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Da tenda ao tribunal: Verdade formal e equidade no caso das filhas de Zelofeade

Análise do caso bíblico das filhas de Zelofeade sob a ótica processual: jurisdição provocada, verdade formal e tutela dos vulneráveis em destaque.

18/6/2025
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Resumo

O presente artigo revisita o emblemático episódio bíblico das filhas de Zelofeade à luz do direito processual contemporâneo. A análise transcende a abordagem simbólica para examinar como, em um cenário de intensa desigualdade normativa e cultural, princípios como a jurisdição provocada, a imparcialidade do juízo, a verdade formal e a formação de precedente vinculante se projetavam de maneira intuitiva.

À luz dos desenvolvimentos históricos do processo liberal pós-código napoleônico e da função social do processo moderno, o texto propõe uma reflexão jurídica e humanística sobre a tutela dos vulneráveis e a construção da justiça como resposta institucional a pedidos legítimos.

1. Introdução

A jurisdição moderna é, por definição, um poder inerte. Conforme o art. 2º do CPC brasileiro (lei 13.105/15), o Estado-Juiz apenas se manifesta quando provocado pela parte legitimada. Trata-se do chamado princípio da demanda, segundo o qual o processo tem início por iniciativa da parte e se desenvolve por impulso oficial. Esse princípio não apenas estrutura o sistema processual, mas também resguarda o exercício da cidadania ativa e o direito à provocação do Judiciário.

No entanto, a ideia de que o Direito pode (e deve) ser invocado por sujeitos em situação de vulnerabilidade não é nova. Um exemplo notável encontra-se na tradição mosaica, com a atuação das filhas de Zelofeade - Maalá, Noa, Hogla, Milca e Tirza -, que, ao se verem excluídas da herança de seu pai falecido por não serem homens, provocaram diretamente a autoridade máxima da época, Moisés, exigindo reconhecimento de seu direito (Nm 27:1-11). O resultado foi não apenas o deferimento do pedido, mas a criação de uma norma jurídica com caráter geral e vinculante, aplicável a todos os casos semelhantes em Israel.

Os fatos narrados não são apenas um contexto de vulnerabilidade feminina. É, em essência, um episódio processual. Ocorre uma demanda (pretensão resistida), perante uma autoridade (Moisés), com uma petição fundamentada, deliberação, deferimento e criação de norma com caráter geral. Mais do que isso: observa-se o respeito a princípios hoje consagrados no processo civil brasileiro - jurisdição provocada, contraditório, imparcialidade e tratamento equitativo de partes vulneráveis.

Ao propor uma reinterpretação desse relato sob a ótica da teoria processual contemporânea, pretende-se destacar como a estrutura judiciária simbólica daquele tempo já antecipava, ainda que de forma rudimentar, a arquitetura de um Estado de Direito comprometido com a justiça social.

2. O caso das filhas de Zelofeade: Contexto e significado jurídico

O modelo processual brasileiro parte do princípio da inércia da jurisdição. Conforme o art. 2º do CPC/15, “o processo começa por iniciativa da parte”. Essa provocação é a concretização do direito de ação, entendido como o exercício de um direito subjetivo de natureza pública, voltado à obtenção de uma resposta estatal à pretensão resistida.

A narrativa bíblica, presente em números 27:1-11 e confirmada em Josué 17:3-6 e 1 Crônicas 7:15, apresenta a situação de cinco mulheres da tribo de Manassés que, diante da morte de seu pai sem descendentes masculinos, postulam ao juízo mosaico o direito de herdar sua terra, que seria legalmente destinada apenas a parentes homens, ou seja, privadas do direito sucessório por lacuna normativa, invocam o juízo mosaico e submetem uma questão jurídica fundada em equidade: “Por que o nome de nosso pai seria apagado de Israel por não ter ele filhos homens?”.

Trata-se, em essência, de uma reivindicação de tutela jurisdicional em face de omissão normativa, pautada por princípios de equidade, justiça distributiva e respeito à memória familiar. A resposta do líder não se deu de forma autônoma, mas após provocação direta por parte das interessadas, o que reforça o caráter essencialmente jurisdicional da atuação: não há decisão sem demanda.

O desfecho é paradigmático: Moisés submete o pedido ao Senhor, que reconhece expressamente o direito das requerentes, determinando que se altere a estrutura normativa então vigente. A norma resultante (Nm 27:7-11) passa a reger os casos de sucessão sem filhos homens, atribuindo legitimidade às filhas para herdar a propriedade.

