Há poucos dias, ocorreu a VII jornada de Direito da Saúde, ocasião em que reuniram-se no auditório do CNJ, em Brasília/DF, magistrados e representantes dos comitês estaduais e distrital de saúde para, novamente, discutirem o amplamente conhecido fenômeno da judicialização da saúde, o qual atinge tanto a saúde pública como a saúde suplementar.
Em seu discurso de abertura, o ministro Luís Roberto Barroso, presidente do CNJ e do STF, chamou atenção para o fato de que, não obstante todas as medidas implementadas pelo Poder Judiciário nos últimos anos, o fenômeno da judicialização continua crescente: a cada ano, aumenta o número de processos que envolvem o direito à saúde junto ao Poder Judiciário. De acordo com o ministro, os mais recentes dados indicam existir quase 870 mil processos judiciais envolvendo direito à saúde em trâmite no Brasil, dos quais cerca de 365 mil dizem respeito ao setor da saúde suplementar – ou seja, aos planos de saúde.
De tantas conclusões e abordagens que poderiam ser aqui suscitadas, convém destacar uma: o Poder Judiciário tem colossal importância no setor dos planos de saúde, talvez mais do que em qualquer outro setor.
A grande quantidade de processos judiciais faz com que o Poder Judiciário seja uma das grandes influências no mercado, capaz de promover alterações em práticas, cláusulas e contratos tanto quanto o Poder Legislativo (que cria e altera leis Federais) e as normas regulamentares da ANS - Agência Nacional de Saúde Suplementar, órgão legalmente incumbido de regulamentar, fiscalizar e monitorar esse setor.
Os impactos da judicialização no setor, aliás, já são identificados há, pelo menos, cerca de 15 anos. Cabe lembrar que foi a audiência pública 4, realizada pelo STF em 2009, a origem de muito daquilo que hoje existe em termos de monitoramento da judicialização da saúde (pública e privada), a partir do que diversas medidas passaram a ser tomadas.
Desde então, muitas foram as iniciativas articuladas pelo CNJ, como a edição da resolução 107/10 (que instituiu o Fonajus - Fórum Nacional do Judiciário para a Saúde); da recomendação 31/10 (que “recomenda aos Tribunais a adoção de medidas visando a melhor subsidiar os magistrados e demais operadores do direito, para assegurar maior eficiência na solução das demandas judiciais envolvendo a assistência à saúde”); da recomendação 36/11 (que “recomenda aos Tribunais a adoção de medidas visando a melhor subsidiar os magistrados e demais operadores do direito, com vistas a assegurar maior eficiência na solução das demandas judiciais envolvendo a assistência à saúde suplementar”); e da recomendação 43/13 (que “recomenda aos Tribunais de Justiça e aos Tribunais Regionais Federais que promovam a especialização de Varas para processar e julgar ações que tenham por objeto o direito à saúde pública e para priorizar o julgamento dos processos relativos à saúde suplementar”).
Sem contar as jornadas de Direito da Saúde e a elaboração de enunciados sobre direito à saúde; a confecção de estudos e estatísticas sobre judicialização da saúde (atualmente, existe um painel informativo acessível a todos que traz estatísticas processuais atualizadas sobre direito da saúde); e a criação do próprio Nat-Jus, uma ferramenta acessível aos magistrados de todo o país e que pode ser utilizada para subsidiar a tomada de decisão, especialmente em casos de alegação de urgência.
Desde então, o que se verifica também é um gradativo aprimoramento técnico das decisões judiciais, em muito capitaneado pelas instâncias superiores. Desde o julgamento da suspensão de tutela antecipada 175/CE, julgada em março de 2010, diversas foram as decisões emblemáticas proferidas pela nossa Corte Suprema sobre a matéria, sendo, as mais recentes, as decisões que deram origem às súmulas vinculantes 60 e 61, as quais determinam sejam respeitados os requisitos previstos no julgamento dos Temas 1.234 (RE 1.366.243) e 6 (RE 566.471). Ainda que tais julgamentos tenham tratado diretamente de questões voltadas à saúde pública, evidentemente influenciam e influenciarão julgados específicos relativos à saúde suplementar.
