A aplicação do Direito no tempo é um tema constante e tormentoso no Poder Judiciário. Tampouco é novidade as nuances e os conflitos interpretativos que envolvem o tema.
Houve épocas em que o problema a ser resolvido era diferenciar a natureza jurídica do direito material do processual. Posteriormente foi teorizar que o Direito Penal material se encontraria no CP e o Direito Penal Processual no CPP.
A evolução da doutrina e da jurisprudência ensinaram que o Direito Penal Material e o Direito Penal Processual podem juntamente se encontrar em ambos os diplomas, inclusive em diplomas legais diversos do CP, do CPP e da LEP. Enfim, consolidou-se o entendimento de que é a norma e não a lei que determina a natureza jurídica da regra de Direito Penal.
Parece ser esse o motivo do conflito atual de interpretações acerca da aplicação da lei 14.843/24 sobre os institutos da saída temporária e do trabalho externo. Se as normas que promoveram as alterações nos institutos da saída temporária e do trabalho externo na LEP, revogando-os, tem natureza material ou processual.
Aparentemente, há duas interpretações antagônicas da lei 14.843/24: a) essa lei se aplicaria de imediato a todos os detentos independentemente de quando começaram a cumprir a pena, por tal norma estar inserida na LEP - Lei de Execução Penal, que tem natureza eminentemente procedimental; e b) essa mesma lei não se aplicaria a detentos que já vinham cumprindo pena, pois tal lei, por ser mais gravosa não poderia retroagir, justamente porque se trata de direito material.
Quer dizer, para saber se os arts. 2º e 3º da lei 14.843/24 podem ou não retroagir deverá ser investigado a natureza jurídica dessas normas, pouco importando o fato delas terem sido inseridas na LEP, que tem caráter predominantemente processual/procedimental.
Mais uma vez é a dúvida sobre a natureza jurídica de tais normas de Direito Penal contidas na lei 14.843/24 que levaram o STF a reconhecer a repercussão geral no RE 1.532.446.
A questão constitucional a qual o STF se propôs a responder no Tema 1.381 é:
“saber se a aplicação da Lei nº 14.843/2024, sobre saída temporária e trabalho externo do apenado, na execução de pena por crimes praticados antes de sua vigência, viola a garantia de irretroatividade da lei penal mais gravosa (inciso XL do art. 5º da Constituição).”.
Acreditamos que a aplicação da lei 14.843/24, sobre saída temporária e trabalho externo do apenado, na execução de pena por crimes praticados antes de sua vigência, viola a garantia de irretroatividade da lei penal mais gravosa.
A razão dessa violação é simples. A prisão consubstanciada na pena privativa de liberdade do sentenciado em cumprimento de pena na execução penal tem como fundamento constitucional o direito material da liberdade. A existência de qualquer instituto jurídico na LEP em benefício do apenado, como a saída temporária e o trabalho externo, tem sempre a ver com o direito material da liberdade refletido na pena privativa de liberdade cumprida ou a cumprir.
Por isso, a saída temporária e o trabalho externo estão intrinsicamente relacionados com a pena privativa de liberdade. E esta nada mais é do que uma das faces do direito material da liberdade.
Se, por exemplo, uma nova lei exige um tempo maior de cumprimento da pena para se conceder o benefício não há dúvidas de que essa nova lei não retroage porque afeta a pena cumprida do sentenciado. Ou seja, prolongaria a prisão do sentenciado, violando seu direito material de liberdade, ainda que esta liberdade seja restrita.
Esse entendimento vem sendo empregado pelo STF desde o julgamento do HC 93.746/SP, onde se entendeu que a lei 11.464/07, que instituiu tempo maior de cumprimento da pena para o sentenciado ter direito a progressão de regime, não retroagiria porque violaria a garantia de irretroatividade da lei penal mais gravosa, insculpida no inciso XL do art. 5º da CF/88.
Sob esse mesmo fundamento, a atual revogação dos institutos jurídicos da saída temporária e do trabalho externo afeta o direito material da liberdade (ainda que esta seja restrita) dos sentenciados porque prolongaria igualmente a prisão deles.
Daí porque a lei 14.843/24 fere o princípio da irretroatividade da lei penal mais gravosa, considerada do ponto de vista jurídico.
Mas como as questões discutidas no STF nem sempre são exclusivamente jurídicas, há o risco de haver uma redefinição (mais uma vez!) do conceito de retroatividade da lei penal. Isso porque não se sabe como serão feitas as concomitantes abordagens das questões sociais e políticas pelo STF na decisão vindoura, principalmente no que diz respeito à influência do princípio da segurança pública.