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Quem cala consente? O silêncio que vira prova no processo civil

Análise objetiva dos riscos da falta de impugnação específica, com foco no art. 341 do CPC e nas consequências práticas do silêncio do réu, que pode ser interpretado como confissão tácita.

18/6/2025

No imaginário popular, a expressão “quem cala consente” sempre foi vista com desconfiança. No processo civil brasileiro, no entanto, essa máxima pode deixar de ser apenas um ditado e se transformar em consequência jurídica concreta.

O CPC de 2015 trouxe uma sistemática clara quanto ao dever de impugnação específica dos fatos alegados pelo autor. O réu que se limita a negar genericamente ou deixa de contestar ponto relevante da petição inicial pode sofrer as consequências da presunção de veracidade, prevista expressamente no art. 341 do CPC.

Neste artigo, analisamos o alcance desse dispositivo, as hipóteses em que o silencia do réu realmente “faz prova” contra si e as brechas jurisprudenciais que ainda permitem relativizar esse efeito. Mais do que norma processual, se trata de uma armadilha recorrente na prática forense, e que pode comprometer uma boa defesa.

Nesse sentido, o art. 341 do CPC dispõe expressamente:

Art. 341. Incumbe também ao réu manifestar-se precisamente sobre as alegações de fato constantes da petição inicial, presumindo-se verdadeiras as não impugnadas, salvo se:

I - não for admissível, a seu respeito, a confissão;

II - a petição inicial não estiver acompanhada de instrumento que a lei considerar da substância do ato;

III - estiverem em contradição com a defesa, considerada em seu conjunto.

Cumpre observar que a norma impõe ao réu o dever de enfrentar ponto a ponto as alegações fáticas feitas pelo autor. Não basta afirmar genericamente que “não deve nada”, “que os fatos são controvertidos” ou que “impugna todos os termos da petição inicial”.

Logo, a ausência de impugnação específica sobre um fato relevante pode ser interpretada como confissão tácita, atribuindo ao silêncio o peso de uma admissão.

O que está em jogo não é apenas uma formalidade processual. A falta de impugnação específica pode definir o resultado da causa. Vejamos, senão, as seguintes situações:

Em ambos os casos, o silencia do réu pode ser suficiente para formar convencimento judicial. Como ensina a doutrina e a jurisprudência, a ausência de impugnação específica autoriza o juiz a reputar como verdadeiro o fato não contestado, desde que não caiba confissão, e.g., em direito indisponível.

A jurisprudência dos tribunais pátrios dá especial relevância a impugnação específica das alegações e dos pedidos iniciais, sob pena de serem considerados como verdadeiros os fatos alegados na exordial. Vejamos, senão, recente precedente do Egrégio Tribunal de Justiça do Distrito Federal:

APELAÇÕES CÍVEIS. CIVIL. PROCESSO CIVIL. CONSUMIDOR. AÇÃO DE INDENIZAÇÃO POR DANOS MATERIAIS E MORAIS C/C OBRIGAÇÃO DE FAZER. CARTÃO DE CRÉDITO. TRANSAÇÕES FRAUDULENTAS. FALHA NA PRESTAÇÃO DOS SERVIÇOS BANCÁRIOS. ÔNUS DA PROVA. AUSÊNCIA DE IMPUGNAÇÃO ESPECÍFICA. REPETIÇÃO EM DOBRO. INVIABILIDADE. DANO MORAL NÃO CONFIGURADO. SENTENÇA PARCIALMENTE REFORMADA. 1. A ausência de impugnação específica das alegações e dos pedidos iniciais, atrai a aplicação do art. 341 do CPC, de forma a se reputar verossímeis os fatos afirmados na inicial. (...) (TJ-DF 07002508020248070001 1900190, Relator.: MAURICIO SILVA MIRANDA, Data de Julgamento: 31/07/2024, 7ª Turma Cível, Data de Publicação: 14/8/2024) (grifos nossos)

O que a norma processual impõe como obrigação do réu, a doutrina chama de “princípio da impugnação específica”. Sobre o tema, Daniel Amorim Assunção (2016, p. 1.081), explica que:

“A impugnação específica é um ônus do réu de rebater pontualmente todos os fatos narrados pelo autor com o quais não concorda, tornando-os controvertidos e em consequência fazendo com que componham o objeto da prova. O momento de tal impugnação, ao menos em regra, é a contestação, operando-se preclusão consumativa se, apresentada essa espécie de defesa, o réu deixar de impugnar algum(s) do(s) fatos(s) alegado(s) pelo autor”.

