no meio ambiente de OGM e seus derivados em desacordo com as normas estabelecidas pela CTNBio, pelos órgãos e demais entidades de registro e fiscalização, referidos na Lei e sua regulamentação;

VI – Liberação no meio ambiente de OGM ou seus derivados, no âmbito de atividades de pesquisa, sem a decisão técnica favorável da CTNBio e, nos casos de liberação comercial, sem o parecer técnico favorável da CTNBio, ou sem o licenciamento do órgão ou entidade ambiental responsável, quando a CTNBio considerar a atividade como potencialmente causadora de degradação ambiental, ou sem a aprovação do Conselho Nacional de Biossegurança – CNBS, quando o processo tenha sido por ele avocado, na forma dessa Lei e de sua regulamentação;

VII – A utilização, a comercialização, o registro, o patenteamento e o licenciamento de tecnologias genéticas de restrição do uso.

Embora seja um marco regulatório importante, a lei não dispõe detalhadamente sobre a matéria a que se refere. Erige-se muito mais como uma "bússola" e normas gerais. Estabelece as luzes mestras, conceitos e vedações gerais sobre práticas que - entendeu o legislador da época - estariam desalinhadas com valores éticos e com o princípio da precaução.

O legislador optou por atribuir ampla função normativa regulamentar ao Poder Executivo, considerando que a complexidade do tema e sua abrangência exigem a sua contínua análise pelos órgãos técnicos do Poder Público. Acaso assim não o fizesse, certamente o rigor do processo legislativo formal engessaria as modificações normativas, ignorando detalhes científicos necessários ao longo do tempo.

Nesse sentido, criou-se o Conselho Nacional de Biossegurança – CNBS, vinculado à Presidência da República, para a formulação e implementação da Política Nacional de Biossegurança – PNB, ao qual compete, dentre outras atribuições, fixar princípios e diretrizes para a ação administrativa dos órgãos e entidades federais com competências sobre a matéria, bem como analisar, a pedido da CTNBio, quanto aos aspectos da conveniência e oportunidade socioeconômicas e do interesse nacional, os pedidos de liberação para uso comercial de OGM e seus derivados.

Já a Comissão Técnica Nacional de Biossegurança (CTNBio), integrante do Ministério da Ciência e Tecnologia, é a instância colegiada multidisciplinar de caráter consultivo e deliberativo, para prestar apoio técnico e de assessoramento ao Governo Federal na formulação, atualização e implementação da PNB de OGM e seus derivados, bem como no estabelecimento de normas técnicas de segurança e de pareceres técnicos referentes à autorização para atividades que envolvam pesquisa e uso comercial de OGM e seus derivados, com base na avaliação de seu risco zoofitossanitário, à saúde humana e ao meio ambiente.

Nos termos da lei, a CTNBio deverá acompanhar o desenvolvimento e o progresso técnico e científico nas áreas de biossegurança, biotecnologia, bioética e afins, com o objetivo de aumentar sua capacitação para a proteção da saúde humana, dos animais e das plantas e do meio ambiente.

Como se verifica, a CTNBio e o CNBS são órgãos extremamente importantes para a construção da política de biossegurança nacional, haja vista sua função normativa e regulamentar sobre o tema, notadamente afeto às atividades que envolvam a construção, experimentação, cultivo, manipulação, transporte, comercialização, consumo, armazenamento, liberação e descarte de Organismos Geneticamente Modificados e derivados.

A despeito da importância da lei 11.105/05, depreende-se que esse diploma legal se preocupou fundamentalmente com aspectos relacionados à pesquisa, cultura e produção de organismos geneticamente modificados (OGM), deixando de dispor sobre outros assuntos de igual ou até maior relevância na seara de biossegurança.

O contexto demonstrou ser necessário muito mais. Além de atividades relacionadas aos organismos geneticamente modificados, é preciso maior integração entre as normas técnicas de segurança nos mais diversos ramos da atividade humana, não se admitindo – por exemplo - mera adesão dos sujeitos passíveis de contaminação em práticas laboratoriais, voluntariedade em todo e qualquer programa de imunização etc. Saltam aos olhos que os riscos em biossegurança ultrapassam os direitos individuais, alcançando também os direitos coletivos e difusos.

Dentre outros aspectos, a política nacional de biossegurança deve ter um viés mais amplo, compreendendo normas ambientais claras e conteúdo inclusive sobre a saúde pública em geral. Cite-se, em outra vertente, apenas a título de exemplo, aspectos relacionados aos controles migratórios. Muitas vezes limitados à questões burocráticas, novos instrumentos de fiscalização devem ser adotados para mitigar riscos sanitários, químicos e biológicos.

O Brasil precisa enfrentar esse debate com prudência, respeitando os direitos fundamentais, sobretudo o princípio da dignidade do ser humano. É necessário revisitar a legislação de biossegurança à luz das evidências trazidas pela pandemia da covid-19, convidando para essa agenda atores importantes nas áreas de saúde pública, genética, segurança, meio ambiente, etc. O Brasil não deve pecar por omissão.

 

Frederico José Gervasio Aburachid
Sócio do escritório Aburachid Advogados Associados. Mestre em Direito pela UFMG e em sustentabilidade socioeconômica ambiental pela UFOP. Pós-graduado em Direito Ambiental pela UGF. Presidente da Fundação Libanesa de Minas Gerais (FULIBAN).

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