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Equidade racial em pauta: Por que o boletim 1 do MTE é leitura obrigatória para quem leva ESG a sério?

O Boletim do MTE revela o baixo índice de cláusulas raciais em acordos coletivos e propõe medidas concretas para integrar a equidade à governança ESG.

13/6/2025

Do diagnóstico incômodo à oportunidade estratégica

O boletim 11 - denominado de “Boas Práticas em Negociações Coletivas: Equidade Racial”, publicado recentemente pelo MTE - Ministério do Trabalho e Emprego, traz o dado desconcertante: apenas 5% dos acordos (ACT) e convenções coletivas (CCT) registrados no Sistema Mediador, em 2023, continham cláusulas específicas sobre a questão racial. Em pleno auge da pauta ESG, o número expõe o descompasso entre o discurso corporativo pela diversidade, e a não efetividade de cláusulas pactuadas nas relações coletivas, hoje sob a gestão de profissionais qualificados de RTS - Relações Trabalhistas e Sindicais.

O documento, porém, não se limita a denunciar o hiato de boas práticas em normas coletivas. Ele oferece um cardápio de vinte “cláusulas-modelo”, que vão da proibição de expressões estéticas como “boa aparência” em anúncios de emprego às medidas afirmativas robustas: como a reserva mínima sugerida de 30% das vagas para pessoas não brancas, e a criação de grupos ou comissões de diversidade, com a coparticipação sindical.

O diálogo proposto pelo boletim nos fez refletir sobre o encontro direto entre a pauta da governança corporativa moderna e sua efetivação nas negociações coletivas de trabalho. E uma pergunta adicional: Os sindicalistas têm real interesse na sustentabilidade, diversidade e inclusão? Ou toda a sociedade ficará no discurso?

Ou seja, negociar a inclusão proposta significará “ancorar” políticas de diversidade em compromissos jurídicos, e não apenas em boas intenções!

A intersecção natural com a agenda ESG (Social, Governança e Ambiental)

Nos relatórios anuais, muitas empresas costumam exibir indicadores de diversidade ao lado de metas climáticas e ambientais. A leitura detida das diretrizes trazidas pelo boletim deixa clara a possibilidade - e sustentabilidade - de uma governança corporativa preservada também por cláusulas em acordos e convenções coletivas.

As boas práticas catalogadas pelo MTE conversam com padrões internacionais de reporte, como o GRI 4052 (Diversidade e Igualdade de Oportunidades) e o SASB/Human Capital3, enquanto podem amparar as organizações nas questões trabalhistas e ambientais.

Recado aos investidores: Negociação coletiva como ponte para o ESG?

Para os investidores, há um ângulo adicional. Negociações coletivas bem conduzidas funcionam como certificadoras sociais: traduzem princípios ESG em obrigações contratuais monitoráveis, oferecendo previsibilidade a analistas de risco e a fundos que demandam métricas concretas. Em vez de enxergar o sindicato como obstáculo, conselhos e gestoras podem encará-lo como parceiro institucional na implementação de metas de diversidade, equidade e proteção ambiental.

Quando a cláusula de reserva de vagas ou o protocolo de combate ao assédio é incorporado ao ajuste coletivo, o compromisso ganha validade jurídica imediata, reduz o risco de social-washing4 e fornece um indicador que pode ser incluído nas auditorias de sustentabilidade. Dessa forma, a negociação coletiva facilitará a aplicação prática de diretrizes ESG, permitindo que investidores acompanhem, em tempo real, a aderência da companhia às parcelas da sigla, sem depender apenas de relatórios voluntários.

Importantes recados aos conselhos de administração: As negociações prevalecem sobre a lei

Assim como os investidores podem compreender que a negociação coletiva pode atuar como proxy de confiabilidade ESG, os conselhos de administração, ou comitês de pessoas por aquele designado, precisam enxergar o sindicato como peça-chave da própria estratégia de governança.

Em nossa visão, quatro frentes merecem atenção imediata:

1. Da política à convenção e/ou acordo coletivo: O teste de realidade

Códigos de ética, programas de diversidade e relatórios de sustentabilidade são úteis, mas não substituem a força bilateral normativa de cooperação do acordo ou da convenção coletiva. Quando a reserva de um percentual de vagas para pessoas não brancas migra do manual interno para a convenção sindical, ela deixa de ser promessa para se tornar obrigação cogente, com efeitos sobre toda a categoria, e pode colocar o Sindicato de Trabalhadores como ator social dessa busca por diversidade.

Ao chancelar publicamente esse compromisso, as partes transformam uma meta subjetiva de RH em floor regulatório (especialmente após o julgamento do Tema 1.046/STF5), protegendo a companhia de alegações de promoção enganosa ou de inconsistência entre discurso e prática.

2. Governança compartilhada: O sindicato no comitê ESG

Trazer representantes laborais para o comitê ESG - prática referendada pelo boletim 1 ao sugerir grupos de diversidade com presença sindical - não é gesto meramente simbólico. A participação paritária, já incorporada em outros instrumentos, como acordos de participação nos lucros ou resultados, enriquece a materialidade dos indicadores, dá transparência ao processo decisório e reduz o risco de litígios futuros, pois as metas contam com anuência formal dos trabalhadores.

