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Enunciado 70 da JFES: Impactos no direito ao benefício assistencial

Análise crítica do Enunciado 70, que relativiza a presunção de miserabilidade no BPC, afrontando a dignidade humana e fragilizando o mínimo existencial.

7/7/2025

No dia 27/6/25, as turmas recursais Federais do Espírito Santo reuniram-se em sessão administrativa conjunta, ocasião em que foi instalada a primeira reunião da Comissão Permanente de Jurisprudência, instituída pela resolução conjunta TRF-2 2/25, com o objetivo de promover a uniformização de entendimentos jurisprudenciais nas matérias cível, criminal, previdenciária, assistencial e processual.

No âmbito dessa reunião, restou aprovado o enunciado 70, que dispõe acerca do critério de aferição de renda previsto no § 3º do art. 20 da lei 8.742/1993 (LOAS - lei orgânica da assistência social):

Para a adequada compreensão do critério previsto na legislação, impõe-se a análise da ratio legis delineada nos anais do Congresso Nacional à época de sua promulgação.

1. Contexto histórico

A lei que institui a organização da assistência social teve origem no PL 4.100/1993, de autoria da deputada Federal Fátima Pelaes, elaborado em atendimento a uma solicitação do então ministro de estado do Bem-Estar Social, Jutahy Magalhães Júnior. Referida proposta legislativa fundamentou-se na Constituição Federal de 1988, recentemente promulgada à época, a qual destinou seção específica à Assistência Social, evidenciando sua relevância no ordenamento jurídico pátrio.

A ratio legis do projeto manifesta-se na concepção da assistência social como um direito do cidadão e um dever do Estado, com o propósito de assegurar a provisão dos mínimos sociais, garantindo o atendimento das necessidades humanas fundamentais. Nesse sentido, o legislador visou a instituir um programa efetivo de redistribuição de renda, em conformidade com os princípios constitucionais da Justiça social e da dignidade da pessoa humana.

A relatora, em suas manifestações registradas nos anais do Congresso Nacional durante os debates em plenário, enfatizou que o benefício assistencial consubstancia-se em verdadeiro direito subjetivo do cidadão, não podendo ser concebido como simples liberalidade estatal.

Desde a sua promulgação, a lei 8.742/1993 estabelece que o critério a ser observado para a concessão do benefício ao idoso com idade igual ou superior a 65 anos, bem como à pessoa com deficiência, refere-se à renda familiar per capita, e não necessariamente à configuração de situação de miserabilidade extrema.

No decorrer do processo legislativo, intensos foram os debates em torno do critério de renda. Destaca-se, nesse contexto, a emenda apresentada pelo então deputado Aloízio Mercadante, a qual propunha a elevação do parâmetro para ½ salário mínimo per capita, evidenciando a realidade de uma expressiva parcela da população brasileira que sobrevive com até dois salários mínimos, montante insuficiente para atender às suas necessidades básicas. Esse entendimento foi igualmente acolhido pelo deputado Eduardo Jorge, o qual destacou que a ratio legis está intrinsecamente vinculada ao poder de compra do cidadão, razão pela qual o critério de aferição previsto na norma deve recair sobre a renda, e não sobre a titularidade de bens ou posse.

Não obstante a manutenção do critério de ¼ do salário mínimo per capita, verifica-se que, em nenhum momento dos debates legislativos, houve qualquer referência à consideração de bens patrimoniais do cidadão como requisito para a concessão do benefício. Restou expressamente consignado que o benefício assistencial possui natureza transitória, e não permanente, uma vez que admite a cessação caso não permaneçam preenchidos os critérios legais. Desse modo, a condição do requerente deve ser aferida no momento do requerimento, com foco exclusivo em seu poder de compra atual.

2. A (in)constitucionalidade do § 3º do art. 20 da lei 8.742/1993?

Em 2001, ao apreciar a ADIn 1.232-1/DF, o STF declarou a constitucionalidade do art. 20, § 3º, da LOAS. Posteriormente, em 2009, a matéria voltou a ser debatida no STJ, por meio do REsp 1.112.557/MG (2009/0040999-9), sob a relatoria do ministro Napoleão Nunes Maia Filho, que, em seu voto, asseverou ser indispensável interpretar o referido dispositivo legal de forma a assegurar a proteção ampla do cidadão em situação de vulnerabilidade social e econômica.

