Finalmente chegou o dia de Angélica se aposentar. Ela é apenas um caso entre os inúmeros que acontecem todos os dias Brasil afora. Começou a trabalhar aos 20 anos, em atividades com baixa remuneração. Durante os cinco anos em que permaneceu em seu primeiro emprego, percebeu que colegas de trabalho homens conseguiram promoções e aumentos superiores aos dela, apesar de apresentarem resultados inferiores. Angélica se casou e foi mãe aos 25 anos de idade; sem uma rede de apoio e com uma situação financeira espartana, ela e o marido decidiram que um deles deveria parar de trabalhar para se dedicar exclusivamente aos cuidados com o filho e a casa. Como tinha a menor renda do casal, Angélica abdicou do trabalho remunerado por dez anos, período em que teve mais dois filhos. Ao completar 35 anos de idade retornou ao mercado de trabalho, mas, após tantos anos afastada, conseguiu apenas um emprego com remuneração extremamente baixa. Não foram poucas as dificuldades de compatibilizar sua jornada de trabalho com os horários dos filhos, uma vez que Angélica permanecia com a maioria das responsabilidades em relação às crianças. Por esse motivo, renunciou a diversas oportunidades de trabalho. Quando estava trabalhando, a rotina exigia, ainda, energia extra para as atividades domésticas, uma vez que a atenção do marido não poderia ser “exageradamente” desviada do trabalho para as questões do lar, embora ele “ajudasse” bastante, quando sua profissão permitia.
Em 2023, Angélica completou 62 anos de idade e, possuindo mais de 15 anos de contribuição, conquistou o direito de se aposentar... mas não sem ouvir críticas de que não faz sentido, em pleno século XXI, as mulheres se aposentarem antes dos homens, já que isso seria incompatível com a luta por igualdade, principalmente, porque a expectativa de vida da mulher é maior que a do homem, o que gera um desequilíbrio nas contas da previdência.
Histórias como a de Angélica são vividas por Sílvias, Marias, Isabelas e tantas outras mulheres que experimentam uma profunda desigualdade de oportunidades de ingresso e permanência no mercado de trabalho, dificultando – e, muitas vezes, impedindo – o acesso à aposentadoria. Mulheres e homens, em nossa sociedade atual, não possuem as mesmas chances de se aposentarem. A discriminação estrutural impõe desafios adicionais às mulheres, tornando ainda mais difícil atender às exigências previdenciárias, mesmo em ambientes e famílias progressistas. Quando a esses desafios se somam o sexismo e a misoginia, o caminho até a aposentadoria passa a ser um campo minado.
É verdade que, apesar do assustador (res)surgimento da “machosfera” e do “red pill”, houve muitos avanços na conquista de igualdade entre mulheres e homens, sendo perceptíveis as conquistas da sociedade na construção de um mercado de trabalho menos discriminatório. Mas não confundamos redução da desigualdade com conquista de igualdade. Somos menos desiguais que ontem, mas ainda estamos muito distantes de uma verdadeira igualdade de oportunidades.
A previdência social - direito social fortemente baseado na ideia de igualdade - busca ferramentas para, ainda que de modo incompleto, equiparar as chances de acesso ao benefício. Para tanto, as atuais normas previdenciárias estabelecem, como regra geral, que a aposentadoria da mulher ocorra aos 62 anos de idade, três anos a menos que a aposentadoria do homem, para a qual são exigidos 65 anos de idade.
A diferença da idade de aposentadoria entre gêneros foi reduzida na última reforma da previdência, em 2019. De acordo com a legislação anterior, mulheres se aposentavam aos 60 anos ou com 30 anos de contribuição, enquanto os homens se aposentavam aos 65 ou com 35 anos de contribuição.
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MULHERES |
HOMENS |
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Antes da reforma |
60 anos de idade ou 30 anos de contribuição |
Antes da reforma |
65 anos de idade ou 35 anos de contribuição |
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Após a reforma |
62 anos de idade e 15 anos de contribuição |
Após a reforma |
65 anos de idade e 20 anos de contribuição |
A mudança reflete os avanços que autorizam uma aproximação entre os critérios de aposentadoria de mulheres e homens, mas também reconhece a manutenção do cenário de desigualdade entre gêneros, que exige um tratamento compensatório.
Em que pese projeções atuariais ou argumentos exclusivamente financeiros, o fato é que a adoção de regras diferenciadas para a aposentadoria das mulheres não constitui privilégio ou medida desproporcional. Ao contrário, trata-se de instrumento ainda necessário diante das profundas desigualdades entre gêneros. As dificuldades e obstáculos enfrentados pela mulher para ingressar e permanecer no mercado de trabalho exigem medida compensatória, direcionada a igualar oportunidades no acesso a benefícios de aposentadoria e garantir uma proteção previdenciária eficiente.