Migalhas de Peso

A normalização do excepcional: IDPJ

Reflexão crítica sobre o uso indevido da desconsideração da personalidade jurídica e os riscos à segurança jurídica e às garantias constitucionais.

22/5/2025

A desconsideração da personalidade jurídica surgiu como válvula de escape excepcional à rigidez da autonomia patrimonial das pessoas jurídicas. Um recurso extraordinário, previsto em lei para reprimir fraudes e abusos concretos, passou a ser tratado como expediente ordinário para satisfação de dívidas, mesmo na ausência dos requisitos legais. O que deveria ser exceção se transformou, silenciosamente, em padrão de atuação.

Na prática forense, o incidente passou a ser manejado com displicência. Não se exige mais o mínimo de prova robusta quanto à ocorrência de desvio de finalidade ou confusão patrimonial — bastando, muitas vezes, a alegação de inadimplência e a inexistência de bens penhoráveis em nome da pessoa jurídica. O perigo é claro: Contorna-se o instituto da execução, fragiliza-se a segurança jurídica e destrói-se, na prática, a blindagem patrimonial lícita e legítima construída por décadas de jurisprudência.

Não se trata aqui de proteger quem age com dolo, mas de impedir que o Judiciário, por pragmatismo ou pressa, rasgue os contornos legais do art. 50 do Código Civil e do art. 133 do CPC. Se o devedor se oculta atrás da empresa, o Judiciário deve agir. Mas se não há fraude, e mesmo assim o patrimônio pessoal do sócio é alcançado, está-se diante de um retrocesso institucional, incompatível com o Estado de Direito. É papel da advocacia e da doutrina resistir a essa banalização. É papel do Judiciário reconhecer que a dificuldade de satisfação do crédito não justifica a supressão de garantias fundamentais. Não se combate inadimplência com violação de direitos.

A separação entre o patrimônio da sociedade e de seus sócios é uma conquista do direito moderno. Tal distinção não é mero formalismo, mas instrumento de fomento à atividade econômica, à liberdade de iniciativa e ao investimento produtivo. Quando essa linha é apagada sem a devida demonstração de fraude, abre-se espaço para a responsabilização objetiva de pessoas físicas por atos praticados no exercício regular da empresa, mesmo sem má-fé, desvio de finalidade ou confusão patrimonial. Trata-se de um retrocesso jurídico travestido de pragmatismo.

Confundir deliberadamente a empresa com o sócio implica violar o núcleo essencial do direito à propriedade privada, já que se permite o alcance de bens pessoais sem sentença condenatória, sem contraditório substancial e muitas vezes sem sequer o manejo do incidente processual adequado. A função social da empresa não pode ser utilizada como justificativa para inverter ônus probatórios ou ignorar regras do jogo previamente pactuadas pelo ordenamento.

A segurança jurídica — tão evocada nos manuais — não se realiza apenas na celeridade da resposta judicial. Ela exige previsibilidade, coerência, respeito aos procedimentos e, sobretudo, proteção contra abusos do próprio Estado. A tendência de aplicar a desconsideração da personalidade jurídica por analogia, por inferência ou por mera conveniência fática desafia diretamente esse compromisso constitucional. E, ainda mais grave, estimula um ambiente de medo entre empreendedores, que veem sua exposição patrimonial depender não de seus atos, mas da conveniência da parte adversa e da interpretação, por vezes, voluntarista do juízo.

Portanto, é dever da comunidade jurídica resistir a essa diluição conceitual. A personalidade jurídica é instrumento, não obstáculo. É proteção legal, não blindagem de má-fé. Fragilizá-la é optar por um modelo de instabilidade, onde a execução se sobrepõe ao direito. Que o Judiciário combata as fraudes, mas que o faça dentro dos limites da legalidade e com o devido respeito às garantias fundamentais que sustentam o Estado Democrático de Direito.

Daniela Poli Vlavianos
Advogada civilista com 20 anos de experiência. Pós-graduada em Execução e Defesa do Executado. Atuação em execução cível e proteção patrimonial.

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