O referido julgado, que foi representado pelo Tema 185 do STJ demonstra que a flexibilização deve ocorrer quando a renda se tornar superior ao critério exigido, ou seja, ¼ de renda per capita, sendo a miserabilidade absoluta quando a renda for inferior ao critério estabelecido:

Tal entendimento encontra respaldo em jurisprudência já consolidada no STJ, segundo a qual o critério de aferição da renda mensal previsto no § 3o. do art. 20 da lei 8.742/1993 deve ser tido como um limite mínimo, um quantum considerado insatisfatório à subsistência da pessoa portadora de deficiência ou idosa, não impedindo, contudo, que o julgador faça uso de outros elementos probatórios, desde que aptos a comprovar a condição de miserabilidade da parte e de sua família (REsp. 841.060/SP, rel. min. MARIA THEREZA DE ASSIS MOURA, DJU 25/6/2007).

No ano de 2013, o STF procedeu ao julgamento do RE 567.985 (Tema 27), proveniente do Estado de Mato Grosso, com o objetivo de reanalisar a constitucionalidade do § 3º do art. 20 da lei 8.742/1993. Essa revisão decorreu do fato de que, em decisões monocráticas, a Corte havia passado a reconsiderar posicionamentos anteriores que atribuíam caráter de intransponibilidade aos critérios objetivos fixados na norma.

O STF utilizou o termo intransponibilidade para designar, em termos jurídicos, a ideia de algo que não pode ser superado, transposto ou relativizado - representando um verdadeiro obstáculo absoluto. A ratio decidendi firmada, portanto, orientou-se justamente a afastar tal rigidez, permitindo a análise de rendas superiores ao critério mínimo legal, desde que configurada situação de vulnerabilidade social.

O voto condutor, proferido pelo ministro Gilmar Mendes, declarou a inconstitucionalidade parcial, sem pronúncia de nulidade, do art. 20, § 3º, da lei 8.742/1993. Tal entendimento fundamentou-se na premissa de que a simples anulação do critério legal agravaria o estado de inconstitucionalidade, ao retirar do ordenamento parâmetro mínimo de aferição da miserabilidade.

Esse posicionamento foi acompanhado pelo ministro Marco Aurélio, que pontuou:

Em síntese, o ministro Marco Aurélio advertiu que, caso o STF declarasse totalmente inconstitucional o critério de renda estabelecido no § 3º do art. 20 da LOAS sem apresentar outro referencial, instaurar-se-ia um vácuo normativo, privando o sistema de parâmetro objetivo para aferição da miserabilidade.

Com o intuito de afastar qualquer traço de ativismo judicial, o ministro Ricardo Lewandowski enfatizou que, na realidade, o Congresso Nacional instituiu uma política pública; seja ela boa ou má, trata-se de uma política pública legítima. Ressaltou que tais políticas são definidas pelo Congresso em conjunto com o Poder Executivo, não competindo, em princípio, ao Poder Judiciário interferir em sua formulação ou estabelecer políticas públicas substitutivas. Destacou, ainda, que a política foi delineada precisamente pela lei 8.742/1993, em seu art. 20, § 3º, razão pela qual deveria ser respeitada, afastando-se a hipótese de declaração de nulidade do dispositivo

O leading case do Tema 27 do STF tratava da concessão do benefício assistencial a idoso que residia com sua companheira, a qual percebia renda equivalente a um salário mínimo, sem que essa situação configurasse hipótese de exclusão expressamente prevista em lei. Ressalta-se que o debate, em todo momento, manteve-se restrito à análise da renda familiar per capita, preservando-se, assim, o critério estabelecido no art. 20, § 3º, da lei 8.742/1993 (LOAS).

