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A inexistência da assistência qualificada na lei Maria da Penha

O artigo analisa a interpretação equivocada da lei Maria da Penha por Defensorias Públicas ao criarem a figura da “assistência qualificada da vítima”, sem respaldo legal no processo penal.

12/5/2025

A inexistência legal da chamada “assistência qualificada da vítima” pela Defensoria Pública – uma análise dos arts. 27 e 28 da lei Maria da Penha

O presente artigo tem por objetivo examinar criticamente a equivocada interpretação conferida por parte do Poder Judiciário – em especial por algumas Defensorias Públicas – aos arts. 27 e 28 da lei 11.340/06 (Lei Maria da Penha), que teria dado origem à figura inexistente da chamada “assistência qualificada da vítima”.

A lei Maria da Penha, no capítulo IV, que trata da assistência judiciária, dispõe:

Art. 27. “Em todos os atos processuais, cíveis e criminais, a mulher em situação de violência doméstica e familiar deverá estar acompanhada de advogado, ressalvado o previsto no art. 19 desta Lei.”

Art. 28. “É garantido a toda mulher em situação de violência doméstica e familiar o acesso aos serviços de Defensoria Pública ou de Assistência Judiciária Gratuita, nos termos da lei, em sede policial e judicial, mediante atendimento específico e humanizado.”

De tais dispositivos depreende-se que o legislador buscou assegurar à mulher vítima de violência o direito à assistência jurídica, por meio de advogado ou da Defensoria Pública, especialmente nos casos de hipossuficiência. O texto legal, no entanto, não autoriza – e tampouco sugere – a atuação da Defensoria Pública como parte autônoma no processo penal, sem a devida habilitação como assistente de acusação.

Essa interpretação é reforçada pela análise do PL 4.559/04, que deu origem à lei 11.340/06. Nos arts. 20 e 21 daquele projeto havia menção expressa ao acompanhamento da vítima por advogado ou defensor público nos atos processuais, sem qualquer inovação quanto à criação de nova figura processual. A própria exposição de motivos destaca que a assistência jurídica mencionada visa garantir acesso à justiça, abrangendo orientação e aconselhamento jurídico, não o exercício de poderes processuais típicos do Ministério Público ou do assistente de acusação.

Não obstante essa clareza legal, observa-se que, ao longo do tempo, algumas Defensorias Públicas – notadamente a do Estado do Rio de Janeiro – instituíram em sua estrutura interna a chamada “Defensoria Pública da Vítima”, que, na prática, passou a exercer atribuições além daquelas previstas legalmente. Tal atuação, rotulada de “assistência qualificada da vítima”, passou a ocorrer de ofício, sem requerimento da ofendida, inclusive com formulação de perguntas em audiências criminais, independentemente de prévia habilitação nos autos.

Esse fenômeno tem gerado situações de desequilíbrio processual e de potencial violação aos princípios do devido processo legal, da ampla defesa e da paridade de armas. Um exemplo notório foi registrado na ação penal 0006946-45.2018.8.19.0036, quando o magistrado anulou, por duas vezes, o depoimento da vítima, ao constatar a atuação indevida da Defensoria Pública da Vítima, que formulava perguntas sem estar habilitada como assistente de acusação.

Na decisão, o juízo de origem asseverou que os arts. 27 e 28 da lei Maria da Penha não conferem capacidade postulatória autônoma à Defensoria Pública para atuar dessa maneira, e destacou que a participação legítima nos autos depende de habilitação formal, como previsto no CPP.

Todavia, em julgamento posterior, a 3ª Câmara Criminal do TJ/RJ, no recurso em sentido estrito interposto pela própria Defensoria Pública da Vítima, entendeu pela validade da sua atuação, reconhecendo-lhe natureza de “assistência especial” derivada da interpretação teleológica do art. 27 da LMP. O acórdão, além de afastar a nulidade, validou a atuação da Defensoria mesmo sem requerimento expresso da vítima, baseando-se na proteção integral da mulher e na vedação à revitimização.

Tal entendimento, embora bem-intencionado, configura interpretação extensiva in malam partem da norma processual penal, criando figura processual inexistente e atribuindo poderes sem respaldo legal. Ademais, importa destacar que a própria Defensoria Pública representava, no caso concreto, tanto a vítima quanto o réu, o que suscita evidentes questionamentos quanto à compatibilidade ética e funcional dessa atuação.

O ponto nodal da controvérsia reside na tentativa de se conferir à assistência judiciária prevista nos arts. 27 e 28 da LMP poderes típicos de parte processual – o que exige, como regra, a devida habilitação nos autos, conforme estabelece o art. 268 do CPP. A assistência judiciária não se confunde com a capacidade postulatória, e não pode ser empregada como instrumento para criação de uma “assistência qualificada” sem respaldo legislativo.

Ainda que decisões judiciais venham acolhendo essa prática, isso não legitima a deformação da legislação vigente. Como é cediço, o Poder Judiciário não possui competência legislativa e não pode, sob o manto da interpretação, inovar no ordenamento jurídico, sob pena de violação ao princípio da legalidade estrita e da reserva legal, especialmente no campo do Direito Penal e Processual Penal.

Portanto, a tentativa de institucionalização da “assistência qualificada da vítima” por meio de resoluções, portarias ou atos administrativos internos das Defensorias Públicas, ou ainda via decisões judiciais interpretativas, é incompatível com o sistema jurídico vigente e deve ser rechaçada, sob pena de grave insegurança jurídica e comprometimento da isonomia entre as partes no processo penal.

Se o propósito for a criação de uma nova figura processual voltada à proteção da vítima, tal medida deve se dar exclusivamente via lei aprovada pelo Congresso Nacional, mediante ampla discussão e respeito aos limites constitucionais.

Conclusão

A denominada “assistência qualificada da vítima”, tal como vem sendo praticada, carece de previsão legal e afronta os princípios basilares do processo penal democrático. Sua sustentação jurídica é frágil, e sua atuação desprovida de habilitação legal compromete a estrutura do contraditório e da ampla defesa. A proteção da vítima é imperativa, mas deve ocorrer nos limites da legalidade e da isonomia processual.

Luiz Gabriel de Oliveira e Silva Cury
Especializado em Advocacia Criminal | Sócio do LG Cury Advogados Associados | Delegado da Comissão de Defesa, Assistência e Prerrogativas da Seccional da OAB-RJ. https://lgcuryadv.com.br/links/

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