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Interdição cautelar médica: Proteção da sociedade ou punição antecipada?

Análise crítica da interdição cautelar nos processos éticos médicos, seus impactos jurídicos e possíveis violações aos direitos fundamentais do profissional médico.

6/6/2025
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O que é a interdição cautelar e quando ela se aplica?

A interdição cautelar representa uma das medidas mais severas e delicadas dentro de um processo ético-profissional conduzido pelos Conselhos Regionais de Medicina. Trata-se de uma forma excepcional de afastamento preventivo do médico, utilizada quando há indícios de que sua permanência no exercício profissional possa representar risco imediato à população ou ao prestígio e bom conceito da profissão médica.

Bom que se diga, também, que o conceito de risco, aqui, é do mais variável possível. Não se fala necessariamente da nomenclatura - erroneamente utilizável - de erro médico, mas de todo e qualquer ato médico passível de ser analisado e disciplinado pelo Conselho de Fiscalização Médica.

Embora prevista expressamente no art. 29 da resolução CFM 2.306/22, essa medida carrega em si uma tensão jurídica importante: como justificar o afastamento de um profissional sem o devido encerramento do processo ético? Até que ponto o caráter preventivo dessa medida não compromete a presunção de ética e competência do médico até prova em contrário?

O paradoxo entre a prevenção visada pelo Conselho de Fiscalização e a presunção de inocência médica

Ao mesmo tempo em que o CFM - Conselho Federal de Medicina - é encarregado de zelar pela conduta ética e prestígio da medicina - art. 2° do CPEP, também se encontra diante do desafio de aplicar medida preventiva, quase punitiva, sem ainda ter a certeza da infração ética supostamente cometida. Neste cenário, a grande controvar direitos fundamentais do profissional de saúde?

Sopesando o conflito, rege a Constituição Federal, em seu art. 5°, LV que é direito constitucional do cidadão a garantia de contraditório e ampla defesa. Em sede de interdição cautelar perante o conselho fiscalizador, tal direito não é afastado, contudo goza de caminho incomum.

Isso porque uma das previsões no rito da interdição cautelar é aplicação da medida já na instauração do processo ético-profissional, devendo o médico ser notificado em até 72 (setenta e duas) horas antes da sessão de julgamento perante o pleno do CRM para, querendo, apresentar sustentação oral no prazo de 10 (dez) minutos.

Aquela controvérsia jurídica já citada surge exatamente quando da defesa médica na sessão de julgamento, através da necessidade de se defender de análise de conduta meramente potencial lesiva, sem que a decisão final emanada daquele pleno do CRM encerre uma afirmação concreta sobre a natureza do ato médico analisado.

Essa previsão, inclusive, caminha na mesma seara da combatida visão jurídica de obrigação de resultado, por vezes encontrado na relação paciente-médica em objeto estético embelezador. Isso porque, a partir do momento em que o médico precisa se defender da possibilidade de interdição cautelar, tendo que contrapor argumento e fundamentos que ainda são meras ideias, sem uma robustez de acusação, inverte-se automaticamente os polos de acusação e defesa.

Vale dizer: há uma verdadeira inversão do ônus da prova. É tão somente o médico, desde o início, dizendo que o exercício da medicina não traduz ato potencial lesivo à sociedade - sendo que esta afirmação somente poderá ser, de fato, confirmada com decisão final em processo ético-profissional que não se confunde com a decisão de interdição cautelar.

O que se observa, portanto, é que a deliberação acerca da interdição cautelar não crava sobre o ato médico analisado natureza lesiva ou não, mas apenas a expectativa de que aquele ato possa, de fato, ser configurado como algo danoso.

Requisitos para imposição da interdição cautelar:

Neste cenário, a deliberação do pleno do CRM sobre a possibilidade da medida acautelatória se apoia em três elementos principais:

a) Probabilidade de materialidade e autoria da prática de procedimento danoso;

b) Risco de dano irreparável ao paciente ou à sociedade;

c) Verossimilhança dos fatos narrados - “fumus boni juris".

