Propriedade intelectual, música e IA generativa
No dia 26/4 se comemora o Dia Mundial da Propriedade Intelectual. A data, promovida pela OMPI - Organização Mundial da Propriedade Intelectual, estimula a discussão sobre o papel da propriedade intelectual no incentivo à criação e à inovação.1 O tema escolhido para este ano foi "Propriedade Intelectual e Música". E é nesse ritmo que trazemos alguns comentários e reflexões sobre os impactos da IA generativa na música.
Pensando na IA de maneira mais ampla e para além da IA generativa, diferentes tecnologias têm sido utilizadas como ferramentas úteis para músicos, produtores e gravadoras em múltiplas etapas do processo de produção musical.2 Para fins de exemplo, plugins e aplicativos auxiliam na mixagem e masterização e permitem que músicos profissionais e amadores extraiam ou destaquem determinados instrumentos ou vozes de uma gravação para melhor compreender a execução musical ou para a gravação de covers, posteriormente disponibilizados em plataformas como o YouTube.3
A IA, e aqui em especial a IA generativa, também pode ser empregada para criar faixas inteiras, como é o caso de ferramentas como a Suno e a Udio. Todos os dias, milhares de faixas geradas por IA generativa são disponibilizadas em plataformas de streaming. Só a Deezer relatou recentemente que mais de 20.000 faixas geradas por IA são enviadas diariamente para sua plataforma e que, atualmente, faixas desse tipo já representam 18% do conteúdo submetido.4
São justamente esses casos, em que o resultado da operação de um sistema de IA generativa pode concorrer ou até mesmo substituir obras humanas, que têm gerado os debates mais acalorados. As discussões envolvem questões relacionadas ao desenvolvimento e treinamento desses sistemas, ao conteúdo sintético gerado e às implicações econômicas e sociais, especialmente no que se refere às receitas e postos de trabalho que antes eram destinados exclusivamente a seres humanos.
Ainda que a popularização desses sistemas seja recente e seus impactos econômicos no setor criativo tendam a se tornar mais evidentes e documentados com o tempo, estudo feito sob encomenda pela CISAC - Confederação Internacional das Sociedades de Autores e Compositores e traduzido para o português do Brasil pela UBC - União Brasileira de Compositores, estima que, nos próximos anos, criadores humanos sofrerão perdas bilionárias, representando 24% de suas receitas no período até 2028.5 Por outro lado, e consideradas as necessárias diferenças entre setores, é importante destacar que o Relatório AI Index de 2025 reporta aumento de produtividade e, especificamente no que diz respeito ao uso de sistemas de IA generativa por engenheiros de software, 57% dos respondentes identificaram aumento em suas receitas e 52% relataram redução de custos a partir da adoção dessas tecnologias.6
Não é à toa, portanto, que se observa atualmente uma crescente preocupação e urgência na discussão, em âmbito legislativo, de projetos envolvendo a regulação de IA no Brasil e no mundo. Um exemplo é o PL 2.338/23, conhecido popularmente como PL da IA, recentemente aprovado no Senado Federal, e cujas questões centrais em matéria de direitos autorais foram analisadas em estudo publicado pelo Instituto Brasileiro de Direitos Autorais.7 Nesta contribuição, serão apresentados alguns dos principais argumentos levantados nos tribunais em casos relacionados à música e à IA generativa.
Processos judiciais em destaque
Os últimos anos registraram o aumento do número de processos judiciais ao redor do mundo envolvendo direitos autorais, nos quais empresas desenvolvedoras de sistemas de IA generativa figuram como rés. Algumas dessas ações envolvem conhecidos sistemas capazes de gerar letras de músicas (como o ChatGPT e o Claude) ou faixas musicais inteiras (como o Suno e o Udio). Até o momento, não há registro de processos judiciais sobre as questões aqui discutidas no âmbito nacional, motivo pelo qual esta breve contribuição se concentra em casos ajuizados em outras jurisdições.
