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Há mesmo contraditório ao se apurar falta grave no sistema prisional?

O exercício do contraditório é mais do que o mero conhecimento do ato, mas também o direito de participar dele, reagir contra ele e impugná-lo.

18/3/2025

A tensão entre a legislação e a Administração

O Estado dá com uma mão e tira com a outra! Quem exerce a advocacia no sistema prisional sabe bem o que isso significa. Significa que apesar do legislador reconhecer os direitos e garantias fundamentais do cidadão a Administração raramente os aplica.

Os direitos e garantias fundamentais, dentre estes destacando-se o princípio constitucional do contraditório, estão escritos expressamente na CF/88, na lei de execução penal e regimentos internos dos sistemas prisionais estaduais.

Disse que o Estado dá com uma mão, porque o legislador cria os direitos e garantias fundamentais, e tira com a outra mão porque o administrador lhes é na maior parte indiferente, principalmente quando o assunto é apuração de falta grave disciplinar no sistema prisional.

A situação carcerária fica ainda mais complicada, quando a apuração de uma falta disciplinar grave ocorrida no sistema prisional aumenta a permanência do detento no sistema carcerário justamente porque o administrador ignora os direitos e garantias fundamentais dos detentos, obrigando o mesmo a pleitear seus direitos na via judicial.

Os regimentos dos sistemas prisionais textualmente fazem referência explícita do princípio do contraditório nas apurações de faltas graves disciplinares, mas, na prática, no dia a dia, nenhum dos administradores prisionais, se não forem judicialmente obrigados, obedecem a este princípio.

Talvez a justificativa do Estado Administração seja a falta de pessoal para dar conta da enorme demanda de apurações ou mesmo o alto custo financeiro e burocrático para o desenvolvimento do PAD nos moldes dos direitos e garantias fundamentais.

Talvez seja uma questão até cultural ou política dos dirigentes do sistema prisional! Enfim, a verdade é que na seara administrativa o princípio constitucional do contraditório raramente é respeitado no sistema prisional.

Vale lembrar que o STF já declarou o estado de coisas inconstitucional no sistema prisional brasileiro. E apesar desse reconhecimento, o conflito entre a preocupação do legislador com os direitos e garantias fundamentais e a indiferença do administrador até hoje parece não ter uma solução prática, ficando a população carcerária pobre a espera de um milagre em suas vidas durante o cumprimento de pena.

A realidade das apurações da falta grave no sistema prisional

Na prática, quando, no interior de uma unidade prisional qualquer, um detento é suspeito de ter cometido uma falta disciplinar grave, é instaurada uma portaria onde se inicia os procedimentos apuratórios.

Há um relatório inicial onde se descreve os fatos acontecidos e se aponta as pessoas envolvidas tais como suspeito e testemunhas. Todo o material probatório que por ocasião houver sido apreendido também é anexado a esse relatório inicial.

Toda a documentação pertinente ao caso é reunida então e encaminhada ao cartório da CD - Comissão Disciplinar para o processamento do PAD - Procedimento Administrativo Disciplinar.

As testemunhas, que no âmbito do sistema prisional são, na maior parte das vezes, policiais penais, são ouvidas em cartório unilateralmente. A defesa do sentenciado suspeito da falta disciplinar não é intimada ou notificada para essas oitivas.

A oitiva do suspeito, que costuma ser feita por último, essa sim, é sempre acompanhada de um defensor, constituído ou não.

Uma vez concluída a instrução do PAD, é designada uma audiência de julgamento da falta disciplinar pela CD - Comissão Disciplinar. Vale lembrar que nessa audiência de julgamento somente o sentenciado suspeito é requisitado e intimado/notificado o defensor para comparecer perante ela. Nenhuma das testemunhas ouvidas em cartório são intimadas ou ouvidas perante a CD, não importa o que diz a CF ou o regimento do sistema prisional ou quanto a defesa proteste ou impugne.

Analisado o PAD e ouvido o sentenciado suspeito, a CD julga e decide pela absolvição ou condenação do sentenciado.

Apesar das referências normativas acerca do princípio do contraditório, é manifesta a indiferença da administração prisional quanto a este princípio.

A defesa durante todo o procedimento do PAD (com exceção do suspeito nos interrogatórios) é impedida de exercer o contraditório justamente porque a administração prisional não lhe dá a oportunidade de questionar as mesmas testemunhas ouvidas por ela anteriormente e unilateralmente.

O que a defesa diligente pode fazer é suscitar preliminar de nulidade perante a CD para posteriormente argui-la novamente no requerimento de audiência de justificação perante o juízo da execução penal. O interrogatório do sentenciado, bem como a oitiva de todas as testemunhas devem também ser requeridos, sob pena de se perpetuar, em juízo, a violação ao princípio constitucional do contraditório ocorrida na fase administrativa.

A não rara conivência dos juízos de execução penal

Perceba-se que utilizei a palavra perpetuar receando que a indiferença ao princípio do contraditório se repita também em juízo da execução penal. Essa menção não é à toa justamente porque há entendimentos no sentido de que se o sentenciado foi acompanhado de defensor durante a instrução e julgamento do PAD há desnecessidade de designação de audiência de justificação.

Percebe-se que é possível provocar judicialmente todas as instâncias superiores para tentar reparar a violação ao princípio do contraditório. Mas quanto tempo se levará até, por exemplo, o STJ ou o STF tomar conhecimento e afastar tal violação?

E mesmo depois de afastada, a nulidade decretada pelo tribunal superior do PAD ou da decisão judicial do juízo da execução penal que homologou a falta grave causará duplo prejuízo para o detento. Um primeiro prejuízo consistirá no tempo perdido e outro tanto tempo que será utilizado para refazer os procedimentos de apuração da falta grave. Consequentemente, o segundo prejuízo poderá ser o retardamento ou suspensão dos benefícios da execução penal para o detento.

Conclusão

Muitas vezes a incerteza do resultado, o tempo para uma prestação jurisdicional, a condição financeira precária do detento ou mesmo a impossibilidade da Defensoria Pública, em acompanhar todos os casos, contribuem para a inércia e a indiferença do administrador do sistema prisional. Essa a razão por que na população carcerária pouquíssimos são os que acionam a justiça para fazer ser respeitado o princípio do contraditório no sistema prisional.

O STF, ao reconhecer o estado de coisas inconstitucional, já chamou a atenção para o fato de que a CF/88, no que concerne ao sistema prisional, tem sido uma ilusão, pois o Estado Administração conhece o seu texto, mas não entende seu espírito, principalmente quando o assunto são os direitos e garantias fundamentais do sentenciado em cumprimento de pena.

Mais que que acabar com a inércia e a malícia do Estado Administração é preciso que não sejamos coniventes com elas, pois é justamente isso que ocorre quando deixamos de expor a realidade do sistema prisional e de acionar a justiça, esgotando todas as instâncias judiciais.

Antonio Oliveira Filho
Advogado Criminalista. Bacharel em direito pela UFMG. Há 20 anos defendendo a liberdade, o justo processo e a dignidade da pessoa humana.

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