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Anulação do trânsito em julgado: Uma interseção à Ihering

O STJ reconheceu que a Defensoria Pública desistiu do recurso de apelação sem a anuência do réu. Fato que trouxe reflexões à luz de "A Luta pelo Direito", de Ihering.

14/5/2025

O processo penal é um “mar revolto” que deixa cicatrizes àqueles que o enfrentam. Não importa a travessia, nem o tamanho do barco. As ondas do Estado, da opinião pública e das vicissitudes do sistema judicial são fortes e, por isso, resta ao acusado um horizonte de experiências neste mar aberto que mistura vulnerabilidade, exposição e fragilidades; física, mental e, por vezes, processual. E o que já é complexo, fica ainda mais desafiador quando se está à deriva.

Recentemente, a 6ª turma do venerável STJ anulou o trânsito em julgado de uma condenação por homicídio qualificado, reconhecendo que a Defensoria Pública desistiu do recurso de apelação sem a anuência do réu.

A fim de contextualizar o episódio em reflexão, após ser condenado pelo tribunal do júri, o réu manifestou expressamente seu desejo de recorrer. Contudo, o advogado que inicialmente o representava não apresentou as razões da apelação, levando o Tribunal a encaminhar o caso à Defensoria Pública.

Então, sem consultar o acusado, a defesa pública desistiu do recurso, argumentando que a pena havia sido fixada no mínimo legal e que a condenação não contrariava as provas dos autos. A desistência foi homologada, resultando na certificação do trânsito em julgado e na prisão do condenado.

Tal acontecimento trouxe à tona a relevância da manifestação expressa do acusado no processo penal e suscita reflexões à luz da antológica obra "A Luta pelo Direito", de Rudolf von Ihering.

Nessa linha, a defesa impetrou habeas corpus sustentando que a desistência ocorreu contra a vontade do réu e sem poderes específicos para tanto, violando os princípios constitucionais da ampla defesa e do devido processo legal.

 "Art. 5º Todos são iguais perante a lei, sem distinção de qualquer natureza, garantindo-se aos brasileiros e aos estrangeiros residentes no País a inviolabilidade do direito à vida, à liberdade, à igualdade, à segurança e à propriedade, nos termos seguintes:

LIV - ninguém será privado da liberdade ou de seus bens sem o devido processo legal;

LV - aos litigantes, em processo judicial ou administrativo, e aos acusados em geral são assegurados o contraditório e ampla defesa, com os meios e recursos a ela inerentes;"

Assim, ao se debruçar sobre a controvérsia, a colenda 6ª turma do STJ reconheceu a ilegalidade do ato, destacando que a desistência do recurso, sem a anuência do réu, malfere os princípios do duplo grau de jurisdição e da ampla defesa. Logo, o habeas corpus foi concedido para desconstituir o trânsito em julgado da condenação e, de conseguinte, determinar a reabertura do prazo recursal e restabelecer a liberdade do réu.

Ora, o devido processo legal não é um mero formalismo! Tal princípio é arquitrave do Estado Democrático de Direito, bem como é a âncora a impedir que o indivíduo seja levado involuntariamente pelas correntes do arbítrio, da displicência, da indolência e da precipitação. Notadamente por isso, não raras vezes a defesa assume um papel heroico, desbravando as águas turbulentas da persecução penal para garantir que a justiça não seja apenas uma promessa, mas uma realidade a ser efetivada.

Como bem aportaram os ensinamentos do jurista catarinense, professor doutor, Jacinto Nelson de Miranda Coutinho em uma de suas reflexões sobre o código de processo penal brasileiro:

"O processo penal, do seu lado, está vinculado à questão da liberdade, a qual precisa ser bem entendida, pelo lugar que deve ter. No fundo, da mesma maneira que ao "servo se restitui ou se deve tentar restituir a liberdade" [Citando Carnelutti, F.], ao cidadão é preciso garantir a liberdade, salvo exceções expressamente previstas, até que seja definitivamente (coisa julgada) condenado."

E neste ponto, um leve hiato: o foco não é remar críticas em direção à Defensoria ou ao defensor, mas, sim, fazer emergir dúvidas e, também, certas certezas na linha do que dizia Joaquim Nabuco, jurista e um dos fundadores da Academia Brasileira de Letras:

"A luta pela justiça é o sacrifício de gerações inteiras pelo direito às vezes de um só, para resgatar a injustiça feita a um oprimido, talvez um estranho."