Nos casos UMG Recordings, Inc. v. Suno, Inc.8 e UMG Recordings, Inc. v. Uncharted Labs, Inc.,9 a UMG - Universal Music Group alega que as desenvolvedoras dos sistemas Suno e Udio, respectivamente, violaram seus direitos autorais ao utilizar, sem autorização, fonogramas (“sound recordings”) no treinamento de seus sistemas de IA generativa.10 No caso Concord Music Group, Inc. v. Anthropic PBC (empresa responsável pelo Claude.AI),11 para além de eventuais infrações relacionadas ao uso de composições musicais (incluindo suas letras) no treinamento de sistemas de IA generativa (input), é alegada também a ocorrência de violações no output e em sua difusão, bem como alteração ou remoção de informações sobre a gestão de direitos autorais, como autoria e titularidade de obras, seguida da distribuição de reproduções das obras sem tais informações.12
Por fim, importante destacar que a organização de gestão coletiva de direitos autorais da Alemanha (GEMA - Gesellschaft für musikalische Aufführungs - und mechanische Vervielfältigungsrechte) relatou ter ingressado com ações judiciais contra a OpenAI e a Suno. As ações buscam compensação pelo uso não autorizado de conteúdo protegido por direitos autorais no treinamento dos sistemas de IA generativa dessas empresas, bem como pelo fato de que alguns dos resultados gerados seriam tão semelhantes a músicas protegidas que configurariam violação de direitos autorais.13
Afinal, pode ou não pode?
Até o momento da redação deste texto, a defesa no caso Concord Music Group, Inc. v. Anthropic PBC não foi identificada. Contudo, as peças de defesa nos processos envolvendo a UMG, Suno e Udio trazem algumas ideias sobre os argumentos utilizados para afastar as alegações de infração aos direitos autorais de titulares de fonogramas e obras protegidas.
Diversos argumentos foram apresentados pela Udio e pela Suno,14 alguns deles conectados com os direitos autorais e outros não. Argumentam, por exemplo, que alguns dos materiais supostamente utilizados não seriam protegidos ou estariam em domínio público, que alguns dos usos teriam sido autorizados de forma explícita ou implícita, além de alegação baseada nas doutrinas de “uso indevido do direito autoral” (copyright misuse) e de “má-fé” (unclean hands), na qual os réus alegam que “com base nas informações disponíveis, os autores participaram de atividades anticompetitivas que estenderam um monopólio ilegal sobre a produção e comercialização de música [...]”15.
Conforme antecipado na literatura especializada,16 a doutrina do fair use tem sido uma defesa recorrente nesses e em outros casos similares nos Estados Unidos.17 É sobre essa defesa em particular que teceremos alguns comentários adicionais, considerando a expectativa em torno dos casos norte-americanos no que diz respeito à caracterização, ou não, dos usos realizados por empresas de IA generativa como fair use, principalmente considerando as recentes decisões nos casos Andy Warhol Foundation for Visual Arts, Inc. v. Goldsmith e Thomson Reuters Enterprise Centre GMBH and West Publish Ing Corp., v. Ross Intelligence Inc.
Em suas defesas, Suno e Udio recorrem a uma série de argumentos e precedentes para justificar eventuais usos de obras e fonogramas de terceiros sob o fair use. Argumentam o uso de fonogramas existentes como dados a serem minerados e analisados com a finalidade de identificar padrões, permitindo, em última instância, que usuários criem novos conteúdos. Citam precedentes como Authors Guild v. Google, Inc., 804 F.3d 202 (2d Cir. 2015) e Kelly v. Arriba Soft Corp., 336 F.3d 811 (9th Cir. 2003), para defender que a realização de cópias intermediárias para gerar um determinado resultado também não configuraria infração.
Um dos argumentos que chama atenção é o de que as rés, em ambos os casos, justificam as cópias com o objetivo de criar produtos que competem com obras de titularidade dos autores como fair use. Nesse sentido, citam o caso Sega Enters. Ltd. v. Accolade, Inc., 977 F.2d 1510 (9th Cir. 1992), em que se considerou como fair use a cópia de sistemas operacionais (consoles) para viabilizar a criação de aplicações (jogos) que competiriam com os jogos do próprio fabricante do console. Outro precedente citado é o caso Google LLC v. Oracle Am., Inc., 593 U.S. 1 (2021), em que se considerou legítima, sob o fair use, a cópia de aspectos proprietários de programas de computador protegidos para criação de produtos concorrentes. Por outro lado, é importante mencionar que, em casos como Andy Warhol e Thomson Reuters, a concorrência com obras pré-existentes teve impacto negativo no reconhecimento do uso como fair use.
Antecipando que os réus se valeriam da defesa com base no fair use, a UMG já apresentou em sua petição inicial diversas razões pelas quais os usos realizados pelas empresas rés não caracterizariam, incluindo, mas não se limitando, às seguintes: (i) que os usos não seriam transformativos e poderiam gerar substitutos diretos das obras utilizadas em seu treinamento; (ii) que os réus teriam reproduzido elementos centrais das obras protegidas; e (iii) que a prática representaria um risco substancial ao mercado de licenciamento relevante para os negócios da UMG inclusive quanto ao licenciamento para as próprias empresas de IA generativa
Até o momento, não foi proferida sentença em nenhum dos casos mencionados acima.
