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Tributação de controladas no exterior e eficácia negativa dos tratados

STF julga tributação de lucros no exterior; debate envolve tratados internacionais e o uso do MEP pela Receita em confronto com acordos da OCDE.

6/6/2025

O STF volta a se debruçar, entre os dias 6 e 13 de junho de 2025, sobre um tema que muitos consideravam encerrado: a tributação de lucros auferidos por controladas no exterior. O caso é o RE 870.214, envolvendo a Vale S/A e a União, e gira em torno da aplicação do art. 74 da MP 2.158-35/2001 frente aos tratados internacionais para evitar dupla tributação firmados pelo Brasil com países como Bélgica, Dinamarca e Luxemburgo.

Até aqui, o julgamento está dividido. O relator, ministro André Mendonça, entende que os tratados impedem o Brasil de tributar lucros de empresas estrangeiras que não tenham estabelecimentos permanentes em território nacional e que o MEP - método da equivalência patrimonial, ao trazer automaticamente esses lucros para a base tributária da controladora, viola os tratados. Os ministros Gilmar Mendes e Alexandre de Moraes divergiram, aceitando a aplicação da tributação brasileira com base no princípio da universalidade.

Mas talvez seja necessário trazer de volta à mesa alguns pontos fundamentais.

Um equívoco recorrente nesses debates é tratar os tratados para evitar a dupla tributação como normas que autorizam ou instituem a incidência ou não de tributos. Não é isso que eles fazem. O papel desses acordos é outro: exercem aquilo que a doutrina chama de eficácia negativa. Ou seja, limitam o poder de tributar que o Estado já possui, com base num pacto bilateral. O objetivo é coordenar jurisdições, evitar sobreposições e garantir previsibilidade. Nenhum tratado existe para ampliar a capacidade tributária de um Estado. Existe para balizá-la.

Quando o Brasil assina um tratado com outro país, como Dinamarca ou Bélgica, não está renunciando à sua soberania. Está exercendo-a de forma coordenada, aceitando que, para certos tipos de renda, o país da fonte (onde está localizada a empresa controlada) tenha exclusividade no exercício do direito de tributar. Ao agir dessa forma, o Brasil viola a própria essência e razão de ser dos tratados para evitar dupla tributação.

Esse é o caso do art. 7º dos tratados mencionados: lucros de empresas localizadas no exterior só podem ser tributados pelo Estado de residência da própria empresa, salvo se ela tiver estabelecimento permanente no Brasil. O simples fato de a controladora brasileira reconhecer o lucro contabilmente, sem distribuição, não autoriza a tributação.

A discussão ganha contornos técnicos mais complexos quando se introduz o MEP. Esse método, previsto na lei das S.A. (lei 6.404/1976) e tradicionalmente aplicado para fins societários, foi usado na legislação tributária como base para aplicar a chamada “tributação automática” de lucros de controladas no exterior.

Com a edição da MP 2.158-35/01, o Fisco passou a considerar que, mesmo sem distribuição formal de lucros, o simples reconhecimento contábil de resultados positivos de controladas no exterior pela controladora brasileira (via MEP) geraria base tributável imediata no Brasil. Essa construção foi, durante anos, objeto de questionamento, até que a lei 12.973/14, que visava modernizar e sistematizar a tributação das controladas e coligadas no exterior, foi editada.

Mas a lei 12.973/14 não resolveu o problema, apenas o contornou. Manteve, com ajustes, o mesmo mecanismo de tributação antecipada via MEP, mesmo quando havia tratado firmado. Em vez de reconhecer o limite convencional, buscou reafirmar a prevalência da norma interna sobre acordos internacionais que visam evitar a dupla tributação. Trata-se de uma opção tática, mas que coloca o Brasil em rota de colisão com compromissos bilaterais e com o próprio entendimento da OCDE.

Pelo contrário do que se argumenta, os Commentaries da Convenção Modelo da OCDE (OECD Model Tax Convention on Income and on Capital) são expressos ao afirmar que a inclusão de lucros de controladas estrangeiras no resultado tributável da mãe residente, antes de sua distribuição, é incompatível com o art. 7º da convenção, salvo em situações muito excepcionais (como entidades interpostas artificiais com finalidade exclusiva de adiamento).

O parágrafo 23 do Commentary ao art. 7º é claríssimo: o país da residência da controladora não pode tributar os lucros da controlada estrangeira enquanto eles não forem distribuídos ou atribuídos a um estabelecimento permanente no país de residência. É o que diz a OCDE. E é com base nessa mesma convenção modelo que os tratados brasileiros foram firmados.

Não se trata apenas de uma discussão sobre tratados. O regime brasileiro de CFC é, por si só, um ponto fora da curva internacional. Enquanto a maioria dos países que adotam regras CFC limita a tributação às chamadas rendas passivas (juros, royalties, dividendos, rendas de portfólio), o Brasil aplica suas regras a toda a receita operacional da controlada, independentemente da natureza da atividade.

Isso significa que uma empresa brasileira com uma subsidiária industrial ou comercial ativa no exterior pode ser tributada antecipadamente, no Brasil, sobre os lucros dessa empresa, mesmo que tais lucros ainda não tenham sido distribuídos, e mesmo que a atividade da controlada seja plenamente produtiva e sujeita à tributação local.

A conseqüência prática é uma só: as empresas brasileiras estão em condição de desvantagem competitiva em relação às suas competidoras estrangeiras, que têm maior liberdade para estruturar operações internacionais com eficiência fiscal.

O julgamento do RE 870.214, portanto, não exige inovação e sim coerência com os próprios compromissos que o Brasil firmou. A tese da União, ao insistir na aplicação automática da tributação com base no MEP, busca preservar arrecadação, o que é até compreensível. Mas o custo institucional de ignorar tratados bilaterais ratificados, promulgados por decreto e com força normativa interna é elevado: mina a previsibilidade do sistema, desestimula a boa-fé dos investidores e reduz a credibilidade do País.

Não se trata de negar a validade das regras CFC brasileiras, mas de reconhecer que, quando há tratado, sua função é justamente modular a aplicação dessas regras. Essa é a sutileza do direito tributário internacional: respeitar os limites que o próprio Estado desenhou para si.

José Andrés Lopes da Costa
Advogado e mestre em Direito Tributário Internacional e Desenvolvimento pelo IBDT-SP.

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