3. Tema 122 da TNU e a presunção relativa contida no art. 20, § 3º da lei 8.742/1993

A TNU - Turma Nacional de Uniformização de Jurisprudência, ao fixar a tese do Tema 122, consolidou que a renda familiar per capita inferior a ¼ do salário mínimo configura apenas uma presunção relativa de miserabilidade, admitindo a produção de prova em sentido contrário para afastar tal condição. Esse entendimento flexibilizou o critério objetivo estabelecido no art. 20, § 3º, da LOAS, permitindo ao julgador, no exame concreto, investigar elementos complementares (como padrão de moradia, eventual ajuda de familiares, qualidade de bens) para aferir a efetiva vulnerabilidade socioeconômica do requerente.

Contudo, essa orientação do Tema 122, embora fundada na ideia de seletividade e complementaridade da assistência social, acabou por introduzir margem para interpretações restritivas que podem colocar em risco a garantia do mínimo existencial, princípio estruturante da seguridade social e expressão da dignidade da pessoa humana. A análise detalhada do contexto social do beneficiário, em situações de renda formalmente baixa, pode se converter em verdadeiro óbice ao acesso ao benefício assistencial, impondo ao vulnerável um ônus desproporcional de provar a absoluta carência de qualquer recurso - inclusive forçando a dilapidação de seu patrimônio mínimo de subsistência.

Em contraste, o Tema 27 do STF (RE 567.985/MT) reconheceu que o critério objetivo de renda não poderia funcionar como um limite intransponível, mas tampouco autorizou sua descaracterização total. O Supremo declarou a inconstitucionalidade parcial sem pronúncia de nulidade do § 3º do art. 20 da LOAS para garantir flexibilidade protetiva - isto é, permitir a concessão do benefício mesmo acima do critério legal, quando comprovada vulnerabilidade -, mas não para restringir direitos abaixo desse piso. Assim, a ratio decidendi do STF visou ampliar a proteção, não restringi-la, preservando o parâmetro mínimo como expressão do mínimo existencial.

De igual modo, o Tema 185 do STJ reforçou a função do critério de renda como elemento probatório qualificado e suficiente para presumir a hipossuficiência do beneficiário, admitindo apenas a análise complementar de provas quando a renda excedesse o limite de ¼ do salário mínimo. Portanto, para o STJ, a renda inferior ao piso legal estabelece uma presunção praticamente robusta de necessidade.

O IRDR 12 do TRF-4, em linha semelhante, reafirmou que a renda abaixo de ¼ do salário mínimo deve gerar presunção de miserabilidade, afastável apenas em situações absolutamente excepcionais e sob provas contundentes de padrão de vida incompatível com a situação de vulnerabilidade. Tal entendimento reforça a função do critério objetivo como baliza de segurança jurídica e como garantia mínima de proteção social.

O Tribunal Regional Federal da 2ª Região tem firmado entendimento no sentido de que as teses estabelecidas pelo STF, notadamente nos Temas 27 e 312, assim como as teses consagradas pelo STJ, a exemplo do Tema 185, conferem margem de flexibilização ao critério objetivo de renda somente nos casos em que a renda familiar per capita ultrapassa o limite legal, permitindo ao julgador valorar outros elementos probatórios que evidenciem situação de vulnerabilidade concreta do núcleo familiar:

O juiz Federal do Tribunal Regional Federal da 2ª Região, Dr. Marcello Enes Figueira, corrobora que a ratio decidendi do Tema 27 do STF visa à ampliação da proteção social, e não à sua restrição. Nesse sentido, ressalta que, ainda que a renda familiar per capita ultrapasse o limite legal previsto, é possível reconhecer a condição de miserabilidade a partir de outros elementos probatórios. Acrescenta, por fim, que a mera existência de bens ou condições mínimas de moradia não pode, por si só, afastar o direito ao benefício assistencial pleiteado:

