A ausência de registro formal afeta diretamente a dignidade humana, a função social da propriedade e o desenvolvimento urbano sustentável.
A regularização fundiária é um instrumento essencial para a promoção da justiça social e do desenvolvimento urbano no Brasil. Mais do que garantir um título de propriedade, ela assegura o direito à moradia digna, à infraestrutura urbana e à proteção patrimonial, especialmente de populações historicamente vulneráveis. Nesse contexto, o registro de imóveis exerce papel central ao assegurar a publicidade, a segurança jurídica e a formalização de direitos reais.
O papel do registro de imóveis na estrutura fundiária
O registro imobiliário brasileiro é um dos pilares do sistema de garantias, oferecendo publicidade e autenticidade aos atos jurídicos relacionados à propriedade. Sua função não se restringe à certificação de titularidade: ele promove transparência nas transações imobiliárias, evita litígios e reforça a segurança jurídica do mercado e das famílias.
Além disso, o registro é ferramenta de planejamento territorial. Municípios e entes públicos utilizam suas informações para elaborar políticas públicas, fiscalizar ocupações irregulares e estruturar projetos habitacionais. Em localidades menores, o registrador muitas vezes atua como verdadeiro agente de cidadania, promovendo a inclusão jurídica e social de comunidades carentes.
A realidade da irregularidade fundiária no Brasil
Estudos indicam que cerca de 60% do solo urbano brasileiro é ocupado de forma informal, sem o devido registro. Essa informalidade traz impactos diretos:
- Insegurança jurídica: o ocupante, sem o título registrado, não tem garantias legais e pode ser removido ou perder o imóvel;
- Exclusão econômica: imóveis irregulares não podem ser utilizados como garantia em financiamentos, impedindo o acesso ao crédito;
- Déficits urbanos: ausência de infraestrutura básica, ocupações em áreas de risco e degradação ambiental;
- Impactos sociais: mulheres e crianças são particularmente afetadas pela informalidade, seja em disputas por herança, separações ou vulnerabilidade em casos de violência.
Soluções legais e mecanismos de regularização
O ordenamento jurídico prevê instrumentos para a superação da informalidade:
- Usucapião extrajudicial: prevista no art. 216-A da lei 6.015/1973, regulamentada pelo provimento 65/17 do CNJ, permite a aquisição da propriedade por meio de procedimento administrativo no cartório de registro de imóveis;
- Inventário e partilha: possibilitam regularizar imóveis herdados;
- Cessão de direitos hereditários: desde que registrada, permite a transferência de direitos sobre o imóvel;
- Retificação de registro: com base no art. 213 da lei de Registros Públicos, para correção de descrição ou área;
- Averbação de construção: por meio de laudos técnicos e regularização junto à prefeitura.
A jurisprudência do STJ reconhece a viabilidade da retificação de área por procedimento administrativo, desde que não haja impugnação fundamentada por confrontantes, evitando judicialização desnecessária.
Lei 13.465/17 e a Reurb:
A lei 13.465/17 representou um marco na regularização fundiária urbana, ao criar os institutos da Reurb-S (interesse social) e Reurb-E (interesse específico). A legislação busca consolidar a ocupação urbana irregular, associando ações jurídicas, urbanísticas, ambientais e sociais. Dentre seus principais avanços:
- Titulação preferencial para mulheres (art. 25, §1º), reconhecendo seu papel na proteção da família;
- Possibilidade de legitimação fundiária como forma originária de aquisição (art. 23);
- Incorporação de núcleos informais ao ordenamento territorial urbano;
- Integração de cartórios, prefeituras e órgãos ambientais em um único processo.
O STF, em decisões como a ADI 5783, reconheceu a importância da proteção territorial de comunidades tradicionais e declarou a inconstitucionalidade de normas que estabeleciam prazos finais para requerimentos de regularização fundiária, por serem incompatíveis com a proteção devida a essas comunidades.
A função pública dos cartórios e o papel dos municípios
O art. 30, VIII, da Constituição Federal determina que compete aos municípios promover, no que couber, a regularização fundiária e garantir o pleno desenvolvimento das funções sociais da cidade. A omissão estatal, infelizmente frequente, pode e deve ser suprida por parcerias com universidades, defensorias públicas, registradores e núcleos de habitação.
Os registradores de imóveis, por sua vez, exercem função pública essencial e têm papel cada vez mais ativo na promoção da cidadania. Iniciativas como o “RI para Todos”, promovidas por associações de registradores e prefeituras, já regularizaram milhares de unidades habitacionais pelo país.
Conclusão
A regularização fundiária é um instrumento de justiça social. Representa a ponte entre o direito abstrato à moradia e a sua efetivação prática. Além disso, permite que o cidadão transforme sua casa em um bem juridicamente reconhecido, transmissível e valorizável.
Logo, a propriedade formalizada confere ao cidadão o sentimento de pertencimento, dignidade e segurança existencial. A Reurb, ao simplificar procedimentos e ampliar o alcance das políticas públicas, reafirma esse compromisso do Estado com a função social da propriedade.