Dois pesos e nenhuma medida: a seletividade da litigância predatória
Se a litigância predatória é definida como o ajuizamento de ações infundadas, com ausência de documentos essenciais, uso de petições genéricas ou replicadas, então é preciso perguntar com franqueza:
Por que essa mesma régua não se aplica às contestações apresentadas por grandes instituições financeiras?
Bancos recorrem a escritórios especializados que desenvolvem defesas padronizadas, copiadas e coladas de modelo, que não enfrentam o mérito, trazem documentos incompletos ou irrelevantes e, muitas vezes, sequer mencionam os fatos da petição inicial. Se isso não é ausência de fundamento, o que seria?
Não há ali diligência jurídica. Há engenharia retórica.
Há uma assimetria no olhar judicial: enquanto o consumidor que ajuíza várias ações pode ser tachado como “litigante contumaz”, o banco que contesta centenas de processos com petições genéricas é visto como “eficiente”.
A petição repetitiva do cidadão vira indício de má-fé. A petição genérica do banco é tida como racionalização jurídica.
Esse filtro institucional revela uma distorção grave: a litigância predatória não é combatida como prática jurídica, mas como perfil social.
Na prática, o Judiciário parece mais preocupado com o volume do que com a verdade. Uma petição com cinquenta páginas, assinada por um escritório renomado, recebe leitura respeitosa, mesmo que contenha apenas frases padrão e jurisprudência desconexa.
Enquanto isso, uma inicial bem fundamentada, mas enxuta e apresentada por um advogado popular, é tratada com reserva, vista com suspeita - como se a pobreza redacional fosse sinal de estratégia oportunista.
A litigância predatória, então, passa a ser uma questão estética. Quem pode parecer sério, pode litigar sem conteúdo. Quem não pode pagar por aparência, será medido por rigor.
Se o CNJ quer combater a litigância predatória com honestidade, precisa olhar para quem tem poder de litigar sem consequências. Bancos que recorrem com sistematicidade, contestam sem enfrentar os fatos, impõem cláusulas abusivas e sobrecarregam o Judiciário com judicialização industrial - esses atores precisam estar no radar regulatório.
A omissão nesse sentido compromete o princípio da isonomia, falando nisso, onde está a isonomia?
Quando o sistema trata o grande com reverência e o pequeno com suspeita, já não estamos diante de um Judiciário técnico, mas de um Judiciário cúmplice - ainda que inconscientemente - das desigualdades que jurou combater.
A isonomia não é apenas um princípio abstrato. Ela exige compromisso ativo com a realidade dos sujeitos que acessam o sistema de justiça. E realidade, no Brasil, é sinônimo de desigualdade - material, simbólica, jurídica. Tratar todos de forma igual não é justiça; é miopia institucional. O Judiciário que se pretende técnico deve abandonar a neutralidade aparente e reconhecer que a equidade nasce da coragem de tratar os desiguais, desigualmente, na medida das suas desigualdades.
No entanto, o que vemos é um sistema que reverencia os grandes litigantes - bancos, corporações, instituições com departamentos jurídicos robustos - e que examina com desconfiança o pleito do pequeno, o argumento do consumidor, o grito do vulnerável. A contagem de páginas passa a valer mais que o enfrentamento do mérito, e o poder econômico se traduz em legitimidade argumentativa, mesmo que o conteúdo seja raso ou desviado.
É preciso romper com essa lógica de privilégio processual. O papel do Judiciário não é apenas aplicar normas, mas fazer justiça em seu sentido mais radical: proteger o que é frágil, equilibrar o que é distorcido, reparar o que foi violado. Quando a presunção de boa-fé é invertida - favorecendo o forte e punindo o fraco - deixamos de ter um tribunal de justiça e passamos a ter um gestor de assimetrias.
A litigância predatória, portanto, não se mede pelo número de ações ajuizadas ou por quem peticiona mais. Ela se mede pelo impacto que essa judicialização causa na sociedade, e pela forma como o Judiciário escolhe enxergar.