Verifica-se que o julgado aproxima-se da ratio legis ao consolidar entendimento baseado no critério objetivo da renda, afastando a análise fundada exclusivamente nas posses do requerente e vedando juízos de valor pautados em meras suposições. No que concerne à distribuição do ônus da prova nos processos relativos ao BPC - Benefício de Prestação Continuada, restou assentado que, uma vez comprovada a renda familiar per capita inferior a ¼ do salário mínimo, compete ao autor apenas a demonstração dessa condição objetiva, incumbindo ao ente previdenciário ou ao julgador, caso pretendam elidir a presunção de miserabilidade, apresentar elementos probatórios concretos que evidenciem a existência de rendimentos não declarados ou de padrão de vida incompatível com a vulnerabilidade alegada. Tal diretriz decorre da interpretação teleológica do art. 20, § 3º, da lei 8.742/1993, em harmonia com o princípio da dignidade da pessoa humana, afastando a imposição ao hipossuficiente do ônus excessivo de comprovar integralmente a sua situação de necessidade, sobretudo diante de presunção legal instituída para resguardar a proteção social mínima.

Neste cenário, destaca-se o Tema 187 da TNU, mais recente, que atua como verdadeiro mitigador dos efeitos amplos do Tema 122. O Tema 187 fixou que, uma vez reconhecido o requisito econômico na via administrativa (renda per capita inferior a ¼ do salário mínimo), não cabe ao Judiciário exigir nova avaliação social para fins de comprovação da miserabilidade. Ou seja, nesses casos, o parâmetro objetivo se torna suficiente e vinculante, evitando que a presunção de hipossuficiência seja desconstituída com base em elementos secundários ou especulativos acerca do modo de vida do requerente.

Portanto, ao conjugar esses precedentes, constata-se que o Tema 122, ao relativizar em excesso a presunção de vulnerabilidade, se afasta do espírito protetivo da Constituição Federal e da função garantista do benefício assistencial. Essa relativização, todavia, encontra limites no Tema 187, que corrige sua abrangência ao reafirmar a suficiência do critério objetivo quando já validado administrativamente, impedindo revisões judiciais que imponham ao hipossuficiente a necessidade de nova exposição de sua condição de extrema pobreza.

4. Conclusão

À luz do percurso histórico, legislativo e jurisprudencial analisado, resta evidente que o enunciado 70 das turmas recursais Federais do Espírito Santo implica retrocesso no paradigma de proteção social constitucionalmente assegurado. Ao permitir que o julgador afaste a presunção de miserabilidade mesmo diante de renda familiar per capita inferior a ¼ do salário mínimo, atribuindo relevância a elementos de natureza patrimonial ou meramente especulativa, o enunciado acaba por deslocar do Estado para o hipossuficiente o ônus de comprovar sua própria vulnerabilidade, vulnerando o princípio da dignidade da pessoa humana e o núcleo essencial do mínimo existencial.

Tal diretriz, se aplicada de forma irrestrita, potencializa a imposição de barreiras indevidas ao acesso ao benefício assistencial, transformando o que deveria ser um instrumento de tutela mínima em um labirinto probatório que ignora a presunção legal destinada a facilitar o exercício de direitos fundamentais. Em contraste, precedentes paradigmáticos do STF (Tema 27), do STJ (Tema 185) e do TRF4 (IRDR 12) firmaram entendimento de que o critério objetivo da renda, embora não absoluto, constitui referência mínima protetiva, devendo ser relativizado apenas em hipóteses excepcionais, mediante prova robusta de fraude ou simulação de renda.

Ao ignorar esses marcos, o enunciado nº 70 assume contornos de afronta à ordem constitucional, pois subverte a ratio legis da lei orgânica da assistência social e compromete a efetividade da política pública de combate à pobreza. Assim, torna-se imperiosa a revisão crítica de sua aplicação, a fim de resgatar o caráter humanitário do benefício assistencial, preservando a presunção de hipossuficiência sempre que atendido o critério objetivo, em prestígio à dignidade da pessoa humana e à solidariedade social que inspiram a Constituição de 1988.

Catarine Mulinari Nico
Advogada, especialista em Direito Previdenciário e em Direitos Humanos pela PUC/RS. Diretora científica Adjunta do IBDP.

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