Conclusão
O que está em jogo não é um questionamento sobre o uso de tecnologias de IA na música. A própria UMG — que move ações judiciais contra a Suno e a Udio — adota tecnologias de IA.18 Como vimos ao longo deste texto, há uma série de ferramentas que vêm sendo amplamente utilizadas por músicos, produtores e demais profissionais da indústria musical com efeitos positivos. Inclusive, discutimos esse tema recentemente no evento DA em Debate: os trabalhadores da música.19 O problema parece estar quando existe uma finalidade comercial e/ou risco de substituição.
A geração de conteúdo sintético por sistemas de IA generativa que concorrem diretamente com obras humanas pode impactar significativamente as receitas e as oportunidades de trabalho que, historicamente, eram destinadas a autores e artistas. Ainda assim, a adoção dessa tecnologia já é uma realidade. Resta, portanto, buscar caminhos para que o direito autoral continue sendo uma ferramenta relevante de incentivo à criação (humana). E talvez, em alguns casos, as respostas não estejam apenas no âmbito do direito autoral.
Assim, é importante que uma eventual regulação, como o PL da IA, considere as diferenças entre sistemas de IA em geral (como os utilizados como ferramentas de apoio à produção musical) e os sistemas de IA generativa com potencial efeito substitutivo e que são oferecidos comercialmente. Isto é fundamental para garantir que pesquisas sobre IA e com IA, bem como outras finalidades de interesse público e voltadas à promoção da ciência e da inovação, não sejam afetadas por uma regulação pensada exclusivamente a partir de modelos comerciais generativos, que representam apenas uma parcela desses sistemas.
Em segundo lugar, e ainda que estejam sendo celebrados acordos de licenciamento de conteúdo visando seu uso autorizado e remunerado para o treinamento de grandes sistemas de IA Generativa com finalidade comercial,21 é essencial que seja discutido e viabilizado mecanismo de remuneração capaz de responder de maneira satisfatória o impacto que tais sistemas podem ter na subsistência de músicos e artistas.
A pergunta que fica é: seja por meio de acordos ou licenças, autores, artistas e músicos vão, de fato, receber parte dessas novas receitas? Como garantir que não se limitem à transferência de valores entre grandes empresas de tecnologia e grandes conglomerados de entretenimento?
Ao mesmo passo em que a IA expande a capacidade criativa humana ao disponibilizar ferramentas úteis, a realidade é que não existe IA generativa sem o conteúdo criativo humano que a alimenta. Para que a música continue a tocar, seja para humanos ou máquinas, é preciso garantir que autores, artistas e músicos sigam criando. E, para isso, precisam ser valorizados e remunerados adequadamente, considerando as diferentes finalidades e interesses em jogo.
Gostaria de agradecer ao Lukas Ruthes Gonçalves e à Alice de Perdigão Lana pela revisão e pelas valiosas contribuições ao texto. Eventuais erros são exclusivamente de minha responsabilidade.
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1 WIPO, ‘Dia Mundial da Propriedade Intelectual’, https://www.wipo.int/pt/web/ipday#:~:text=Em%202000%2C%20os%20Estados%20membros,geral%20sobre%20a%20propriedade%20intelectual.
2 Daniel tencer, ‘25% of music producers are now using AI, survey says – but a majority shows strong resistance’ (Music Business Worldwide, 8 de Julho de 2024), https://www.musicbusinessworldwide.com/25-of-music-producers-are-now-using-ai-survey-says-but-a-majority-shows-strong-resistance/. Andre Paine, UMG partners with SoundLabs to offer AI vocal tool MicDrop for the major's artists (Music Week, 18 de Junho de 2024), https://www.musicweek.com/labels/read/umg-partners-with-soundlabs-to-offer-ai-vocal-tool-micdrop-for-the-major-s-artists/089995,
3 Apenas para fins de exemplo, citamos os seguintes: ‘Magenta Studio”, https://magenta.tensorflow.org/studio, ‘Ditto’, https://dittomusic.com/en/mastering, ‘Studio Moises AI’, https://studio.moises.ai/login/.
4 Reuters, ‘AI-Generated music accounts for 18% of all tracks uploaded to Deezer’ (Reuters, 16 de Abril de 2025), https://www.reuters.com/technology/artificial-intelligence/ai-generated-music-accounts-18-all-tracks-uploaded-deezer-2025-04-16/
5 União Brasileira de Compositores, O impacto da IA generativa sobre os criadores traduzido em (muitos) números (UBC, 18 de Março de 2025), https://www.ubc.org.br/publicacoes/noticia/23176/o-impacto-da-ia-generativa-sobre-os-criadores-traduzido-em-muitos-numeros. PT_SG24-0865_Study_on_the_economic_impact_of_Generative_AI_in_Music_and_Audiovisual_industries_Complete_Study_2024-12-03
6 Standford University Human-Centered Artificial Intelligence, Artificial Intelligence Index Report 2025, https://hai.stanford.edu/ai-index/2025-ai-index-report.
