Migalhas de Peso

Breves notas sobre a decisão CAS 2017/A/5187: O princípio da Kompetenz-Kompetenz no âmbito desportivo

Análise do caso CAS 2017/A/5187 destaca o princípio Kompetenz-Kompetenz na arbitragem esportiva e os limites da jurisdição da CAS.

29/5/2025

A arbitragem está consolidada como mecanismo central de resolução de disputas no esporte internacional, sendo a CAS - Corte Arbitral do Esporte na Suíça o principal foro nesse âmbito. E uma dúvida bastante comum com quem se depara com o contexto esportivo internacional pela primeira vez é justamente o alcance da jurisdição de um painel arbitral instituído perante a CAS.

Como se sabe, um dos pilares da arbitragem é o princípio da Kompetenz-Kompetenz, pelo qual o próprio tribunal arbitral é competente para decidir sobre a extensão de sua jurisdição. Este artigo volta-se a examinar esse princípio aplicado no contexto da arbitragem esportiva internacional, tomando como estudo de caso a decisão proferida pelo painel arbitral no processo CAS 2017/A/5187.

Em breve síntese, a controvérsia envolveu o jogador brasileiro Cleiton Xavier, a FIFA, o FC Metalist (Ucrânia) e a FFU - Federação Ucraniana de Futebol. A escolha desse caso se dá justamente por suscitar questões fundamentais sobre a jurisdição arbitral, a definição de decisão impugnável e os limites do controle disciplinar de federações internacionais.

O jogador Cleiton Xavier ajuizou demanda em face do FC Metalist junto à DRC - Câmara de Resolução de Disputas da FIFA. O jogador obteve decisão favorável com condenação do clube ao pagamento de salários em atraso e compensação por ruptura contratual antecipada.

O clube deixou de cumprir com suas obrigações financeiras e, por decorrência, com o decisum. Por conseguinte, o atleta buscou em apelação perante a CAS o adimplemento por parte do clube. Afinal, o clube descumpriu reiteradamente a parte dispositiva da decisão do DRC da FIFA.

O atleta alegou inércia da FIFA em adotar medidas disciplinares contra o clube (no ambiente esportivo, uma sanção associativa) para estabelecer a jurisdição da CAS. Em outras palavras, o atleta alegou denegação de justiça ao buscar o cumprimento da decisão original – quase como requerer que a decisão do DRC da FIFA fosse revestida de força executória transnacionalmente.

Essa alegação do jogador parte da premissa de que a FIFA é responsável e tem jurisdição para garantir o cumprimento de sua própria decisão. Esse é o caminho “normal” em âmbito associativo esportivo, tanto em uma disputa doméstica como em uma disputa de dimensão internacional.

Contudo, a FIFA declarou não possuir mais jurisdição para processar disciplinarmente o FC Metalist em correspondência datada de 17/5/17. Afinal, o clube não era filiado à FFU e não fazia mais parte do ambiente institucional FIFA por decorrência disso. Essa carta foi o ponto focal da apelação à CAS e que suscitou o debate sobre sua natureza jurídica: seria ela uma decisão impugnável por recurso? Haveria denegação de justiça?

No caso, Cleiton Xavier sustentava que a correspondência da FIFA constituía uma decisão final. Ou seja, passível de impugnação. Portanto, o painel instituído em âmbito CAS tinha como missão decidir se a carta tinha natureza decisória e se preenchia os requisitos para admissão do recurso.

Essa tarefa é típica do exercício da competência derivada do princípio Kompetenz-Kompetenz. Assim, está consagrado no ordenamento jurídico brasileiro e no ordenamento jurídico suíço – que aqui interessa por ser a norma que rege os procedimentos da CAS. Consta expressamente no art. 186, §1º, da LDIP - Lei Federal Suíça de Direito Internacional Privado: “O tribunal arbitral decide sobre sua própria jurisdição.” (Art. 186(1), LDIP, Suíça).

Para tanto, o painel instituído perante a Corte Arbitral do Esporte analisou se a carta da FIFA constituía uma “decisão” final e passível de recurso nos termos do art. 58 dos Estatutos da FIFA. Essa análise é a manifestação da Kompetenz-Kompetenz dado que cabia exclusivamente ao tribunal arbitral qualificar juridicamente a correspondência recebida pelo jogador como ato decisório ou mera comunicação administrativa.

Por consequência, a resposta a essa qualificação definiria a própria jurisdição arbitral. Uma particularidade bastante própria da arbitragem esportiva, em especial da arbitragem esportiva recursal – adequado, ou não, é o nome adotado pela prática do mercado arbitral esportivo a mais de três décadas.

