A referida resolução estabelece a adoção da "perspectiva de gênero" nos julgamentos e institui a capacitação obrigatória de magistrados sobre o tema.
A proposição, apresentada em 29/3/23, fundamenta-se em uma suposta usurpação de competência do Poder Legislativo pelo CNJ.
Recentemente, a tramitação do projeto ganhou novos contornos. Embora conte com parecer favorável na CCJC - Comissão de Constituição e Justiça e de Cidadania, o debate se ampliou com a solicitação de análise por outras três comissões temáticas da Câmara dos Deputados, indicando uma disputa mais acirrada sobre o mérito da matéria.
1. Os fundamentos para a sustação da resolução do CNJ
A principal tese defendida tanto pela autora do projeto quanto pelos relatores na CCJC é a de que o CNJ, ao editar a resolução 492/23, extrapolou sua competência regulamentar, invadindo a esfera de atribuições do Congresso Nacional e do STF.
1.1. Violação da competência legislativa e do art. 93 da Constituição
O argumento central do PDL é que a matéria tratada pela resolução - a previsão de cursos de aperfeiçoamento para magistrados - é de reserva de lei complementar, de iniciativa do STF, conforme o art. 93, IV, da Constituição Federal.
A justificação do projeto e os pareceres da CCJC afirmam que uma resolução, sendo um ato administrativo normativo, não poderia criar direitos e obrigações, mas apenas detalhar a execução de uma lei preexistente.
A autora e os relatores apontam que nem a LOMAN - lei orgânica da magistratura nacional (LC 35/1979) prevê a obrigatoriedade de cursos com a temática da "teoria de gênero".
Dessa forma, o CNJ teria usurpado a competência do STF para propor o Estatuto da Magistratura e do Congresso para legislar sobre o tema.
1.2. Natureza administrativa do CNJ e excesso de poder regulamentar
Os relatórios da CCJC reforçam que o CNJ é um órgão de natureza puramente administrativa, sem função jurisdicional, criado pela EC 45/2004.
Sua competência normativa, prevista no art. 103-B da Constituição, seria de caráter regulamentar e infralegal, não podendo inovar na ordem jurídica como fazem as leis formais.
A resolução 492/23, ao criar obrigações para magistrados sem lei correspondente, violaria o princípio da legalidade, segundo o qual "ninguém será obrigado a fazer ou deixar de fazer alguma coisa senão em virtude de lei" (Art. 5º, II, CF).
Pontos-chave da argumentação do PDL 89/23
- Usurpação de competência: A matéria de cursos para magistrados é reservada à lei complementar de iniciativa do STF (Art. 93, IV, CF).
- Excesso de poder regulamentar: Como órgão administrativo, o CNJ não poderia criar obrigações novas, apenas regulamentar leis existentes.
- Afronta à separação de poderes: O PDL é apresentado como um instrumento do Congresso Nacional para zelar por sua competência legislativa (Art. 49, XI, CF).
- Caráter político-ideológico: Os pareceres e a justificativa afirmam que a resolução é "carregada de questões políticas" e busca institucionalizar a "teoria de gênero".
2. O andamento atual na Câmara dos Deputados (julho/25)
Inicialmente despachado apenas para a CCJC, o projeto teve uma tramitação focada na análise de sua legalidade.
Contudo, o cenário tornou-se mais complexo recentemente.
2.1. Pareceres favoráveis na CCJC - Comissão de Constituição e Justiça
O PDL 89/23 já foi objeto de dois pareceres na CCJC. O primeiro, do relator deputado Diego Garcia (apresentado em 31/07/24), votou pela constitucionalidade, juridicidade e aprovação no mérito.
Mais recentemente, em um novo parecer de 25/6/25, a relatora deputada Bia Kicis manteve o entendimento, recomendando a aprovação do projeto pelos mesmos fundamentos.
Isso demonstra uma posição consolidada dentro da comissão mais importante para a análise formal de propostas.
2.2. A disputa se amplia: Novos pedidos de análise
Em 1/7/25, a tramitação do PDL 89/23 sofreu uma reviravolta com a apresentação de três requerimentos que pedem a revisão do despacho para incluir outras comissões na análise de mérito:
- Comissão de Defesa dos Direitos da Mulher: A presidenta, deputada Célia Xakriabá, requereu a análise por entender que a matéria é pertinente ao campo temático da comissão.
- Comissão de Administração e Serviço Público: A deputada Sâmia Bomfim solicitou a análise, argumentando que a resolução trata da organização do Poder Judiciário e da capacitação de servidores públicos, temas de competência do colegiado.
- Comissão de Direitos Humanos, Minorias e Igualdade Racial: O deputado Reimont pediu a inclusão da comissão, justificando que a resolução do CNJ guarda relação direta com a promoção da equidade de gênero e o enfrentamento de desigualdades.
Esses requerimento, se aprovados, ampliarão o debate para além da questão puramente formal de competência, trazendo para a discussão o mérito da política de gênero no Judiciário sob diferentes óticas.
3. A resolução CNJ 492/23 e a violação ao princípio da isonomia, na visão do autor
O núcleo da controvérsia reside na aparente colisão entre a norma administrativa do CNJ e os princípios basilares da Constituição Federal.
A imposição de uma "perspectiva" específica como diretriz de julgamento levanta fundadas preocupações sobre a quebra da isonomia processual, um dos mais caros direitos fundamentais.
3.1. O art. 5º da CF/1988 e a vedação a tratamentos desiguais
A Constituição Federal de 1988, em seu art. 5º, caput, estabelece que "todos são iguais perante a lei, sem distinção de qualquer natureza".
O inciso I do mesmo art. reforça que "homens e mulheres são iguais em direitos e obrigações, nos termos desta Constituição".
