Introdução
A doutrina jurídica, historicamente incumbida da tarefa de sistematizar e desenvolver o conhecimento jurídico a partir de fundamentos teóricos e filosóficos, tem sido progressivamente relegada a um papel secundário no cenário jurídico brasileiro contemporâneo.
Em seu lugar, observa-se a ascensão de uma hegemonia jurisprudencial, em que decisões dos tribunais superiores passam a definir, em larga medida, o conteúdo e os limites do direito. Esse fenômeno repercute diretamente na formação dos operadores jurídicos, sobretudo daqueles que se preparam para concursos públicos, cujas exigências reforçam a ideia de que o Direito é aquilo que os tribunais dizem que é.
O presente artigo propõe uma reflexão crítica sobre as causas e efeitos desse deslocamento de autoridade epistêmica da doutrina para a jurisprudência, evidenciando como a abdicação da função crítica por parte da doutrina contribui para a consolidação do estado de coisas atual.
Diante desse cenário, o objetivo geral do presente trabalho é analisar a submissão da doutrina jurídica brasileira à jurisprudência dos tribunais superiores e os impactos dessa hegemonia na formação dos operadores do Direito.
Como objetivos específicos, pretende-se: identificar como o modelo de concursos públicos favorece a assimilação acrítica de entendimentos jurisprudenciais, e explicitar a importância do constrangimento epistemológico como ferramenta de resistência teórica e reconstrução do saber jurídico.
Apresenta-se como problema de pesquisa: em que medida a hegemonia da jurisprudência sobre a doutrina compromete a integridade do sistema jurídico brasileiro e a formação crítica dos operadores do Direito?
Para tanto, adota-se como metodologia a pesquisa bibliográfica, bem como a análise de exemplos doutrinários e jurisprudenciais representativos, a fim de sustentar a tese da necessidade de retomada do papel crítico da doutrina frente ao decisionismo jurisprudencial.
A submissão da doutrina à jurisprudência: Da crítica à reprodução
Os juristas e, especialmente, a doutrina brasileira possuem um papel importante a desempenhar na atualidade, vez que, pelo cotejo entre os pronunciamentos dos tribunais superiores, das provas de concursos públicos na área jurídica, e, por fim, de parte da doutrina brasileira, constata-se que, na prática contemporânea, o direito tem sido compreendido e operacionalizado como aquilo que os tribunais superiores afirmam ser.
Todos os operadores do Direito possuem um papel a desempenhar, mesmo porque, conforme Motta (2012, p. 35), “existem outros agentes cujas decisões afetam os direitos de seus concidadãos” e, por certo, os advogados, os promotores de Justiça e a academia devem exercer sua função com responsabilidade, não devendo adotar postura subalterna no que diz respeito à compreensão do direito.
Ocorre que, não raro, ao invés de os juristas efetuarem um verdadeiro constrangimento epistemológico (Streck), percebe-se que setores da doutrina, além de não exercerem controle sobre as decisões judiciais, assumem uma postura subserviente, já que, em muitos livros, constata-se que as explicações não mais são baseadas na dogmática, em uma epistemologia nascida a partir de debates teóricos e filosóficos, mas sim no próprio entendimento dos tribunais superiores.
O que se pretende explicitar é que o sujeito (outrora candidato a cargo público, eventualmente juiz, promotor de Justiça, defensor público, advogado público etc.) acaba por concordar ou entender que o direito é o que os tribunais dizem que é, porque o sistema em que se encontra inserido o obriga a tanto.
A doutrina (utilizada pelo candidato) está, em grande parte, impregnada de explicações e argumentos não mais baseados na dogmática, mas no próprio entendimento dos tribunais superiores, vendo-se obrigada a tanto porque as provas de concurso público exigem do candidato o conhecimento das ementas e das razões de julgar.