Em sua fundamentação, o painel instituído perante a CAS afirmou que, “[p]or força da Kompetenz-Kompetenz, um tribunal arbitral internacional com sede na Suíça é competente para decidir sobre sua competência para julgar uma controvérsia.” Assim, concluiu que a carta da FIFA não apresentava animus decidendi e não modificava situações jurídicas. Portanto, não constituía uma decisão impugnável.

Dessa forma, o painel instituído em âmbito CAS declarou-se incompetente para julgar o mérito da apelação. Uma decisão que aparenta certo paradoxo dado que depende da jurisdição que o próprio painel tem para decidir sobre a sua jurisdição. Novamente, um aparente paradoxo para quem não está acostumado com a arbitragem como mecanismo para resolver disputas.

Cumpre ressaltar que o painel analisou a jurisprudência da Corte Arbitral do Esporte sobre o conceito de "decisão" no Direito Esportivo, focando sobretudo na análise de seus próprios precedentes. Com efeito, concluiu que uma comunicação só é considerada como decisão impugnável se: (i) contiver um elemento de julgamento ou deliberação com impacto sobre a situação jurídica de uma parte; (ii) tiver como intenção a produção de efeitos jurídicos concretos; e (iii) expressar animus decidendi — ou seja, intenção manifesta de decidir.

O painel instituído perante a CAS entendeu que a carta da FIFA não preencheu tais requisitos. Ela apenas informava que o FC Metalist não era mais afiliado à FFU, com base em dados fornecidos pela própria FFU. O fato de o clube não estar mais sob o alcance do sistema disciplinar da entidade é uma mera decorrência lógica.

Em outras palavras, o painel instituído em âmbito CAS entendeu que não houve criação, modificação ou extinção de situação jurídica pela correspondência da FIFA. Logo, não se tratava de uma “decisão” por ser uma mera manifestação informativa, sem força vinculante.

Embora sem efeitos práticos neste caso, outro aspecto relevante é a análise da suposta denegação de justiça pelos órgãos judicantes da FIFA. O painel instituído perante a Corte Arbitral do Esporte reconheceu que a ausência injustificada de decisão ou a morosidade excessiva podem configurar denegação de justiça.

Contudo, o painel observou que a FIFA forneceu uma resposta e que o contexto da perda de afiliação do clube limitava seu poder de atuação. O painel entendeu que a simples demora na resposta não é suficiente para caracterizar denegação de justiça, sem prova de dano adicional ou perda de oportunidade.

Percebe-se que a decisão CAS 2017/A/5187 reafirma a centralidade do princípio da Kompetenz-Kompetenz no ordenamento arbitral internacional, inclusive no âmbito desportivo. Dessa forma, delimita os requisitos para se admitir uma comunicação como “decisão”, limites à aplicação do conceito de denegação de justiça e molda particularidades do contexto esportivo em prática arbitral de nicho.

Gustavo Favero Vaughn
Sócio de Cesar Asfor Rocha Advogados, em São Paulo e Brasília, Mestre em Direito Processual pela Faculdade de Direito da Universidade de São Paulo, com LL.M. pela Columbia Law School. Auditor da 4ª Comissão Disciplinar do Superior Tribunal de Justiça Desportiva (STJD) do Futebol. Professor do IDP Online. Foi International Lawyer no escritório Cleary Gottlieb Steen & Hamilton LLP, em Nova Iorque.

Roberto de Palma Barracco
Responsável pela Legal Research Hub da FIFA, árbitro na Corte Arbitral do Esporte (TAS/CAS) e no CBMA, árbitro e mediador na Corte Arbitral da Arte (CAfA). Doutor, mestre e graduado em Direito pela Universidade de São Paulo, LL.M. em Direito pela Universidade do Oregon. Professor no Brasil e fora.

Veja mais no portal
cadastre-se, comente, saiba mais

Artigos Mais Lidos

Autonomia patrimonial e seus limites: A desconsideração da personalidade jurídica nas holdings familiares

2/12/2025

Pirataria de sementes e o desafio da proteção tecnológica

2/12/2025

Você acha que é gordura? Pode ser lipedema - e não é estético

2/12/2025

Tem alguém assistindo? O que o relatório anual da Netflix mostra sobre comportamento da audiência para a comunicação jurídica

2/12/2025

Frankenstein - o que a ficção revela sobre a Bioética

2/12/2025