Desta feita, ao adentrar sob as perspectivas de Rudolf von Ihering em sua tradicional – e obrigatória – obra, "A Luta pelo Direito”, cuja primeira publicação se deu em 1872, tem-se que todo operador jurídico deve enfatizar que o Direito não se amolda a uma mera teoria. O Direito é mais que isso!

Por isso, Ihering afirma, o Direito não é uma simples ideia, é uma força viva que exige luta e resistência, pois, como consabido, todos os direitos da humanidade - seja ele coletivo ou do indivíduo - foram conquistados pela luta, inclusive seus princípios mais importantes.

Aliás, como bem vaticinou o jurista alemão, “o fim do direito é a paz, o meio de que se serve para consegui-lo é a luta”, mormente porque, “enquanto o direito estiver sujeito às ameaças da injustiça, ele não poderá prescindir da luta”. Ademais, “o direito é um trabalho sem tréguas, não só do Poder Público, mas de toda a população”, de sorte que “qualquer pessoa que se veja na contingência de ter de sustentar seu direito participa dessa tarefa de âmbito nacional e contribui para a realização da ideia do direito”.

Ora, no processo analisado a manifestação expressa do réu em recorrer representa sua luta individual pelo Direito, alinhando-se ao pensamento de Ihering de que cada indivíduo deve defender os seus para a justa e perfeita manutenção da ordem jurídica.

Com isso, a desistência do recurso pela Defensoria Pública, sem a anuência do réu, configura indubitável violação a direito fundamental do indivíduo, na medida que impediu o exercício pleno da defesa e da busca pela justiça. Novamente: são as tais “dúvidas e certezas”.

Certezas sobre consciência democrática, apontadas pelo mestre dos mestres, Jacinto Nelson de Miranda Coutinho:

"A consciência democrática e o respeito à lei seguem sendo os escudos que se tem para a proteção de todos e, sobretudo, dos mais fracos."

Apesar da perplexidade do caso concreto, a decisão do STJ reforça a importância de mantermo-nos vigilantes aos princípios constitucionais e ao absoluto desempenho de defesa à luz de "A Luta pelo Direito", de Rudolf von Ihering.

Definitivamente, evidencia, também – no presente, pois sempre deverá estar presente –, a defesa ativa dos direitos individuais e sua essencialidade para a manutenção Direito na sociedade, pois nas linhas do Nobel de Literatura, José Saramago, “Se tens um coração de ferro, bom proveito. O meu, fizeram-no de carne, e sangra todo dia”.

_____________

1 BRASIL. CONSTITUIÇÃO DA REPÚBLICA FEDERATIVA DO BRASIL de 1988. Brasília, DF: Senado Federal, 1988. Disponível em: https://www.planalto.gov.br/ccivil_03/constituicao/constituicao.htm. Acesso em: 17 dez. 2024.

2 CARNELUTTI, Francesco. Cenerentola. In Rivista di direito processualea, 1946, I, p. 1. Depois, foi ele publicado em Questioni sul processo penale, Bologna: Zuffi, 1950, p.6.

3 COUTINHO, Jacinto Nelson de Miranda. “Processo Penal: autonomia e crise da legalidade”. Revista Consultor Jurídico. 09/07/2021.

4 IHERING, von Rudolf. A luta pelo direito. Trad. Pietro Nassetti. São Paulo: Martin Claret, 2003.

5 NABUCO, Joaquim. Minha formação. Obras completas de Joaquim Nabuco. São Paulo: Instituto Progresso Editorial S.A. 1949.

6 SARAMAGO, José. Citação da personagem Clara, na peça teatral “A segunda vida de Francisco de Assis (1987).

Thiago de Miranda Coutinho
Especialista em Inteligência Criminal. Graduado em Jornalismo e Direito. Escritor, articulista nos principais veículos jurídicos do país e integrante do Corpo Docente da Acadepol (PCSC).

Jamil Cherem Garcia
Bacharel em Direito pela Faculdade Estácio de Sá de Santa Catarina. Especialista em Ciência Política pela Universidade Candido Mendes - UCAM.

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