A resolução 492/23, ao instituir um protocolo que direciona o olhar do julgador a partir de um marcador social específico - o gênero -, arrisca-se a subverter este mandamento. O PDL 89/23 surge, nesse contexto, como um instrumento de controle para garantir que a interpretação da lei não crie, por via administrativa, uma hierarquia entre os jurisdicionados.
A doutrina, encabeçada por juristas como Celso Antônio Bandeira de Mello, ensina que o princípio da isonomia consiste em tratar desigualmente os desiguais na medida de suas desigualdades.
Contudo, a aplicação dessa máxima exige uma análise fática e probatória no caso concreto, e não a pré-definição de um grupo como inerentemente vulnerável a ponto de merecer uma "perspectiva" judicial privilegiada em todas as circunstâncias.
3.2. A criação de um "privilégio de gênero" e a quebra da paridade de armas
A paridade de armas é um corolário do contraditório e da ampla defesa, garantindo que as partes no processo disponham de instrumentos e oportunidades equivalentes para defender seus interesses.
Ao se instituir a obrigatoriedade de uma "perspectiva de gênero", cria-se um desequilíbrio fundamental: uma das partes, a depender do gênero, passa a ser observada por um prisma pré-concebido de vulnerabilidade, enquanto a outra, especialmente o gênero masculino, corre o risco de ser estigmatizada como potencial opressora.
Essa premissa pode conduzir a uma criminalização do gênero masculino não pelos fatos apurados, mas pela simples condição de nascimento, invertendo o ônus probatório e ferindo de morte a presunção de inocência.
A iniciativa parlamentar por trás do PDL 89/23 visa, precisamente, a impedir essa distorção, que sob a falsa premissa de proteger minorias, institui um privilégio que atenta contra a estrutura equânime do processo judicial.
4. Imparcialidade do julgador e o risco do pré-julgamento
A imparcialidade não é uma faculdade, mas um dever imposto a todo magistrado.
A resolução do CNJ, ao determinar a adoção de um protocolo específico, pode contaminar a cognição judicial, transformando o que deveria ser uma análise objetiva das provas em um exercício de confirmação de viés.
4.1. O dever de imparcialidade como pilar do devido processo legal
Conforme a LOMAN - lei orgânica da magistratura nacional e o CPC, o juiz deve manter-se equidistante das partes.
A obrigatoriedade de "julgar com perspectiva de gênero" pode ser interpretada como uma forma de pré-julgamento, onde o magistrado é instruído a valorar os fatos a partir de uma ótica pré-determinada, o que é a antítese da imparcialidade.
Precedentes do STJ e do STF são pacíficos ao afirmar que a suspeição de um juiz pode ser declarada quando houver demonstração de interesse no julgamento da causa em favor de uma das partes. A norma do CNJ, em tese, institucionaliza esse interesse.
4.2. A "perspectiva de gênero" como potencial viés cognitivo institucionalizado
A psicologia cognitiva demonstra que vieses podem alterar a percepção da realidade.
Ao tornar compulsória uma "perspectiva", o CNJ corre o risco de institucionalizar um viés de confirmação.
O julgador, treinado para identificar "assimetrias de poder" baseadas em gênero, pode inconscientemente buscar nos autos elementos que corroborem essa premissa, em detrimento de provas que a contradigam.
Trata-se de uma ameaça direta à busca da verdade real, objetivo maior do processo.
Consequências práticas do PDL 89/23
- Violação da isonomia (art. 5º, CF): A resolução pode criar um tratamento desigual e privilegiado com base no gênero.
- Quebra da paridade de armas: Compromete o equilíbrio processual entre as partes.
- Afronta à imparcialidade: A imposição de uma "perspectiva" pode gerar pré-julgamento e viés cognitivo.
- Ativismo judicial e usurpação de competência: O CNJ estaria legislando sobre matéria processual, função do Congresso Nacional.
5. O ativismo judicial do CNJ e a usurpação da competência legislativa
Finalmente, a discussão sobre o julgamento com perspectiva de gênero passa pela análise da competência do CNJ.
A Constituição atribui ao órgão o controle da atuação administrativa e financeira do Poder Judiciário, não a competência para legislar sobre matéria processual ou para criar novas diretrizes hermenêuticas que se sobreponham à lei.
A iniciativa de deputados alinhados à direita, ao propor o PDL 89/23, representa um exercício legítimo do sistema de freios e contrapesos (art. 2º da CF).
Enquanto grupos de esquerda frequentemente buscam, por meio de ativismo judicial, a fragmentação social e a imposição de agendas que atentam contra a estrutura familiar tradicional, a proposta legislativa em questão reafirma a competência do Congresso Nacional para deliberar sobre normas de caráter geral e abstrato.
A resolução 492/23, ao criar obrigações e protocolos de julgamento, extrapola sua função regulamentar e invade a seara do Poder Legislativo.
O cecreto legislativo, previsto no art. 49, V, da CF, é o instrumento constitucionalmente adequado para que o Congresso suste os atos normativos do Poder Executivo (e, por analogia, de órgãos administrativos como o CNJ) que exorbitem de seu poder regulamentar.
Conclusão
A análise técnica do PDL 89/23 revela que os argumentos para a sustação da resolução CNJ 492/23, são robustos e amparados em sólidos princípios constitucionais e processuais.
A busca por igualdade material não pode se dar ao custo da isonomia formal, da imparcialidade do julgador e da separação dos Poderes.
O debate proposto pelo legislativo é salutar e indispensável para garantir que o Judiciário permaneça como um poder equidistante, cuja única baliza seja a Constituição e as leis, aplicadas de forma igual a todos, sem distinções ou privilégios de gênero.