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Responsabilidade civil das "intermediadoras" de franquia

A responsabilização civil das intermediadoras/formatadoras deve ser considerada em seu aspecto macroeconômico, de forma a garantir, também, a tutela dos interesses do franqueado.

18/7/2025

Responsabilidade civil de “formatadoras” e “intermediadoras” de franquia à luz da teoria do risco-proveito e ato ilícito

O mercado de franquias nacional tem vivido período de notória expansão das autointituladas “formatadoras” e “intermediadoras” de franquias.

Para além da consultoria em matéria de franchising, estes players, através de composições contratuais, chamam para si o serviço de “venda exponencial” - ou seja, por uma fatia pecuniária de maior relevo, promovem a estruturação de todo marketing voltado ao crescimento acelerado de franqueadores recém-chegados ao mercado.

Dessa forma, cuidam não só do processo de “formatação” propriamente dito, mas se apropriam da logística de arregimentação e seleção de candidatos a franqueados, prestando, de forma direta, este serviço.

Por vezes, a receita financeira a título de taxa de franquia (pagamento inicial atrelado à cessão do know-how) é revertida diretamente às formatadoras/intermediadoras, e não ao franqueador, titular da marca em destaque, o que reforça a sua participação direta na cadeia de proveito econômico.

A estratégia de crescimento acelerado e “venda” agressiva de franquias, porém, coloca em evidência uma estrutura de violação à lei de franquias que, cada vez mais, se institucionaliza e assoberba o Poder Judiciário, que é colocado a decidir acerca da responsabilidade civil destas formatadoras/intermediadoras que, indiscutivelmente, extraem relevante proveito econômico desta triangulação relacional (franqueador > “intermediador” > franqueado).

Com cada vez mais frequência, o Poder Judiciário tem reconhecido o uso abusivo do marketing de vendas praticado por intermediadoras de franquia. A partir de uma lógica de pressão e criação de situação de escassez, candidatos a franqueados são levados a firmar negócios jurídicos sob evidente vício de consentimento.

Informações acerca do modelo de negócio, que deveriam ser transmitidas de maneira clara, verdadeira, objetiva e transparente, são, agora, enviesadas com o propósito exclusivo de acelerar a subscrição de contratos e pré-contratos.

Em casos mais graves, a supressão da manifestação de vontade livre e consciente do candidato a franqueado é acompanhada de patrocínio à renúncia ao prazo de reflexão de que cuida a lei de franquias - de acordo com o art. 2.º, § 2.º, da lei 13.966/19, a circular de oferta de franquia deve ser entregue ao candidato a franqueado, no mínimo, 10 dias antes da assinatura do contrato ou pré-contrato de franquia ou, ainda, do pagamento de qualquer tipo de taxa pelo franqueado ao franqueador ou a empresa ou a pessoa ligada a este, sob pena de nulidade ou anulabilidade do negócio.

Os prepostos de aceleradoras/intermediadoras captam o candidato a franqueado, criam fantasiosa situação de escassez, coagem-no a subscrição de instrumentos contratuais ou pagamentos prévios em violação ao prazo de reflexão para, posteriormente, exigir “pré-datação” da data de recebimento da COF, a fim de evitar questionamentos quanto à nulidade da relação jurídica estabelecida.

A fraude, entretanto, já tem sido objeto de enfrentamento pelo Poder Judiciário. Como registra o precedente do TJ/SP, o artifício não convalida o vício e fica mantida a causa de anulabilidade da relação jurídica:

APELAÇÃO. FRANQUIA. AÇÃO DE ANULAÇÃO/RESCISÃO DE CONTRATO DE FRANQUIA C.C RESSARCIMENTO E INDENIZAÇÃO. SENTENÇA QUE JULGOU PARCIALMENTE PROCEDENTES OS PEDIDOS. 1. Circular de Oferta de Franquia com data póstuma ao seu efetivo envio. Apelante que não produziu prova no sentido de infirmar tal alegação, ônus que lhe competia. Ausência de entrega tempestiva que é causa de anulabilidade (art. 2º, §§ 1 º e 2º da Lei de Franquia). Franqueado que permaneceu no negócio por lapso de tempo insuficiente para sanar a irregularidade. 2- Ausência de demonstração da transmissão de know-how, com entrega de manuais e treinamento virtual nos termos estabelecidos pelo contrato firmado; 3- Invalidade do negócio jurídico que impõe o retorno das partes ao "status quo ante"; 4- Litigância por má-fé não configurada. Sentença mantida. Apelação não provida. (TJ-SP - Apelação Cível: 1017264-62.2021 .8.26.0071 Bauru, Relator.: J.B . Paula Lima, Data de Julgamento: 20/02/2024, 1ª Câmara Reservada de Direito Empresarial, Data de Publicação: 20/02/2024)

Outra situação comum neste cenário de marketing agressivo patrocinado por intermediadoras e formatadoras de franquia diz respeito a parâmetros irreais a título de investimentos, retornos e outras métricas veiculadas em sua publicidade.

Sob a justificativa de que a lei de regência exige o dimensionamento de “mera estimativa”, custos são cada vez mais subestimados e projeções de retorno e faturamento superestimados.

Tomando-se de empréstimo os conceitos previstos na lei 8.078/90 (CDC), é certo que o universo de franquias necessita que o Poder Judiciário esteja atento a esta nova realidade, protegendo o franqueado contra publicidade enganosa e abusiva, métodos comerciais coercitivos e desleais, bem como práticas e cláusulas abusivas e impostas por franqueadores.