Para o board, isso significa governança viva: a estratégia é retroalimentada pela experiência prática, evitando o efeito “torre de marfim” que ainda marca muitas agendas de sustentabilidade.

3. Remuneração, métricas e responsabilidade fiduciária

Metas de diversidade e inclusão devem influenciar bônus executivos, KPIs de médio prazo e cláusulas de clawback. Tal alinhamento fortalece a narrativa de responsabilidade social perante investidores, demonstra ao mercado que o conselho possui mecanismos de accountability concretos e satisfaz o dever fiduciário, pois mitiga risco reputacional e financeiro atrelado a práticas discriminatórias.

O boletim oferece parâmetros objetivos, como percentuais de representatividade, frequência de treinamentos, protocolos de denúncia, facilitando a conversão de princípios em indicadores auditáveis. Mostrando o caminho do início desse procedimento que precisa se tornar um hábito social.

4. Negociação preventiva como vantagem competitiva setorial

Ao internalizar temas raciais e ambientais nas convenções, a empresa não apenas cumpre obrigação legal: ela influencia o padrão de concorrência; traz para si a diversidade como elemento de convivência e experiência. Quem estabelece cláusulas-piloto tende a ser copiado em negociações futuras, criando barreira reputacional de entrada e pautando o ritmo de conformidade do setor. Desse modo, a negociação coletiva deixa de ser contingência de RH e passa a instrumento estratégico do board para moldar o ambiente competitivo em torno de parâmetros ESG.

Em síntese, o conselho que enxergar o sindicato como aliado - não como entrave - colherá dois dividendos: maior previsibilidade na execução das metas ESG; parceria na superação de obstáculos (de forma colaborativa), e menor exposição a críticas. Transformar o diálogo social em rotina de governança é, hoje, tão relevante quanto acompanhar a curva de juros ou a estratégia digital da companhia.

O custo de ignorar o boletim

Empresas alheias ao tema já sentem pressão em três frentes - regulatória: o MTE detém a base do Sistema Mediador e pode direcionar recomendações e fiscalizações a setores com baixa adoção de cláusulas raciais; reputacional: fundos internacionais monitoram a litigância em direitos humanos e excluem emissores reincidentes; financeira: ações coletivas e suas condenações ultrapassam com facilidade a casa das dezenas de milhões quando há omissão sistêmica.

Recomendações práticas - em marcha contínua

Em linhas gerais, entendemos como primeiro passo a elaboração de um diagnóstico interno de equidade racial, cruzando dados de folha, promoções e turnover.

Aliar o boletim à mesa de negociação na próxima data-base poderá ser um fator determinante para ajustar cláusulas (por exemplo, eliminar critérios estéticos nos processos seletivos ou instituir canais de denúncia com acolhimento) custa menos do que litigar depois.

Integrar as metas de equidade racial ao dashboard ESG já monitorado pelo conselho, relatando diversidade com o mesmo rigor dedicado às emissões de carbono, por exemplo.

Por fim, a capacitação e engajamento de lideranças e RH em linguagem inclusiva e prevenção de assédio; a cultura organizacional muda quando o discurso é reforçado por treinamento recorrente e métricas claras.

O boletim do MTE não é apenas mais um compêndio técnico, é um chamado para reflexão: precisamos converter retórica em prática objetiva pela equidade. Ignorá-lo sai caro; adotá-lo rende dividendos de reputação, governança e justiça social. Em um mercado em que investidores mensuram valor pelo impacto além do lucro, equidade racial deixou de ser ornamento de RH para virar métrica central de sustentabilidade corporativa. E traz o Sindicato de Trabalhadores como colaborador e corresponsável pela sustentabilidade do sistema social.

_______

1 https://www.gov.br/trabalho-e-emprego/pt-br/boletim-boas-praticas/pdf/boletim-boas-praticas-dieese_01-equidade-racial.pdf/

2 O GRI 405 é um padrão da Global Reporting Initiative (GRI) que trata de diversidade e igualdade de oportunidades dentro das organizações. Ele estabelece diretrizes para que empresas relatem informações sobre seus impactos relacionados à diversidade no ambiente de trabalho e como gerenciam esses impactos

3 O SASB (Sustainability Accounting Standards Board) desenvolveu padrões para avaliar práticas relacionadas à saúde, segurança, diversidade e inclusão dos funcionários.

4 Social-washing é uma prática em que empresas ou organizações fingem ter um compromisso genuíno com causas sociais, mas, na realidade, suas ações são superficiais ou enganosas. É semelhante ao greenwashing, que ocorre quando empresas exageram ou falsificam suas iniciativas ambientais para parecerem mais sustentáveis do que realmente são.

5 O julgamento do Tema 1046 no Supremo Tribunal Federal (STF) tratou da validade de normas coletivas de trabalho que limitam ou restringem direitos trabalhistas não assegurados constitucionalmente. Em 02 de junho de 2022, o STF decidiu que acordos e convenções coletivas podem estabelecer restrições ou afastamentos de direitos trabalhistas, desde que respeitem os direitos absolutamente indisponíveis. A decisão reforçou o princípio da prevalência do negociado sobre o legislado, permitindo maior autonomia nas negociações coletivas.

Lucas de Oliveira Mendes
Advogado e consultor em relações trabalhistas e sindicais, mestre em direito (LL.M.) pela University of Illinois (EUA). Integra Robortella e Peres Advogados.

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