3. Jurisdição provocada e acesso à justiça

A similitude entre a atuação das filhas de Zelofeade e o processo civil moderno é notável. No direito processual brasileiro:

a) A jurisdição é provocada, e não espontânea (art. 2º do CPC);

b) O acesso à justiça é garantido como cláusula pétrea (art. 5º, XXXV, CF/88);

c) O devido processo legal é pressuposto de validade do processo (art. 5º, LIV, CF/88);

d) O processo serve à realização de direitos materiais, sobretudo em contextos de vulnerabilidade.

Assim como no caso bíblico, em que as requerentes superaram barreiras culturais e jurídicas para afirmar sua pretensão, o modelo contemporâneo processual impõe que o sujeito ativo se manifeste formalmente para obter tutela jurisdicional. Não há tutela de ofício. O direito à provocação da jurisdição é, em si, um direito fundamental autônomo, correlato ao de petição (art. 5º, XXXIV, CF).

4. Da verdade real à verdade formal: A delimitação da atuação decisória

A distinção entre verdade real e verdade formal é um dos eixos mais relevantes da dogmática processual. Enquanto a verdade real busca, em tese, a reconstrução exata dos fatos com liberdade instrutória do julgador, a verdade formal limita a cognição do juízo ao que é trazido pelas partes, dentro do contraditório e da legalidade.

No episódio bíblico, apesar da onisciência atribuída a Deus - o que, em tese, permitiria o juízo de verdade absoluta -, a deliberação divina se dá com base apenas na alegação apresentada pelas partes, sem investigação autônoma sobre a conduta do pai ou supostas circunstâncias ocultas.

Esse ponto é profundamente significativo: Deus, o juiz supremo, delibera com base no que é alegado e fundamentado. Assim, há uma antecipação do modelo adjudicatório moderno, que veda juízos arbitrários e impõe limites à atuação cognitiva do julgador. A imparcialidade é garantida justamente pela contenção cognitiva do juiz à moldura processual traçada pelas partes - o que caracteriza o princípio da verdade formal como expressão da segurança jurídica.

5. O juízo imparcial e a supremacia da instância vinculante

Moisés, enquanto condutor do povo e primeiro julgador, não se arvora no direito de decidir sozinho. Diante da complexidade do caso e da possível repercussão geral, ele submete a questão à instância superior - o Senhor, cuja autoridade é absoluta.

Essa conduta é a mais pura expressão do princípio do juiz natural e imparcial, conforme o art. 5º, XXXVII e LIII, da CF/88. Ao se abster de julgar por sua conta, Moisés reconhece o próprio limite institucional de sua jurisdição.

Além disso, o desfecho revela uma estrutura de instância máxima com competência normativa vinculante, equivalente ao papel hoje desempenhado pelos tribunais superiores em sede de repercussão geral e precedentes qualificados (arts. 926 a 928 do CPC/15). A resposta divina não se resume ao caso concreto: ela cria regra jurídica para todos os casos futuros, garantindo isonomia e previsibilidade.

6. Contraditório substancial e produção de precedentes

Outro elemento moderno que se antecipa no relato bíblico é a produção normativa a partir do caso concreto. A decisão do Senhor, proferida após a petição das filhas de Zelofeade, não se restringe ao caso delas: ela transforma-se em norma vinculante para todos os casos análogos futuros. Isso se aproxima da teoria dos precedentes qualificados, previstos nos arts. 926 a 928, do CPC/15, que conferem ao Judiciário brasileiro a função de estabilizar e uniformizar o direito a partir de decisões paradigmáticas.

Além disso, o procedimento adotado na narrativa pressupõe deliberação, análise e formulação jurídica, observando princípios semelhantes ao do contraditório e da fundamentação. Não há decisão autocrática, mas decisão motivada após instância deliberativa.

7. Escola exegética e o processo liberal: Entre o texto e a justiça

O Código de Napoleão (1804) consagrou a racionalidade formal do direito, gerando na França a escola exegética, que defendia que o juiz nada mais era do que “a boca da lei”. A função judicial limitava-se a aplicar literalmente o texto legal, sem interpretação criativa.

Essa visão influenciou o processo liberal do século XIX, marcado por excessivo formalismo, culto à legalidade estrita e marginalização dos vulneráveis. Nesse modelo, a busca da verdade e da justiça cedia lugar à rigidez procedimental.

No entanto, a crítica a esse modelo culminou no desenvolvimento de um processo comprometido com a efetividade dos direitos fundamentais, culminando em reformas que priorizam a justiça social, a flexibilidade procedimental e a cooperação entre partes e juízo (vide art. 6º do CPC/15).