De acordo com a definição legal, é enganosa qualquer modalidade de informação ou comunicação de caráter publicitário, inteira ou parcialmente falsa, ou, por qualquer outro modo, mesmo por omissão, capaz de induzir em erro a respeito da natureza, características, qualidade, quantidade, propriedades, origem, preço e quaisquer outros dados sobre produtos e serviços.

Ao se transportar referido conceito para as relações de franquia, é determinante que se compreenda que a veiculação de informações falsas, inteira ou parcialmente, quanto ao modelo de negócio proposto, configura, do ponto de vista negocial, grave vício jurídico.

A figura é condizente com a situação de dolo substancial (art. 145, CC), que macula a manifestação de vontade e substantiva causa suficiente para o reconhecimento de nulidade ou rescisão contratual.

De forma ainda embrionária, o Poder Judiciário tem sido instado a se manifestar e, também, diligenciado no sentido de reconhecer que essa forma de publicidade, porque contrária aos ditames da boa-fé contratual, é hábil a instaurar situação de rescisão contratual.

Nesse sentido, a propósito, o recente pronunciamento do TJ/MG:

APELAÇÃO CÍVEL. AÇÃO DE ANULAÇÃO DE PROPOSTA DE CONTRATO C/C COBRANÇA E RESTITUIÇÃO DE VALORES. GRATUIDADE DA JUSTIÇA. PESSOA JURÍDICA. POSSIBILIDADE. COMPROVAÇÃO DA HIPOSSUFICIÊNCIA. DEMONSTRAÇÃO. CONTRATO DE FRANQUIA. CIRCULAR DE OFERTA DE FRANQUIA. PROJEÇÕES DE LUCRO. DISCREPÂNCIA DE INFORMAÇÕES. RESCISÃO DO CONTRATO E RESTITUÇÃO DOS VALORES PAGOS. CABIMENTO. RECURSO CONHECIDO E PARCIALMENTE PROVIDO. A pessoa jurídica possui direito ao benefício da justiça gratuita, desde que cabalmente demonstrada a sua impossibilidade em suportar os encargos processuais. Nos termos do art . 2º da Lei 8.955/94, o franqueador deverá fornecer ao interessado Circular de Oferta de Franquia, constando, dentre outros, os balanços e demonstrações financeiras da empresa franqueadora, relativos aos dois últimos exercícios. Verificada a expressiva incongruência entre a previsão da Circular de Oferta de Franquia e a realidade fática do empreendimento, torna-se possível a anulação do negócio jurídico entabulado, nos termos do art. 4º, da Lei nº 13 .966/19. Recurso conhecido e parcialmente provido. (TJ-MG - Apelação Cível: 50017570520198130433 1.0000 .19.041264-3/002, Relator.: Des.(a) Gilson Soares Lemes, Data de Julgamento: 20/06/2024, 16ª Câmara Cível Especializada, Data de Publicação: 21/06/2024)

Evidenciado os contornos da participação das intermediadoras/formatadoras de franquia, impõe-se a defesa de sua responsabilização solidária pela cadeia de ilícitos e inadimplemento em contratos de franquia celebrados com sua “intermediação”.

Relevante que se diga, a propósito, que muito embora alguns players se autointitulem como “intermediadoras”, a essência e realidade posta demonstra que o serviço prestado se afasta da disciplina dos contratos de intermediação.

Na maior parte dos casos, as intermediadoras ou compõem o quadro societário da franqueadora (com ou sem repercussão do poder de dominância no quadro societário) ou percebem lucro diretamente do franqueado, circunstâncias que afugentam qualquer tentativa de sujeição ao regime de responsabilidade próprio das intermediações.

Ao instituir prepostos com o propósito de “venda” de franquias, é certo que a responsabilidade deve ser reconhecida com fundamento no art. 186 do CC. A prática de ato ilícito, por si só, deve gerar o dever de indenizar, independentemente da formal posição do intermediador/formatador em eventual contrato de franquia que venha a ser celebrado (art. 927, CC).

Por outro lado, a responsabilidade civil também deve ser assentada com fundamento no parágrafo único do art. 927 do CC.

A participação ativa do formatador/intermediador desborda da atividade de assessoria, garantido proveito econômico elevado a estas figuras. Bem por isso, a atividade desenvolvida, ao implicar risco financeiro relevante aos direitos de outrem (franqueado) deve atrair a responsabilidade pelo risco do empreendimento, sem perquirição de culpa.

A responsabilização civil das intermediadoras/formatadoras deve ser considerada em seu aspecto macroeconômico, de forma a garantir, também, a tutela dos interesses da parte vulnerável desta relação jurídica - o franqueado, visto que, em muitos casos, a estratégia de expansão agressiva resulta no desaparecimento do franqueador, o que dificulta ou, mesmo, inviabiliza a reparação dos danos suportados pelo franqueado.

Aquele que, eventualmente, se socorre do mercado de franquias para colocar no mercado modelos de negócio que não se viabiliza financeiramente, mediante artifícios de comunicação compatíveis com a conceituação de publicidade enganosa, além de patrocínio a condutas que constituem vício de consentimento deve sofrer os efeitos da responsabilidade civil, sem prejuízo de eventual responsabilização criminal que o caso reclamar.

Bem por isso, a responsabilização civil de formatadoras/intermediadoras deve ser vista a partir da ótica da teoria do risco-proveito, sobretudo quando configurada a sua efetiva participação na cadeia de ilícitos que possam levar à configuração de vícios de consentimento a comprometer a higidez da relação de franquia.

David Maxsuel Lima Rodrigues
Sócio-fundador da M&R Advogados, banca de advocacia voltada à atuação exclusiva em favor de franqueados. Diretor de Relações Institucionais da Associação Brasileira de Franqueados (ASBRAF).

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