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Preclusão pro judicato e matérias de ordem pública na execução civil

O artigo analisa o uso indevido da preclusão pro judicato em matérias de ordem pública no processo executivo e defende sua inaplicabilidade diante de vícios insanáveis.

14/7/2025

O processo executivo tem sido palco de debates intensos quanto ao alcance e à flexibilidade dos princípios do contraditório e da preclusão, especialmente diante da natureza das matérias que nele se discutem. Em meio a essa discussão, tornou-se cada vez mais comum - e preocupante - a prática de juízos de execução que rejeitam exceções de pré-executividade ou petições defensivas com base em suposta preclusão temporal ou consumativa, mesmo quando se trata de matérias de ordem pública, como ausência de título executivo, nulidade da citação ou prescrição da pretensão executiva.

Esse fenômeno revela uma incompreensão técnica do papel do magistrado na fase executiva, confundindo o regime da preclusão aplicável às partes com o dever permanente do juízo de zelar pela higidez do processo. Em muitos casos, o julgador invoca o princípio da estabilidade das decisões ou o decurso do tempo como justificativas para não enfrentar questões que, por sua natureza, escapam à preclusão. Esse raciocínio, embora sedutor sob o prisma da efetividade e da segurança jurídica, colide com preceitos estruturais do processo civil contemporâneo e pode acarretar nulidades insanáveis.

A preclusão, como ensina a doutrina processual, é fenômeno que atinge exclusivamente os sujeitos do processo, jamais o próprio Estado-juiz. Trata-se da perda de uma faculdade ou poder processual pela inércia da parte dentro do prazo legal. A atuação do magistrado, porém, quando voltada à tutela de matéria de ordem pública, jamais se submete à lógica da preclusão. Não se trata de faculdade, mas de dever funcional, muitas vezes de índole constitucional, como se vê nos casos de competência absoluta, nulidade de citação ou inexistência de pressuposto de constituição e desenvolvimento válido do processo. Negar a apreciação de tais matérias sob o pretexto de preclusão representa, além de equívoco técnico, verdadeira denegação de justiça.

É necessário destacar que o processo executivo não possui estrutura estática. Sua dinâmica exige contínua fiscalização da validade do título, da legitimidade das partes e da eficácia dos atos processuais. A ausência de título executivo, por exemplo, não constitui vício sanável por decurso do tempo: trata-se de pressuposto de admissibilidade da própria execução, cuja inexistência impõe o reconhecimento ex officio da nulidade. O mesmo se aplica à prescrição, quando considerada matéria de ordem pública, como ocorre na hipótese da prescrição intercorrente nos termos do art. 40 da lei de execuções fiscais ou mesmo da prescrição da pretensão executiva fundada em título extrajudicial, quando ultrapassado o prazo legal sem que tenha ocorrido causa interruptiva válida.

A jurisprudência do STJ é pacífica em reconhecer que matérias de ordem pública podem ser conhecidas a qualquer tempo e grau de jurisdição, independentemente de provocação da parte. A tentativa de submeter tais temas à preclusão revela um ativismo processual às avessas: ao invés de garantir a validade do processo, o julgador escolhe preservar uma aparência de normalidade processual, mesmo diante de vícios insanáveis.

Trata-se de prática que favorece a eficiência em detrimento da legalidade, invertendo as prioridades do devido processo legal. É justamente nas fases finais do processo - quando a constrição já se consolidou e o patrimônio do executado está efetivamente ameaçado - que o juiz deve redobrar a atenção quanto à higidez da execução. A rejeição sumária de petições defensivas sob o argumento de preclusão, sem análise efetiva do mérito, é prática que compromete não apenas os direitos do executado, mas a legitimidade da própria execução.

Vale observar, ainda, que o argumento da preclusão pro judicato, embora não receba esse nome nos termos do CPC, vem sendo utilizado na prática como uma forma velada de blindar decisões judiciais equivocadas ou incompletas. Ao afirmar que determinada matéria já “foi enfrentada” ou que o momento oportuno para sua análise “já passou”, o julgador incorre em perigosa formalização da injustiça. A função jurisdicional não é um rito imune à revisão: ao contrário, o processo civil contemporâneo exige constante correção de rumos, sobretudo quando o que está em jogo são direitos fundamentais como a propriedade e o devido processo legal.

Não se trata, evidentemente, de chancelar comportamentos procrastinatórios ou permitir a rediscussão de toda e qualquer matéria já apreciada. O que se defende é que, quando se trata de matéria de ordem pública - e, portanto, insuscetível de convalidação pelo decurso do tempo -, o juiz deve agir, independentemente da provocação da parte, para reconhecer o vício. Isso é especialmente relevante no campo da execução, onde é frequente que o executado, por desconhecimento ou ausência de defesa técnica adequada, deixe de apontar vícios relevantes no momento inicial, sem que isso implique preclusão para o juízo.

É preciso resgatar a função garantista da jurisdição e compreender que a efetividade do processo não pode se sobrepor à sua legalidade. A execução não pode se tornar um território de imunidade processual, onde vícios são tolerados em nome da celeridade. O papel do juiz da execução não é apenas o de fiscal do cumprimento, mas o de garantidor da legalidade de todo o procedimento. Preclusão para o juiz, em matéria de ordem pública, é dogma que não se sustenta diante do modelo constitucional de processo.

Daniela Poli Vlavianos
Advogada civilista com 20 anos de experiência. Pós-graduada em Execução. Atuação em execução cível e proteção patrimonial. Atualmente, integra a equipe do escritório Arman Advocacia

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