Em outras palavras, atualmente, o sujeito, quando se torna juiz, promotor de Justiça, defensor público etc., é um “ser-no-mundo”, expressão utilizada por Martin Heidegger (1927) na obra “Ser e Tempo”, e que se refere a um fenômeno de unidade, como um estar “dentro de”, designando o modo de ser de um ente que está em outro, como a água está no copo.
O candidato a referidos cargos públicos já nasce em um mundo em que o direito é o que os tribunais dizem que é, entendendo-se esse "nascimento" como o momento em que começa a estudar a doutrina que explica o Direito a partir do entendimento dos tribunais, sendo submetido a certames em que grande parte das questões demanda o conhecimento da opinião das cortes.
O que se pretende afirmar é o seguinte: parcela da doutrina jurídica, em vez de cumprir sua função epistêmica originária, de produzir (novo) conhecimento crítico e sistemático, em uma espécie de circulo “virtuoso” (Gadamer), tem, em muitos casos, contribuído para a distorção do próprio direito.
Explica-se: institutos jurídicos historicamente consolidados pela dogmática — ou seja, construídos com base em fundamentos teóricos sólidos — são frequentemente reformulados pela jurisprudência sem a devida justificativa conceitual.
O princípio da insignificância, para citar somente este exemplo, foi reinterpretado pelo STF com base em critérios casuísticos e pragmáticos, o que resulta em uma significativa mutação de seu conteúdo normativo originário.
Isto porque o reconhecimento do princípio da insignificância, na sua construção dogmática, implica na sua atipicidade, por ausência de tipicidade material, e, consequentemente, não haveria crime, não cabendo a aplicação de qualquer espécie de pena.
Entrementes, os Tribunais Superiores cunharam, ao longo de suas construções jurisprudenciais, requisitos de natureza objetiva, elementos negativos, bem como hipóteses de aplicação, como a imposição de pena restritiva de direitos quando o réu é reincidente, deixando, portanto, de reconhecer a atipicidade da conduta.
As instituições organizadoras de concursos públicos, por sua vez, incorporam acriticamente essas novas formulações jurisprudenciais como se fossem expressão incontestável do direito positivo.
A doutrina, pressionada por essa realidade, tende a abdicar de sua função crítica, limitando-se a reproduzir os entendimentos dos tribunais superiores. Como observa Streck (2014), a dogmática jurídica vem sendo substituída por uma jurisprudência de precedentes desprovida de densidade teórica, o que compromete a integridade e a coerência do sistema jurídico.
Em vez de um circulo “virtuoso” de produção de novo conhecimento, essa dinâmica estabelece um ciclo “vicioso” de retroalimentação do saber jurídico, em que os novos operadores do direito são formados com base em uma concepção do direito que se reduz ao que os tribunais superiores afirmam que ele seja.
Assim, perde-se o vínculo com o debate teórico-filosófico e com os fundamentos históricos dos institutos jurídicos, substituídos por reconceituações jurisprudenciais que, não raro, carecem de lastro dogmático.
Como resultado, o Direito deixa de ser um campo normativo racionalmente estruturado para se tornar, nas palavras de Reale (2002, p. 60), um “produto de interpretações contingentes, sujeitas à volatilidade das composições jurisprudenciais”.
O operador jurídico contemporâneo, em vez de compreender o que é — ou foi — o princípio da insignificância, conhece apenas sua versão reconceituada pelo STF.
O constrangimento epistemológico como imperativo da dogmática
Por tudo isso, e concluindo-se que a tese é verdadeira (verificável ou falseável, como queiram), é necessário que se proceda a um retorno, devendo ser exercido um verdadeiro constrangimento epistemológico (Streck), quando os pronunciamentos dos tribunais estejam em contradição com a lei (e quando não se tenha realizado um controle de sua (in)constitucionalidade) ou com conceitos jurídicos consolidados, sob pena de se dar voz a um entendimento voluntarista, que promove uma mudança arbitrária do sentido das coisas.