7 IBDAutoral, ‘Inteligência Artificial e Direitos Autorais: Contribuições ao debate regulatório no Brasil’ (2024), https://ibdautoral.org.br/novo/2024/08/28/inteligencia-artificial-e-direitos-autorais-contribuicoes-ao-debate-regulatorio-no-brasil/.
8 UMG Recordings, Inc. v. Suno, Inc., 1:24-cv-11611, (D. Mass.)
9 UMG Recordings, Inc. v. Uncharted Labs, Inc, 1:24-cv-04777 (District Court, S.D. New York)
10 UMG Recordings, Inc. v. Suno, Inc., 1:24-cv-11611, (D. Mass. Jun 24, 2024) ECF No. 1. UMG Recordings, Inc. v. Uncharted Labs, Inc., 1:24-cv-04777, (S.D.N.Y. Jun 25, 2024) ECF No. 9.
11 Concord Music Group, Inc. v. Anthropic PBC (5:24-cv-03811)
12 Concord Music Group, Inc. v. Anthropic PBC, 5:24-cv-03811, (N.D. Cal. Oct 18, 2023) ECF No. 1.
13 GEMA. ‘GEMA sues for fair compensation’ (n.d.),https://www.gema.de/en/news/ai-and-music/ai-lawsuit
14 UMG Recordings, Inc. v. Suno, Inc., 1:24-cv-11611, (D. Mass. Aug 01, 2024) ECF No. 28. UMG Recordings, Inc. v. Uncharted Labs, Inc., 1:24-cv-04777, (S.D.N.Y. Aug 01, 2024) ECF No. 26
15 “On information and belief, Plaintiffs have engaged in anticompetitive activities that extend an unlawful monopoly over the production and commercialization of music, which by itself and/or in connection with other conduct satisfies each of the three alternative prongs above.”
16 Pamela Samuelson, ‘Fair Use Defenses in Disruptive Technology Cases’ (2024) 71 UCLA Law Review 1484.
17 See, e.g., DOE 1 v. GitHub, Inc., 4:22-cv-06823, (N.D. Cal. Jul 22, 2024) ECF No. 267. Andersen v. Stability AI Ltd., 3:23-cv-00201, (N.D. Cal. Dec 06, 2024) ECF No. 244. Nazemian v. NVIDIA Corporation, 4:24-cv-01454, (N.D. Cal. May 24, 2024) ECF No. 38. Authors Guild v. OpenAI Inc., 1:23-cv-08292, (S.D.N.Y. Feb 16, 2024) ECF No. 75. Kadrey v. Meta Platforms, Inc., 3:23-cv-03417, (N.D. Cal. Mar 24, 2025) ECF No. 489.
18 Andre Paine, UMG partners with SoundLabs to offer AI vocal tool MicDrop for the major's artists (Music Week, 18 de Junho de 2024), https://www.musicweek.com/labels/read/umg-partners-with-soundlabs-to-offer-ai-vocal-tool-micdrop-for-the-major-s-artists/089995,
19 Você pode assistir o DA em Debate aqui: https://www.youtube.com/watch?v=sveFx5nepec . Questões semelhantes foram objeto de debate no evento “Propriedade Intelectual e a Música: Sinta o Ritmo da PI”, realizado em 30 de Abril de 2025 (mais informações sobre o evento podem ser encontradas aqui: https://www.gov.br/inpi/pt-br/central-de-conteudo/noticias/dia-mundial-da-pi-2025-no-ccbb-rj-celebra-a-musica-a-criatividade-e-os-direitos-de-propriedade-intelectual)
20 Veja, por exemplo, Charlotte Tobitt, ‘Who’s suing AI and who’s signing: 14 publishers join lawsuit against start-up Cohere’ (PressGazette: Future of Media, 14 February, 2025), https://pressgazette.co.uk/platforms/news-publisher-ai-deals-lawsuits-openai-google/. Ithaka S+R, ‘Generative AI Licensing Agreement Tracker’ (n.d.), https://sr.ithaka.org/our-work/generative-ai-licensing-agreement-tracker/. Roger C. Schonfeld, ‘Tracking the Licensing of Scholarly Content to LLMs’ (The Scholarly Kitchen, 15 October, 2024), https://scholarlykitchen.sspnet.org/2024/10/15/licensing-scholarly-content-llms/.