Migalhas de Peso

O anteprojeto do Código Civil: Comentários sobre o art. 478 proposto

A elevada vagueza semântica e de transferência do poder de legislar ao juiz estão presentes no 478 do referido anteprojeto do código civil.

27/5/2025

I. Considerações preliminares:

O anteprojeto do Código Civil (PL 4/25) vem sendo reiteradamente criticado pela comunidade jurídica em diversos portais de notícias jurídicos e até mesmo em veículos de comunicação tradicionais, como jornais de grande circulação.

Dentre as diversas críticas, três delas podem ser destacadas: a velocidade na qual o anteprojeto foi elaborado e proposto, sem a participação da sociedade em geral; a utilização de linguagem indeterminada; e a transferência do poder de legislar ao juiz1. Os signatários, em outra oportunidade, já discorreram nesse mesmo sentido, justamente alertando sobre os perigos semânticos trazidos pela redação dos arts. 421, §2º e 422-A2.

Em artigos publicados por outros autores, como pelos professores Haroldo Malheiros Duclerc Verçosa3, Luiz Antonio Alves de Souza4, Guilherme Carneiro Monteiro Nitschke5, Leonardo Corrêa6 e Judith Martins-Costa (em coautoria com os professores Erasmo Valladão Azevedo e Novaes França e Cristiano Zanetti)7, por abordagens distintas e características de cada autos, são retratadas críticas e argumentos semelhantes a partir de diferentes perspectivas. Acima de tudo, em nossa opinião, falta uma análise de impacto legal, que justifique a mudança legislativa proposta por um grupo de juristas, mas desgarrada de qualquer iniciativa empresarial ou da sociedade civil. Pois bem.

Em nosso entender, as mesmas características de ausência de qualquer análise de impacto econômico, de utilização de elevada vagueza semântica e de transferência do poder de legislar ao juiz estão presentes em outro artigo: o 478 do referido anteprojeto do código civil (PL 4/25)8.

O referido artigo versa sobre as situações supervenientes que atinjam contratos de longa duração, denominados de execução continuada ou diferida e que geram, consequentemente, onerosidade excessiva para um dos contratantes e que excedam os riscos normais da contratação. Neste caso, o caput do dispositivo confere à parte prejudicada o direito de pleitear a revisão ou a resolução do contrato.

O artigo possui 05 (cinco) parágrafos distintos. No primeiro, o anteprojeto delimita a forma de identificação dos riscos normais contraídos, quais sejam, aqueles originariamente pactuados em contrato. No quarto e quinto parágrafo, estão previstas situações em que o referido dispositivo de lei não seria aplicado. O presente artigo, portanto, tratará mais precisamente sobre os parágrafos segundo e terceiro.

II. Art. 478, §2º do anteprojeto:

O referido parágrafo segundo dispõe o seguinte: “Há imprevisibilidade do evento quando a alteração superveniente das circunstâncias ou dos seus efeitos não poderiam ser razoavelmente previstos por pessoa de diligência normal ou com a mesma qualificação da parte prejudicada pela onerosidade excessiva e diante das circunstâncias presentes no momento da contratação”. Ou seja, seria considerado como imprevisível todo aquele evento que alterasse as circunstâncias do contrato ou quando os seus efeitos práticos não pudessem ser razoavelmente previstos por “pessoa de diligência normal” ou com a “mesma qualificação” da parte prejudicada pela dita onerosidade excessiva.

Dito isso, alguns questionamentos sobressaem aos olhos: quem seria típica “pessoa de diligência normal”? Seria expressão equivalente ao “homem médio” tratado na doutrina e jurisprudência consumerista? Mas como faríamos no campo empresarial? Da forma como redigido o parágrafo segundo, haveria a imprevisibilidade do evento quando os efeitos não pudessem ser previstos pela denominada “pessoa de diligência normal” ou por pessoa com a “mesma qualificação” da parte prejudicada. Convenhamos, é muita imprecisão linguística e muita margem interpretativa aos magistrados, já assoberbados de processos.

