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Limites da responsabilização fiscal por atos de dilapidação

Não é possível responsabilizar solidariamente os destinatários dos atos de dilapidação patrimonial, pois a responsabilização deve ser limitada ao valor dos bens transmitidos.

30/6/2025

O abuso da personalidade jurídica leva o Fisco a sustentar a presença de um grupo econômico irregular, responsabilizando solidariamente todos os envolvidos pelos atos fraudulentos, inclusive quem recebeu bens da empresa devedora (filhos e netos dos sócios, por exemplo).

A repressão à dilapidação patrimonial promovida pelo devedor exige o manejo dos instrumentos próprios da fraude contra credores e da fraude à execução, não se confundindo com a desconsideração da personalidade jurídica. Isso porque cada instituto possui requisitos próprios e produz efeitos jurídicos distintos.

Observados os requisitos materiais e procedimentais, a responsabilização dos destinatários das irregulares transferências patrimoniais deve ser limitada ao valor dos bens indevidamente recebidos, e não ocorrer de forma ilimitada, como ocorre em alguns casos.

O termo "grupo econômico irregular" (ou de fato) é utilizado para retratar a situação de várias empresas formalmente distintas, que operam como uma única entidade empresarial. Nesse caso, todos os CNPJs envolvidos devem ser responsabilizados pelo passivo fiscal do devedor original, conforme já abordamos neste veículo informativo.1

Cada bloco fático de ilicitude (isto é, simulação e lesão a credores) demanda um específico modelo normativo de repressão. 

Para lidar com a dilapidação patrimonial, deve o Fisco adotar os institutos da fraude contra credores e à execução, e não da desconsideração da personalidade jurídica.

A desconsideração da personalidade jurídica possui requisitos próprios de aplicabilidade, distintos daqueles exigidos para a configuração da fraude contra credores ou da fraude à execução

Além disso, a desconsideração da personalidade jurídica atinge sócios e/ou administradores, enquanto a fraude contra credores ou à execução atinge terceiros alheios à pessoa jurídica.

Conforme recente julgado da 4ª turma do STJ, “o instituto da desconsideração da personalidade jurídica, previsto no art. 50 do CC/02, não se presta para atribuir responsabilidade patrimonial a terceiros que não têm qualquer espécie de vínculo jurídico com as sociedades atingidas, ainda que se cogite da ocorrência de confusão ou desvio patrimonial”. Em tal julgamento, asseverou-se que “o reconhecimento da fraude contra credores pressupõe o ajuizamento de ação pauliana (CC/2002, art. 161), afigurando-se descabido declará-la em caráter incidental, no bojo de feito executivo e com amparo em normas jurídicas que disciplinam instituto diverso” (REsp 1.792.271/SP, sessão de 1/4/2025).

Por isso, não é possível aplicar a desconsideração da personalidade jurídica para reprimir a fraude contra credores ou à execução. 

Relativamente à fraude à execução fiscal (art. 185 do CTN), há a presunção de fraude na alienação de bens por empresa que tenha débitos inscritos em dívida ativa, desde que o devedor não tenha reservado patrimônio para quitar a dívida.

Já a fraude contra credores (art. 158 do CC) deve ser alegada pelo Fisco na hipótese de o devedor se alienar o seu patrimônio antes da inscrição do débito em dívida ativa, a demandar o manejo da ação pauliana (vide AgRg no REsp 539.604/SP, julgado pela 2ª turma do STJ em 29/6/06).

Ambos os institutos têm o efeito de questionar os negócios jurídicos subjacentes à fraudulenta transmissão patrimonial, o que expõe aqueles que receberam os bens à responsabilização patrimonial, no limite do valor dos bens recebidos.

Além disso, é incabível invocar o art. 124, inciso I, do CTN para reprimir atos de dilapidação patrimonial, com base no argumento de que os destinatários de tais atos teriam “interesse comum na situação que constitua o fato gerador”.

Primeiro, porque “feriria a lógica jurídico-tributária a integração, no polo passivo da relação jurídica, de alguém que não tenha tido qualquer participação na ocorrência do fato gerador da obrigação”, conforme reconheceu a Primeira Seção do STJ no âmbito do REsp 884.845/SC, que delimitou a amplitude do mencionado art. 124.

Segundo, por imposição constitucional, na medida em que entendimento diverso ofenderia: a (i) razoabilidade e a proporcionalidade, uma vez que permitiria que alguém que recebeu, por exemplo, R$ 100.000,00, fosse compelido a responder solidariamente por um débito de R$ 10.000.000,00, sujeitando todo o seu patrimônio, presente e futuro, a uma obrigação de terceiro; (ii) o direito de propriedade; (iii) o não confisco; (iv) a segurança jurídica; e (v) a própria dignidade humana (diante da invalidação da vida cível do particular).

Por isso, não é possível responsabilizar solidariamente os destinatários dos atos de dilapidação patrimonial, na medida em que a responsabilização deve ser limitada ao valor dos bens irregularmente transmitidos, o que deve respeitar o rito procedimental da fraude contra credores (ação pauliana) ou da fraude à execução (art. 185 do CTN), a depender do status do passivo no momento das respectivas transferências.

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1 https://www.migalhas.com.br/depeso/410853/grupos-economicos-e-desconsideracao-da-personalidade-juridica

Aurélio Longo Guerzoni
Sócio do Guerzoni Advogados, com atuação em direito tributário desde 2008. É especialista (2013) e mestre (2020) em direito tributário pela FGV/SP.

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