O aprimoramento técnico das decisões decorre também dos mais de cem enunciados sobre direito à saúde aprovados pelo CNJ nos últimos anos e que contemplam diversas situações para as quais já existe um norte interpretativo aprovado pela maior parte dos membros do Fonajus. Na mais recente edição da jornada de Direito da Saúde, aliás, novamente foram aprovadas importantes diretrizes para os magistrados, como por exemplo:
- "A bula do medicamento não constitui, por si só, evidência científica de alto nível e não supre os requisitos técnicos exigidos para o fornecimento judicial de medicamentos, especialmente os não incorporados ao SUS. Para fins de comprovação de eficácia, segurança e efetividade clínica, devem ser apresentados estudos baseados em medicina baseada em evidência, tais como ensaios clínicos randomizados, revisões sistemáticas ou meta-análises, conforme estabelecido nos Temas 6 e 1234 do STF” (proposta de novo enunciado 17);
- “Nas demandas judiciais sobre fornecimento de tratamento em favor de pessoa com Transtorno do Espectro Autista (TEA), recomenda-se ao Juízo, com vistas à efetividade da prestação e ao controle da execução, que avalie a conveniência de designar audiências de acompanhamento, com a inquirição dos responsáveis legais, para coleta de informações sobre a execução do tratamento, dificuldades de acesso, adesão, adequação terapêutica e eventual necessidade de adequação das medidas, respeitando os princípios da proteção integral, da inclusão e da participação ativa da família” (proposta de novo enunciado 25);
- “Para apreciação de pedidos judiciais que envolvam tratamento para pessoa com Transtorno do Espectro Autista (TEA), recomenda-se que o juízo exija a apresentação de relatório técnico individualizado, contendo a descrição das condições clínicas, funcionais e comportamentais específicas do(a) paciente, bem como a justificativa técnica para cada abordagem terapêutica prescrita, com indicação de sua finalidade, duração estimada e evidência cientifica de suporte, sempre que possível” (proposta de novo enunciado 26)
- “O custeio do profissional de apoio escolar necessário à inclusão de estudantes com Transtorno do Espectro Autista (TEA) ou outros transtornos do desenvolvimento na rede regular de ensino, é de responsabilidade do poder público ou da instituição de ensino privada, conforme o caso. Esse profissional integra o apoio educacional especializado e não se confunde com tratamentos de saúde, devendo ser ofertado sempre que houver recomendação pedagógica ou avaliação interdisciplinar que indique sua necessidade para viabilizar a permanência e a aprendizagem do aluno” (proposta de novo enunciado 29);
- “A existência de certificação internacional ou a realização de cursos no exterior por parte do profissional de saúde não constitui, por si só, fundamento suficiente para determinar judicialmente o custeio de tratamento fora da rede credenciada pela operadora de saúde, nem para desqualificar os profissionais ou clínicas devidamente habilitados e contratados pela rede assistencial da operadora” (proposta de novo enunciado 30);
- “Em processos judiciais que versem sobre a manutenção de contrato de plano de saúde, a concessão de tutela provisória que determine a reativação ou continuidade da cobertura assistencial implica o dever do beneficiário de efetuar o pagamento das mensalidades e eventuais coparticipações, sob pena de inadimplemento contratual” (proposta de novo enunciado 31); e
- “Na análise judicial de pedidos de cobertura de medicamentos e/ou procedimentos não incluídos no Rol de Procedimentos e Eventos em Saúde da ANS, recomenda-se que o juízo considere relatórios técnicos da Conitec, sempre que disponíveis, especialmente quanto à eficácia, segurança, custo-efetividade e recomendação de incorporação ou não da tecnologia no sistema público de saúde” (proposta de novo enunciado 32).
Fato é que o Poder Judiciário e suas decisões são um dos grandes fomentadores de alterações junto ao mercado da saúde suplementar. Logo, além de constantemente monitorar e acompanhar as novidades regulatórias específicas do setor e as alterações legislativas aplicáveis, o mercado e as operadoras de planos de saúde têm o dever de acompanhar, de modo qualificado (inclusive para discernir o que é uma decisão isolada de um entendimento já consolidado), as tendências judiciais.
Nesse contexto, e como já ocorre alguns anos, o protagonismo na matéria, do ponto de vista judicial, sem dúvidas, fica a cargo do STJ, o qual deve dar andamento, nos próximos meses, em importantes questões pendentes de definição no âmbito dos recursos repetitivos. Esse tipo de julgamento ocorre quando um grupo de recursos especiais, envolvendo a mesma controvérsia jurídica, são formalmente destacados e submetidos a um rito específico de julgamento do qual, ao final, será extraída uma tese jurídica que deverá ser observada por todos os juízes e tribunais.
Atualmente, em um cenário de tantos processos e decisões (e, consequentemente, de tantas incertezas), as definições em sede de recursos repetitivos tendem a ser um norte seguro para permitir às operadoras, consumidores e sociedade como um todo saberem o que esperar do Poder Judiciário. Questões definidas em sede de recurso repetitivo têm o condão de diretamente alterar contratos, práticas, condutas e estratégias dos agentes envolvidos.
Nos últimos anos, a 2ª seção do STJ já julgou, no referido rito dos recursos repetitivos, diversos pontos envolvendo planos de saúde, a saber:
- Tema 610 - sobre prazo prescricional para o exercício da pretensão de revisão de cláusula contratual de reajuste;
- Tema 952 – sobre validade de cláusula de reajuste por mudança de faixa etária em planos individuais/familiares;
- Tema 989 – sobre o direito de demitidos e aposentados permanecerem no plano de saúde mesmo quando a contribuição foi suportada apenas pela empresa empregadora;
- Tema 990 – sobre a (não) obrigatoriedade de cobertura para medicamento importado sem registro na Anvisa;
- Tema 1016 – sobre a validade de cláusula contratual que prevê reajuste por faixa etária em plano de saúde coletivo;
- Tema 1032 – sobre a legalidade da cláusula de coparticipação na hipótese de internação hospitalar superior a 30 dias decorrente de transtornos psiquiátricos;
- Tema 1034 – sobre os direitos dos inativos no âmbito do direito previsto no art. 31 da lei Federal 9.656/1998;
- Tema 1067 – sobre a (não) obrigatoriedade de cobertura da técnica de fertilização in vitro;
- Tema 1069 – sobre a obrigatoriedade de cobertura de cirurgia plástica em paciente pós-cirurgia bariátrica; e
- Tema 1082 – sobre a possibilidade de a operadora cancelar o plano de saúde coletivo enquanto pendente tratamento médico de beneficiário acometido de doença grave.
