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A corrupção passiva e a alteração interpretativa jurisprudencial acerca da (des)necessidade do ato de ofício

Em 2003 os crimes de corrupção – ativa e passiva – sofreram alteração legislativa, pela lei 10.763, com reflexos tão-somente na sanção penal. A descrição típica permaneceu inalterada.

7/4/2021

(Imagem: Arte Migalhas)

Tradicionalmente a doutrina nacional entendeu aplicável ao tipo penal de corrupção passiva (art. 317, CP1) a exigência do ato de ofício prevista no crime de corrupção ativa (art. 333, CP2). Assim, se a vantagem recebida indevidamente pelo funcionário público não estivesse vinculada a um ato de ofício, não haveria nem corrupção ativa nem corrupção passiva. Justamente neste sentido foi o entendimento do Supremo Tribunal Federal na Ação Penal 307, que rejeitou a denúncia em face de Fernando Collor de Mello, haja vista a ausência da vinculação de ato de ofício à vantagem indevida no crime de corrupção passiva.3

Em 2003 os crimes de corrupção – ativa e passiva – sofreram alteração legislativa, pela lei 10.763, com reflexos tão-somente na sanção penal. A descrição típica permaneceu inalterada.

Contudo, o entendimento jurisprudencial começou a ser alterado na Ação Penal 470 (Caso Mensalão), sendo, ainda, mantida a exigência de vinculação a ato de ofício, mas flexibilizou a determinação no momento das ações de solicitar e receber.4

A legislação brasileira conta apenas com dois tipos de corrupção – passiva e ativa – sem qualquer especificação quanto a função exercida pelo funcionário público, podendo ser um guarda de trânsito ou parlamentar. Neste ponto residem os problemas de política criminal, se o ato de ofício for exigível no momento do recebimento ou da solicitação da vantagem indevida, seriam punidos apenas os ilícitos de menor gravidade e aquela corrupção considerada sistêmica permaneceria ilesa.5

A 1ª turma do Supremo Tribunal Federal, em nova interpretação do tipo de corrupção passiva, entendeu pela desnecessidade da subsunção entre o específico ato de ofício e as vantagens indevidas, bastando apenas a subsunção causal entre as atribuições do funcionário público e as vantagens indevida, passando a atuar em prol de interesse particular, desvirtuando a função pública.6

Contudo, o Superior Tribunal de Justiça no julgamento do Recurso Especial 1.745.4107, de relatoria da ministra Laurita Vaz, interpretou o termo “em razão da função” de forma inédita, alargando ainda mais a esfera de abrangência do tipo de corrupção passiva (art. 317, CP). Assim, entendeu-se que a expressão em razão da função não é equiparável ao ato de ofício da corrupção ativa (art. 333, CP), sendo admitida a condenação ainda que as ações ou omissões indevidas não estejam dentro das atribuições formais do funcionário público.8

Concretamente, dois dos recorrentes teriam sido denunciados pelo crime de corrupção passiva – dentro outros – em razão de terem, aceitado promessa de vantagem indevida, oferecida por terceiro, consistente no valor de R$ 1.000,00 (mil reais). Assim, caberia aos aeroportuários esperar o desembarque do estrangeiro em vôo que chegava ao Brasil e no corredor de desembarque recebê-lo e escolta-lo até as áreas restritas do aeroporto. Além disso, estaria dentro da promessa de vantagem indevida o acompanhamento do estrangeiro até que fosse possível a passagem furtiva pelo serviço de imigração.

O Juízo sentenciante entendeu pela atipicidade do crime de corrupção passiva, haja vista a ausência de competência dos funcionários públicos para permitir a entrada de estrangeiro em território brasileiro. Desta forma, não haveria nexo causal entre a promessa de vantagem indevida e o ato praticado. Assim, entendeu-se na sentença pela desclassificação para o crime de introdução irregular de estrangeiro em território nacional (art. 125, XII, da lei 6.815/80).

Ministro Sebastião Reis Júnior, relator originário do Resp 1.745.410, fez diferenciação entre os tipos de corrupção ativa e corrupção passiva. Sendo que na forma ativa há a exigência legal da existência de determinado ato de ofício e na forma passiva há apenas a descrição típica da solicitação, aceitação ou recebimento de promessa indevida em razão da função ocupada pelo funcionário público.