Ainda que nenhum desses elementos seja uma confirmação concreta de infração ética, o médico poderá ser afastado total ou parcialmente do exercício profissional até o julgamento final do processo ético-profissional que, obrigatoriamente, deverá ser instaurado.

Colisão entre princípios administrativos e a presunção de inocência, ampla defesa e contraditório

Esse afastamento preventivo, por mais legal e legítimo que seja em sua tese, esbarra diretamente em princípios norteadores do processo administrativo, afetando a razoabilidade, proporcionalidade, ampla defesa e contraditório que devem figurar o ato administrativo na imposição do afastamento acautelatório do médico - lei federal  9.784/1999.

O princípio da razoabilidade é ferido neste rito processual porque a medida acaba não tendo um elemento concreto para se basear. Em âmbito de processo ético-profissional médico, a imposição de sanção, ainda que de maneira cautelar, deve ter como parâmetro a infração ética analisada para que não se puna de maneira excessiva ou desproporcional.

Ocorre que, na mesma seara, não há que se falar em infração ética, isso porque o encerramento do termo “infração” sobre a conduta médica somente pode advir de decisão final oriunda de processo ético-profissional que analisou de maneira exclusiva o ato médico objeto.

Por seu turno, a decisão que impõe a suspensão do exercício médico é limitada a analisar a probabilidade de autoria e materialidade, sem ter elementos suficientes para, de fato, submergir na análise do ato médico objeto, a fim de impor qualquer tipo de sanção.

O princípio da proporcionalidade acaba por elucidar, e muito, o cuidado jurídico que o processo ético deveria ter. Isso porque visando que a medida cautelar seja adequada e necessária para alcançar o fim previsto, a medida acautelatória, também, não deve causar mais prejuízo do que aquilo que se pretende evitar. E aqui surge um ponto importantíssimo:

Um “dano cautelar” maior que a possibilidade de sanção ao final do processo ético-profissional?

Quando decretada a interdição, é dever do conselho promover a notificação de afastamento aos órgãos, locais de trabalho e outros pontos que o médico interditado exerça a profissão. Na prática, não se pode dizer que o próprio conselho feriu o sigilo processual, porém, pode expor o profissional de forma irreversível.

Curiosamente, o próprio processo que apura a infração ética nem sempre culmina em uma pena tão grave quanto a interdição cautelar. Ou seja, o médico pode sofrer um impacto reputacional e profissional desproporcional ao desfecho do processo, especialmente se, ao final, for absolvido ou receber penalidade mais branda.

Parece, portanto, que o princípio da homogeneidade é jogado aos ventos diante da possibilidade de interdição cautelar, visto que exige justamente que a medida não seja mais gravosa do que a pena que eventualmente será aplicado ao médico após o período de instrução do processo ético.

Sendo assim, diante de dois julgamentos distintos, não é incomum perceber que o médico acaba suportando o dissabor de uma espécie de execução imediata da pena, visto que ainda que posteriormente perceba-se a inexistência de conduta infracional ética, já tomou sobre si a pena de ser interditado e de terceiros saberem dessa interdição.

Conclusão: É possível proteger a sociedade de dano de natureza irreparável, mas sem ultrapassar limites

É inegável que a interdição cautelar cumpre um papel importante na preservação da segurança coletiva e do bom conceito da profissão médica. No entanto, o uso da medida exige cautela redobrada e fundamentos sólidos, sob risco de gerar uma indesejável e irreparável execução antecipada da pena, sem o efetivo julgamento definitivo da conduta médica.

É possível proteger a sociedade sem violar garantias fundamentais do médico. Para isso, o processo ético-profissional deve ser conduzido visando o equilíbrio: respeito à presunção de inocência médica e critérios processuais técnicos e claros - impedindo que o médico seja penalizado por um risco que ainda não se confirmou.

Autor

Matheus Silva dos Santos Advogado especialista e com atuação exclusiva em Defesa Médica.

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