Essas questões, sobre as quais houve julgamento no âmbito do recurso repetitivo, são as únicas em que, no momento, do ponto de vista judicial, pode-se realmente prever o desfecho de uma demanda judicial. Para além disso, diversas e importantes questões pendem de definição.
O ano de 2025 iniciou com duas temáticas já afetadas e que pendem de julgamento via recurso repetitivo. São elas:
- Tema 1047 – afetado desde 2020, trata sobre a validade de cláusula contratual que admite a rescisão unilateral, independente de motivação idônea, do plano de saúde coletivo empresarial com menos de 30 beneficiários; e
- Tema 1295 – afetado em 2024, trata sobre a possibilidade de o plano de saúde limitar ou recusar a cobertura multidisciplinar prescrita ao paciente com transtorno global do desenvolvimento.
Ambas as questões são de extrema relevância, merecendo especial destaque a segunda, que envolve beneficiários portadores de TEA e o acesso a terapias, potencialmente o assunto mais debatido no âmbito dos planos de saúde nos últimos 2 anos, pelo menos no que tange à amplitude de coberturas assistenciais.
Além disso, há casos pendentes de julgamento que, ainda que não processados no âmbito dos recursos repetitivos, também serão extremamente relevantes para o setor. Citáveis, apenas para exemplificar, o REsp - Recurso Especial 2.029.237/SP, o REsp 1.963.064/SP e o REsp 2.003.178/SP, os quais tratam da possibilidade de se restringir a cobertura de terapias para beneficiários portadores de TEA.
Para além do protagonismo do STJ na definição de importantes questões, também não se pode deixar de mencionar do papel do próprio STF, junto ao qual também há, no momento, importantíssimos julgados de controvérsia constitucional aguardando definição, dentre os quais se destaca a ADIn - Ação Direta de Inconstitucionalidade 7.265, que questiona a constitucionalidade lei Federal 14.454, que alterou a lei dos planos de saúde (lei Federal 9.656/98), para prever a possibilidade de ser fornecida cobertura assistencial para procedimentos não previstos no rol da ANS. O julgamento tem importância monumental e poderá afetar o mercado como nenhuma outra decisão judicial jamais o fez.
Outros julgamentos de matéria constitucional relevantes para os planos de saúde possivelmente também terão andamento, como a ADC - Ação Declaratória de Constitucionalidade 90, que trata da irretroatividade do Estatuto da Pessoa Idosa aos contratos celebrados antes da sua vigência, entre outros.
Tudo isso sem falar de processos que transbordam questões relacionadas diretamente aos direitos dos beneficiários consumidores, como julgamentos sobre questões tributárias, trabalhistas e de direito administrativo, que também poderão ter continuidade junto aos tribunais superiores e que igualmente serão importantes para o mercado dos planos de saúde.
Entretanto, não se pode ignorar o fato de que não são apenas os tribunais superiores que influenciam fortemente no setor da saúde suplementar. As decisões dos tribunais estaduais, especialmente considerando a numerosa quantidade de processos atualmente em tramitação, obviamente também são e serão guias importantes para o mercado, para as operadoras e os beneficiários. Isto não pode ser desconsiderado, até mesmo em razão de ser uma pequena quantidade de processos que efetivamente alcança os tribunais superiores, sendo menor ainda aqueles casos em que realmente têm o seu mérito apreciado pelas cortes de Brasília.
Por fim, importante destacar as ações civis públicas, que são aqueles processos coletivos que, como o próprio nome sugere, vão além de questões e problemáticas individuais, abrangendo interesses de diversas pessoas em um mesmo processo. Apenas a título exemplificativo de processo coletivo relevante para a saúde suplementar, vale mencionar a ação civil pública, proposta em março deste ano, pelo IDEC - Instituto de Defesa de Consumidores, junto à Justiça Federal de São Paulo, contra a ANS, para tratar da (i)legalidade da RN/ANS 621/24, a qual criou o polêmico ambiente regulatório experimental (Sandbox).
Esses e muitos outros julgamentos importantes poderão ter seguimento ao longo de 2025, impactando o mercado, os atores, a sociedade e exigindo, de todos, adaptações, especialmente de natureza jurídica.
Os pontos ora suscitados, longe de esgotar a matéria, servem apenas para mostrar que 2025, além de possuir diversos desafios regulatórios (vide o artigo publicado no Portal Migalhas em 17/3/25 - Acesse aqui) e político-legislativos (vide texto publicado em 10/4/25 - Acesse aqui), também representa um ano com importantes desafios judiciais no setor, os quais merecem ser atentamente monitorados.