O episódio de Zelofeade representa, já na Antiguidade, a superação do legalismo cego em nome da justiça material. Não havia norma escrita prevendo o direito à herança pelas filhas, mas o princípio da equidade e da dignidade das partes legitimava a flexibilização da estrutura jurídica vigente.

8. Direito Natural e justiça transformadora

A história das filhas de Zelofeade revela um elemento que transcende os textos normativos: a dimensão moral do Direito. A ordem divina que reconhece o direito das mulheres em um contexto patriarcal representa uma afirmação de justiça natural, alicerçada em valores de equidade, dignidade e reconhecimento.

É, portanto, um precedente de justiça transformadora, como propõe Norberto Bobbio ao distinguir o direito posto do direito justo.

No processo civil contemporâneo, a busca por uma justiça efetiva, equitativa e substancial está refletida na expansão da tutela coletiva, nas garantias ao consumidor, na proteção de hipervulneráveis e na construção de um modelo cooperativo entre partes e juízo.

9. Tutela dos vulneráveis e hipervulneráveis: Vozes do deserto, vozes de hoje

As filhas de Zelofeade não apenas eram mulheres - já em si uma condição de subalternidade social naquele contexto - como também estavam desprovidas de qualquer amparo normativo. Eram, juridicamente, excluídas.

Ainda assim, Deus ouve suas vozes. E não só decide a favor delas, como determina a incorporação de sua demanda ao ordenamento jurídico, em igualdade com os homens. Há, aqui, uma revelação da justiça divina voltada à proteção dos vulneráveis.

No processo civil contemporâneo, essa preocupação é reeditada por meio de diversos instrumentos:

I. Prioridade legal (idosos, pessoas com deficiência, etc. – art. 71 e ss. da lei 13.146/15, Estatuto da Pessoa com Deficiência);

II. Inversão do ônus da prova em favor de consumidores hipervulneráveis (art. 6º, VIII, do CDC);

III. Tutela coletiva de direitos difusos e coletivos de grupos desassistidos;

IV. Ampliação da legitimidade ativa (ex: associações, Defensoria Pública);

V. Normas de cooperação processual (arts. 6º e 139, VI, do CPC/15).

A história das filhas de Zelofeade representa, simbolicamente, o que hoje chamamos de justiça inclusiva. Suas vozes não foram caladas. Sua demanda não foi ignorada. O processo se tornou, naquela ocasião, meio legítimo de realização da justiça social e de reforma normativa.

10. Conclusão

O episódio das filhas de Zelofeade é um espelho remoto, mas incrivelmente lúcido, da arquitetura processual contemporânea. Ele nos ensina que:

  • jurisdição só se manifesta se provocada;
  • imparcialidade do juízo exige contenção cognitiva;
  • verdade formal é suficiente para o julgamento legítimo;
  • precedente pode nascer de casos concretos e demandas marginais;
  • processo é o instrumento mais eficaz de transformação social - sobretudo em favor dos vulneráveis.

Ao invocarem sua causa perante o juízo de Moisés e do Senhor, essas cinco mulheres não apenas inauguraram uma nova fase da história sucessória em Israel. Elas também deixaram para a história um legado: quando a justiça se curva à equidade, a norma se humaniza. E o processo cumpre sua função histórica e civilizatória.

Porquanto, a história das filhas de Zelofeade não é apenas um relato religioso, mas um modelo de atuação jurídica consciente, legítima e provocadora de mudança normativa. Elas exercem um direito de petição que encontra eco direto na Constituição Federal brasileira e no CPC contemporâneo.

Ao reconhecer a importância da jurisdição provocada, do contraditório substancial e da função criativa do Judiciário, o Direito Processual moderno dialoga, ainda que de forma indireta, com experiências jurídicas milenares que, como esta, antecipam valores que hoje sustentam o Estado Democrático de Direito.

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Bíblia Sagrada, Números 27:1-11; Josué 17:3-6; 1 Crônicas 7:15.

Constituição Federal do Brasil, art. 5º.

Código de Processo Civil (Lei nº 13.105/2015).

BOBBIO, Norberto. Teoria da Norma Jurídica. Brasília: UNB, 1999.

DINAMARCO, Cândido Rangel. Instituições de Direito Processual Civil, vol. 1. Malheiros, 2017.

MARINONI, Luiz Guilherme. A Nova Jurisdição Constitucional Brasileira. RT, 2020.

Autor

Gabriel Fazanaro de Oliveira Advogado especializado em Direito Bancário e Defesa do Consumidor Superendividado. Membro da Comissão Permanente de Defesa do Consumidor OAB/SP e Coordenador do GT Superendividamento

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