Contudo, o que se verifica é a proliferação de manuais que explicam o direito a partir de verbetes jurisprudenciais, destinados apenas a atender às necessidades dos candidatos a concursos públicos. O resultado disso é, conforme afirmado por Streck, a formação de uma cultura jurídica padrão, que passa a entender que o direito é o que os tribunais dizem que é.
Na 25ª edição do “Manual de Direito Administrativo”, de José dos Santos Carvalho Filho (2012), constata-se um exemplo de constrangimento epistemológico, quando o doutrinador aponta o equívoco do entendimento do STF, que considerou que o ato administrativo de “licença” não é vinculado, mas mera faculdade de agir, sendo suscetível de revogação.
Outro exemplo de obra doutrinária em que a doutrina cumpre seu papel pode ser extraído do livro “Direito Civil: Curso Completo”, de César Fiuza (2014), que, a título de exemplo, conceitua o termo jurídico “obrigação” a partir da análise de estudos realizados por diversos pesquisadores, tais como Serpa Lopes, Pontes de Miranda, Lacerda de Almeida, Orlando Gomes e Caio Mário da Silva Pereira, valendo-se, inclusive do direito comparado, como Pothier (França), Aubry et Rau, Démogue (França), Enneccerus, Kipp e Wolff (Alemanha), da forma, portanto, como deveria ser, já que dito conceito, como demonstrado, é fruto de um longo e aprofundado debate teórico e filosófico.
Contudo, nem sempre é assim. Existem aqueles que apenas reproduzem o entendimento dos tribunais, sem qualquer tipo de apontamento acerca do acerto ou desacerto do pronunciamento judicial, replicando quase que integralmente a compreensão das cortes, razão pela qual se conclui que esse tipo de doutrina passa a ser meramente caudatária do entendimento dos tribunais.
Depreende-se, assim, uma certa inversão de papéis, já que, ao invés de a doutrina corrigir e constranger, ela é quem sofre correção, amoldando-se aos entendimentos dos tribunais. É seguro afirmar que a ausência de um constrangimento epistemológico (Streck) por parte da doutrina constitui uma das causas do ativismo judicial brasileiro, o que contribui para o estado de coisas atual, em que o candidato a cargo público, e posterior operador do direito, entende que o direito é o que os tribunais dizem que é.
Considerações finais
Em síntese, a hegemonia jurisprudencial sobre a dogmática jurídica contribui para a conformação de uma cultura jurídica empobrecida, desprovida de densidade teórica, na qual a doutrina abdica de seu papel epistemológico-crítico e passa a funcionar como um eco dos tribunais.
Tal dinâmica compromete não apenas a formação de operadores do Direito, mas a própria integridade e coerência do sistema jurídico. Reverter esse quadro exige o resgate da função crítica da doutrina e a promoção de um verdadeiro constrangimento epistemológico às decisões judiciais, especialmente quando estas se distanciam dos fundamentos normativos e teóricos consolidados.
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1 CARVALHO FILHO, José dos Santos. Manual de Direito Administrativo. 26. ed. São Paulo: Atlas, 2012.
2 FIUZA, César. Direito Civil: curso completo. 17. ed. Belo Horizonte: Del Rey, 2014.
3 GADAMER, Hans-Georg. Verdade e método. 2. ed. Petrópolis: Vozes, 2006.
4 HEIDEGGER, Martin. Ser e Tempo. 7º ed. Petrópolis: Vozes. 2012.
5 MOTTA, Francisco José Borges. Levando o Direito a Sério: uma crítica hermenêutica ao protagonismo judicial. 2ª Ed. Porto Alegre: Ed. Livraria do Advogado. 2012.
6 REALE, Miguel. Lições preliminares de direito. 27. ed. São Paulo: Saraiva, 2002.
7 STRECK, Lenio Luiz. Hermenêutica jurídica e(m) crise: uma exploração hermenêutica da construção do Direito. 11º ed. rev.- atual. e ampl. Porto Alegre: Livraria do Advogado, 2014.