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A cassação reflexa por fraude à cota de gênero e os limites da legalidade eleitoral

Quando mandatos são cassados sem culpa, a democracia é quem perde. Este artigo questiona os limites da legalidade na punição por fraude à cota de gênero e propõe um olhar constitucional.

16/7/2025
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O sistema jurídico-eleitoral brasileiro tem passado por expansão interpretativa das normas relativas à promoção da igualdade de gênero nas candidaturas proporcionais. Contudo, a aplicação do § 5º do art. 20 da resolução TSE 23.609/19 evidencia o tensionamento técnico entre os fins legítimos da ação afirmativa e a preservação das garantias constitucionais do processo sancionador.

Segundo a norma:

“A conclusão, nas ações referidas no § 1º deste artigo, pela utilização de candidaturas femininas fictícias, acarretará a anulação de todo o DRAP e a cassação de diplomas ou mandatos de todas as candidatas e de todos os candidatos a ele vinculados, independentemente de prova de sua participação, ciência ou anuência, com a consequente retotalização dos resultados e, se a anulação atingir mais de 50% dos votos da eleição proporcional, a convocação de novas eleições.” (Grifo nosso)

A resolução TSE 23.609/19, em seu art. 20, §5º, estabelece que, uma vez reconhecida a utilização de candidaturas femininas fictícias, ocorrerá, de forma automática e objetiva, a anulação do DRAP - Demonstrativo de Regularidade de Atos Partidários, a cassação dos diplomas ou mandatos de todos os candidatos a ele vinculados, independentemente de prova de participação, ciência ou anuência, e a consequente retotalização dos votos, inclusive com possibilidade de novas eleições, sem precisar inclusive a ocorrência ou não do trânsito em julgado. Trata-se de dispositivo que tem gerado intenso debate quanto à sua compatibilidade com os princípios constitucionais da legalidade, da responsabilidade subjetiva e da segurança jurídica.

Neste diapasão, a edição da súmula TSE 73 consolidou esse entendimento ao dispor que, nas hipóteses de fraude à cota de gênero, o reconhecimento do ilícito ensejará, entre outras consequências, a cassação do DRAP e dos diplomas dos candidatos vinculados, independentemente de prova de participação, ciência ou anuência, além da inelegibilidade dos responsáveis diretos e da nulidade dos votos obtidos pela legenda.

Embora se reconheça a necessidade de combater práticas fraudulentas que desvirtuem as ações afirmativas voltadas à promoção da participação feminina na política, é imprescindível que o enfrentamento da fraude observe os marcos constitucionais do processo sancionador. A leitura conjugada da súmula TSE 73 com o §5º do art. 20 da resolução 23.609/19 revela a adoção de uma responsabilidade objetiva e coletiva, incompatível com o devido processo legal substancial oriunda de uma construção unicamente jurisprudencial, não decorrente da lei. O princípio da culpabilidade individual- estruturante do direito sancionador - exige que a imposição de sanções como cassação de diploma e inelegibilidade decorra de conduta dolosa ou, ao menos, de participação consciente no ilícito eleitoral e de expressa previsão legal.

A melhor interpretação constitucional e legal da súmula TSE 73, portanto, deve levar em consideração a necessidade de prova efetiva e concreta das circunstâncias do caso concreto, não bastando a presença isolada dos indícios apontados (votação zerada, ausência de movimentação financeira ou de campanha). Tais elementos são, no máximo, indícios objetivos que autorizam a investigação, mas não substituem a comprovação de fraude com a robustez necessária para afastar mandatos legitimamente conquistados.

Mais ainda: a cassação automática sem demonstração de dolo viola os arts. 5º, II, LIV e LV, da CF/88, que asseguram o devido processo legal, a ampla defesa, o contraditório e a legalidade estrita em matéria sancionatória. Do mesmo modo, extrapola os limites do poder regulamentar conferido ao TSE pelo art. 23, IX e XV, do Código Eleitoral, na medida em que cria efeitos jurídicos autônomos e sancionatórios não previstos em lei formal, em desacordo com o entendimento firmado pelo STF na ADIn 6.032/DF.

Adicionalmente, o art. 224 do Código Eleitoral condiciona a convocação de novas eleições à anulação de mais da metade dos votos válidos, devendo essa consequência decorrer de processo regular, com retotalização formal dos votos e análise prévia do impacto concreto da decisão - providência nem sempre observada nas decisões judiciais que aplicam o §5º do art. 20 da resolução de forma automática.

É nesse contexto que se impõe uma interpretação conforme à CF do §5º do art. 20 da resolução TSE 23.609/19 e da própria súmula 73, de modo a assegurar que:

  • A fraude seja efetivamente comprovada por elementos concretos e não presumida por meros indícios formais;
  • A responsabilidade seja individualizada, exigindo-se dolo ou participação consciente do candidato afetado pela cassação;
  • Os efeitos coletivos da decisão (retotalização e novas eleições) somente ocorram mediante cumprimento de todas as etapas processuais exigidas em lei, inclusive retotalização oficial e fundamentação específica quanto à extensão dos efeitos.

A proteção da cota de gênero não pode justificar a mitigação de garantias fundamentais e afastar a necessidade de previsão legal. O combate à fraude é necessário, mas não pode ser feito à custa do devido processo legal e da legalidade democrática. A interpretação das normas eleitorais deve ser feita sempre à luz da CF/88, com o devido equilíbrio entre o interesse público na moralidade eleitoral e a proteção dos direitos políticos legitimamente conquistados nas urnas.

É legítimo punir a fraude. Mas será legítimo punir sem culpa e de forma reflexa? Em nome da moralidade eleitoral, estaríamos dispostos a relativizar os fundamentos mais elementares do Estado Democrático de Direito - como a presunção de inocência, a individualização da sanção e o devido processo legal? A proteção da cota de gênero, conquista histórica da luta por igualdade na política, não pode ser transformada em instrumento de punição automática e abstrata, que anula mandatos populares por mera vinculação formal a um DRAP. Quando a norma se afasta da responsabilidade subjetiva para aplicar sanções coletivas e objetivas, o Direito se converte em técnica de exceção. E, nesse ponto, é preciso lembrar: nenhuma justiça pode florescer onde a culpa é presumida e a defesa é dispensável.

Autor

Michele Cristina Souza Achcar Colla de Oliveira Doutora em Educação, Mestre em Direito, Professora e Parecerista. Sócia do escritório Michele Achcar Colla de Oliveira Sociedade de Advogados. Informações em: www.micheleachcar.com.br

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