Embora o silêncio do réu possa ser interpretado como confissão tácita, o próprio art. 341 traz 3 (três) exceções claras que impedem a presunção automática de veracidade:

i) Quando não for admissível a confissão

Fatos que envolvem direitos indisponíveis, como em ações de alimentos, guarda de menores, estado civil, nulidade de cláusulas em contratos de adesão, entre outros, não admitem confissão tácita. O juiz, mesmo diante do silêncio do réu, deve buscar prova autônoma.

A título de exemplo, podemos considerar a hipótese da ação de alimentos, quando o réu não contesta o valor pleiteado. Ainda assim, o juiz não pode presumir sua veracidade sem analisar as reais condições de quem presta e de quem recebe.

ii) Quando faltar documento essencial

A presunção de veracidade só pode ocorrer se a alegação do autor vier acompanhada do documento que a lei exige como prova mínima, e.g., o contrato escrito como título executivo extrajudicial, a certidão em ação de registro público etc.).

Ora, se a petição inicial estiver “capenga”, não há como reputar os fatos verdadeiros – ainda que o réu se cale, pois lhe falta o requisito mínimo da verossimilhança.

Se o réu apresentar tese que contradiz, ainda que implicitamente, o fato alegado pelo autor, afasta-se a presunção. Por isso, mesmo uma defesa mal redigida pode, por vezes, salvar o réu da confissão tácita – o que só reforça o papel estratégico da consistência na linha de defesa, visando impugnar pontualmente as alegações da exordial.

Na rotina forense, o que se vê são contestações apressadas, com cláusulas genéricas como: “impugna-se, por genéricos e improcedentes, todos os fatos alegados na inicial”, ou ainda, “o requerido nega os fatos, deixando à parte autora o ônus de prová-los”.

Essas fórmulas prontas, por si só, não afastam a incidência do art. 341, do CPC. O juiz, ao se deparar com silêncio seletivo ou omissões relevantes, pode presumir como verdadeiros os fatos não impugnados - e fundamentar sua sentença nessa presunção. Nesse sentido, vejamos jurisprudência do Eg. TJDFT sobre a falta de impugnação específica seletiva:

DIREITO DO CONSUMIDOR. AÇÃO INDENIZATÓRIA. PREJUDICIAL DE PRESCRIÇÃO. TRATAMENTO ODONTOLÓGICO. FATO DO SERVIÇO. RESPONSABILIDADE OBJETIVA. DANO MATERIAL. ÔNUS DA IMPUGNAÇÃO ESPECÍFICA EM CONTESTAÇÃO. PRECLUSÃO CONSUMATIVA. DANOS MORAIS E ESTÉTICOS. VALOR INDENIZATÓRIO. (...) 4. A falta de impugnação específica na contestação quanto ao dano material alegado na petição inicial acarreta a presunção de veracidade do fato alegado, revelando-se correta a sentença que acolheu o pedido indenizatório com base no menor orçamento juntado aos autos e não impugnado pela parte ré. (...) (TJ-DF 07033861620238070003 1769617, Relator.: Roberto Freitas Filho, Data de Julgamento: 05/10/2023, 3ª Turma Cível, Data de Publicação: 30/10/2023) (grifos nossos)

Em conclusão, vale ressaltar que a impugnação específica não é mero formalismo. É instrumento de defesa real. O advogado que negligencia esse dever, deixa o juiz autorizado a aceitar a narrativa do autor como verdade processual.

Mais do que cumprir um rito, é preciso desconstruir os fatos ponto a ponto, com inteligência estratégica, sem cair na armadilha do silencia seletivo. Em matéria fática, quem cala, consente - e no processo civil, isso custa caro.

_______

BRASIL. Código de Processo Civil: Lei nº 13.105, de 16 de março de 2015. Disponível em: http://www.planalto.gov.br/ccivil_03/_ato2015-2018/2015/lei/l13105.htm. Acesso em: 21 abr. 2025.

BRASIL. Tribunal de Justiça do Distrito Federal e dos Territórios. Processo nº 0703386-16.2023.8.07.0003. Relator: Des. Roberto Freitas Filho. Julgamento: 05/10/2023. 3ª Turma Cível. Publicação: 30/10/2023.

BRASIL. Tribunal de Justiça do Distrito Federal e dos Territórios. Processo nº 0700250-80.2024.8.07.0001. Relator: Des. Maurício Silva Miranda. Julgamento: 31/07/2024. 7ª Turma Cível. Publicação: 14/08/2024.

NEVES, Daniel Amorim Assumpção. Manual de Direito Processual Civil: volume único. 8. ed. Salvador: Editora JusPodivm, 2016.

Yuri do Amaral Bezerra
Advogado. Bacharel em Direito pela Faculdade de Ciências Jurídicas do Instituto de Ensino Superior de Brasília - IESB. Graduando em Filosofia pela Universidade de Brasília - UnB.

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