Embora o tipo de corrupção passiva não faça menção ao ato de ofício, há a expressão “em razão dela”, representando o necessário vínculo entre a vantagem indevida e a função exercida pelo agente. Neste sentido, para Sebastião Reis Júnior é indispensável a existência de nexo de causalidade entre a conduta do agente público e a realização de ato funcional de sua competência. Para corroborar colacionou-se diversos julgados do Superior Tribunal de Justiça9 no sentido a necessidade do nexo causal entre as competências funcionais e a conduta do agente público no ato de corrupção passiva.

Entretanto, a ministra Laurita Vaz abriu divergência parcial ao voto do Ministro Relator, quanto aos requisitos da configuração do crime de corrupção passiva.

O entendimento da ministra relatora foi no sentido de que a opção legislativa teria sido direcionada para ampliar a abrangência da incriminação por corrupção passiva, se comparada ao tipo de corrupção ativa. Desta forma, a proteção ao bem jurídico – probidade da administração pública10 – seria potencializada.

Neste sentido, proferiu voto pelo parcial provimento do recurso especial a fim de reconhecer a prática do crime de corrupção passiva.

O legislador brasileiro optou por dois tipos penais diversos de corrupção, com contornos diferentes. Inegavelmente a modalidade ativa possui a restrição da vinculação do ato de ofício. Por algum tempo o entendimento doutrinário e jurisprudencial foi no sentimento de aplicação extensiva do requisito do ato de ofício à corrupção passiva. Contudo, tal entendimento foi sendo transformado jurisprudencialmente, chegando ao passo de completa desnecessidade de subsunção da vantagem indevida ao ato de ofício. Entretanto, a interpretação do Superior Tribunal de Justiça passou de entender pela desnecessidade de vinculação causal da vantagem indevida às atribuições do funcionário público.

_________

1 Solicitar ou receber, para si ou para outrem, direta ou indiretamente, ainda que fora da função ou antes de assumi-la, mas em razão dela, vantagem indevida, ou aceitar promessa de tal vantagem: Pena – reclusão, de 2 (dois) a 12 (doze) anos, e multa

2 Oferecer ou prometer vantagem indevida a funcionário público, para determiná-lo a praticar, omitir ou retardar ato de ofício: Pena – reclusão, de 2 (dois) a 12 (doze) anos, e multa.

3 QUANDT, Gustavo de Oliveira. O crime de corrupção e a compra de boas relações. In: LEITE, Alaor; TEIXEIRA, Adriano (org). Crime e Política – Corrupção, financiamento irregular de partidos políticos, caixa dois eleitoral e enriquecimento ilícito. Rio de Janeiro: FGV Editora, 2017. p. 53 – 76.

4 Idem.

5 Idem.

6 Neste sentido: STF, AP 695, Rel. Min. Rosa Weber, 1ª turma, j. 6/9/16.STF, Inq 4506, Relator(a): MARCO AURÉLIO, Relator(a) p/ Acórdão: ROBERTO BARROSO, 1ª turma, julgado em 17/4/18, ACÓRDÃO ELETRÔNICO DJe-183 DIVULG 3/9/18 PUBLIC 4/9/18.

7 STJ, REsp 1745410, Relatora para Acórdão Ministra Laurita Vaz, Sexta Turma. DJE 23 de outubro de 2018.

8 Neste sentido: LEITE, Alaor; TEIXEIRA, Adriano; GRECO, Luis. A amplitude do tipo penal da corrupção passiva. Acessado em 10 de setembro de 2020.

9 STJ, HC 135.142/MS, ministro Jorge Mussi, 5ª turma, DJE 4/10/10. STJ, RESP 440.106/RJ, ministro Paulo Medina, 6ª turma, DJ 9/10/06. STJ, HC 13.487/RJ, ministro Fernando Gonçalves, 6ª turma, DJ 27/5/02.

10 Definição atribuída por Laurita Vaz.

Bibiana Fontella
Mestre em Ciências Jurídico-Criminais pela Faculdade de Direito da Universidade de Coimbra. Professora de Direito Penal. Advogada Criminal.

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