III. Art. 478, §3º do anteprojeto:

IV. Considerações finais:

Tal como proposto no texto em análise, o Direito estaria retroagindo, tanto na seara do direito material quanto processual. Atentando apenas para o referido art. 478, preocupa-nos a impossibilidade de atender o dever de uniformização jurisprudencial, preceituado pelo art. 926 do CPC. Dito de outro modo, além de problemas na seara material, estar-se-á interferindo (ou melhor, impossibilitando) o cumprimento de dispositivo processual, gerando problemática grave no sistema jurídico. Como está redigido o art. 478, ele não pode ser aprovado. A economia não resistirá, nem o contribuinte.

_______

1 Ver artigo publicado no Estadão no dia 28/04/2025: https://www.estadao.com.br/opiniao/a-reforma-do-codigo-civil-e desastrosa/?srsltid=AfmBOorAzZ7Jp1cKpKhnnHYe8nTno64_EAP4HeMI2pAGwEVkpPbI43gU

2 https://www.migalhas.com.br/depeso/424276/o-anteprojeto-do-codigo-civil-bem-vindo-ao-passado

3 https://www.migalhas.com.br/depeso/424617/o-projeto-de-reforma-do-codigo-civil-volta-ao-ataque

4 https://www.conjur.com.br/2025-mai-11/alteracoes-no-codigo-civil/

5 https://www.conjur.com.br/2025-mai-09/uma-reforma-apressada-na-disciplina-da-interpretacao-contratual/

6 https://www.conjur.com.br/2025-mai-01/critica-ao-artigo-atualizacao-do-codigo-civil-e-propostas-de-seguranca-juridica-de-rosa-maria-nery/

7 https://valor.globo.com/opiniao/coluna/o-novo-codigo-civil-contra-a-economia.ghtml

8 Art. 478. Nos contratos de execução continuada ou diferida, havendo alteração superveniente das circunstâncias objetivas que serviram de fundamento para a celebração do contrato, em decorrência de eventos imprevisíveis que gerem onerosidade excessiva para um dos contratantes e que excedam os riscos normais da contratação, o devedor poderá pedir a sua revisão ou a sua resolução. § 1º Para a identificação dos riscos normais da contratação, deve-se considerar a sua alocação, originalmente pactuada. § 2° Há imprevisibilidade do evento quando a alteração superveniente das circunstâncias ou dos seus efeitos não poderiam ser razoavelmente previstos por pessoa de diligência normal ou com a mesma qualificação da parte prejudicada pela onerosidade excessiva e diante das circunstâncias presentes no momento da contratação. § 3° A revisão se limitará ao necessário para eliminar ou mitigar a onerosidade excessiva, observadas a boa-fé, a alocação de riscos originalmente pactuada pelas partes e a ausência de sacrifício excessivo às partes. § 4° Não se aplica o disposto neste artigo para a mera impossibilidade econômica de adimplemento decorrente de fato pertinente à esfera pessoal ou subjetiva de um dos contratantes. § 5° O disposto nesta seção não se aplica aos contratos de consumo, cuja revisão e resolução se sujeitam ao Código de Defesa do Consumidor.

Demétrio Beck da Silva Giannakos
Advogado. Mestre e Doutor em Direito pela UNISINOS. Pós-Doutorando na Faculdade de Direito da Universidade de Lisboa. Sócio do Escritório Giannakos Advogados Associados.

Luciano Benetti Timm
Sócio de CMT Advogados. Mestre e Doutor em Direito. Professor Universitário.

Veja mais no portal
cadastre-se, comente, saiba mais

Artigos Mais Lidos

Autonomia patrimonial e seus limites: A desconsideração da personalidade jurídica nas holdings familiares

2/12/2025

Pirataria de sementes e o desafio da proteção tecnológica

2/12/2025

Você acha que é gordura? Pode ser lipedema - e não é estético

2/12/2025

Tem alguém assistindo? O que o relatório anual da Netflix mostra sobre comportamento da audiência para a comunicação jurídica

2/12/2025

Frankenstein - o que a ficção revela sobre a Bioética

2/12/2025