A dogmática jurídica tradicional parte da premissa de que o direito se apresenta como um conjunto normativo válido, eficaz e coercitivo, dotado de estrutura formal e pretensão de aplicação. No entanto, a realidade discursiva do direito - sobretudo no espaço público digital - frequentemente subverte essa lógica. Há enunciados que parecem normas, agem como normas, coagem como normas, mas não são normas. São ameaças. E, muitas vezes, são ameaças juridicamente ineficazes, mas socialmente eficazes.
É nesse ponto que a filosofia da linguagem, especialmente a teoria dos atos de fala de John L. Austin, oferece uma chave analítica valiosa. Em How to Do Things with Words (1962), Austin distingue entre três níveis de ação linguística: o ato locucionário (mero proferimento com sentido), o ato ilocucionário (ato feito ao dizer algo, como prometer ou ordenar) e o ato perlocucionário (efeito causado no ouvinte, como persuadir, intimidar ou assustar). O que está em jogo aqui é esse terceiro tipo: o ato de fala perlocucionário que, ainda que não crie uma obrigação jurídica formal, molda a realidade ao induzir comportamentos, silenciar críticas e coagir indivíduos por meios simbólicos e performativos.
Um caso ilustrativo recente pode ser extraído da esfera política. Em maio de 2025, a deputada federal Erika Hilton publicou em suas redes sociais um texto celebrando a abertura de um inquérito contra um narrador esportivo acusado de comentário transfóbico. No texto, ela afirma:
“Ah, além do discurso de ódio, podem apurar o celular, computador, dispositivos eletrônicos, conversas e tudo mais. Seus e da sua família.”
O conteúdo foi amplamente repercutido. A frase, embora disfarçada sob a aparência de uma narrativa factual (isto é, a descrição de algo que poderia ocorrer em um inquérito), não se limita a informar. Ela age. É um enunciado que opera não como proposição normativa válida ou ordem judicial concreta, mas como ameaça simbólica. No plano ilocucionário, não é uma ordem formal; no plano perlocucionário, é um ato que constrange, intimida, silencia, disciplina.
Do ponto de vista estritamente jurídico, tal inferência (de que os familiares do investigado seriam alvos de devassa investigativa) não encontra respaldo legal concreto. O suposto fato investigado - um comentário público - é passível de apuração a partir de fonte acessível e pública. Não há, portanto, prima facie, justa causa para a quebra de sigilo de terceiros. Qualquer tentativa de generalizar o alcance investigativo a familiares do investigado, sem indicação específica de autoria ou participação, configura o que a doutrina anglo-saxã denomina fishing expedition - diligência genérica e especulativa, vedada pelo devido processo legal.
Assim, o enunciado “podem apurar seus dispositivos e os da sua família” não equivale a uma norma jurídica, nem tampouco decorre logicamente da situação investigada. Ele é, no entanto, performativo: produz efeitos sociais ao simular uma possibilidade jurídica e ameaçar um conjunto de consequências que, embora juridicamente infundadas, possuem alto poder de coerção simbólica.
Neste ponto, importa retomar a distinção entre norma válida e norma eficaz, presente em autores como Hans Kelsen e Norberto Bobbio. A validade decorre da inserção da norma no sistema jurídico. A eficácia refere-se à capacidade de produzir efeitos no mundo social. Austin desloca esse debate para a linguagem: há atos de fala que, embora não sejam juridicamente válidos (por não estarem inseridos na cadeia normativa), são eficazes perlocutoriamente. É esse o caso da ameaça performativa: não cria um dever jurídico, mas cria medo. E o medo gera autocensura, silêncio, retração.
Em contexto democrático, esse tipo de uso da linguagem é especialmente perigoso. Ele instrumentaliza o aparato simbólico do direito penal como forma de pressão política, emocional ou moral, descolando-se dos parâmetros constitucionais de tipicidade, legalidade e devido processo. A ameaça de que “a família será investigada” não é um fato jurídico, mas um artefato retórico, com fins de retaliação simbólica e disciplina social.
Ao analisar o caso sob a ótica da teoria de Austin, torna-se evidente que nem toda ameaça é uma norma, mas toda ameaça é um ato de fala. E há ameaças que, mesmo sabidamente ineficazes no plano legal, operam como mecanismos de controle e repressão simbólica no espaço público, ao modular comportamentos e impor silêncio.
Por isso, o enfrentamento desse tipo de discurso não exige apenas análise penal, mas também análise pragmático-linguística. O direito deve reconhecer que seu vocabulário performativo pode ser capturado e utilizado não apenas por magistrados ou legisladores, mas também por atores que exercem poder simbólico nas redes sociais e nos espaços midiáticos.
A normalização desse tipo de enunciado – que simula juridicidade onde não há norma, que convoca ameaças infundadas como se fossem imperativos legais – corrompe o estatuto da linguagem jurídica e esvazia o sentido de garantias como o devido processo, a reserva de jurisdição e a presunção de inocência. É preciso dizer com clareza: nem toda ameaça é norma, mas toda ameaça performativa exige vigilância crítica.