Migalhas de Peso

Desconsideração da PJ e encerramento irregular da empresa

A desconsideração da personalidade jurídica exige mais do que o simples encerramento irregular da atividade: prova robusta de desvio patrimonial ou desvio de finalidade.

23/7/2025

No campo do Direito Empresarial, a desconsideração da personalidade jurídica permanece como uma medida de natureza excepcional, apta a ser aplicada somente em hipóteses estritamente delimitadas pela legislação e consolidadas pela jurisprudência, uma vez que a proteção conferida à autonomia patrimonial da pessoa jurídica, alicerçada no princípio da separação entre os patrimônios da sociedade e de seus sócios, não pode ser afastada com base em meras suposições ou indícios frágeis de irregularidades.

A construção desse instituto, tal como concebido no ordenamento jurídico brasileiro, teve influência do direito comparado, especialmente das experiências do sistema jurídico norte-americano e europeu, onde se reconheceu, em situações excepcionais, a possibilidade de afastar a autonomia patrimonial da pessoa jurídica. O mecanismo, muitas vezes denominado de “levantamento do véu societário”, passou a permitir a responsabilização direta dos sócios quando a estrutura formal da empresa era utilizada com desvio de finalidade ou para ocultar fraudes.

No Brasil, essa concepção foi inicialmente acolhida pela doutrina e, posteriormente, incorporada de forma expressa no art. 50 do Código Civil, que consagra a chamada teoria maior da desconsideração, exigindo prova concreta de desvio de finalidade ou confusão patrimonial para afastar os efeitos da autonomia societária. Em contraponto, a teoria menor, aplicada em ramos como o direito do consumidor, Direito Ambiental e Direito do Trabalho, admite a desconsideração com base na simples demonstração da impossibilidade de satisfação do crédito, ainda que ausente fraude.

Em recente decisão, o STJ1 firmou entendimento no sentido de que a dissolução irregular da empresa ou a inexistência de bens em seu nome não autorizam, por si sós, a responsabilização direta dos sócios. Em outras palavras, o simples fato de a sociedade estar inativa ou sem patrimônio suficiente para cumprir suas obrigações não configura, automaticamente, abuso da personalidade jurídica. O texto jurídico tradicional tende a repetir essa lógica como se fosse autossuficiente, ignorando a diversidade das situações concretas e os riscos de sua aplicação cega.

Essa exigência é necessária para que se evite o uso indiscriminado de um instrumento que, embora legítimo, só se justifica diante de situações excepcionais. A desconsideração não se presta a ser um atalho para a satisfação de créditos, mas, por outro lado, o discurso de que "provas robustas" são sempre indispensáveis corre o risco de servir como escudo para práticas empresariais abusivas e dissoluções artificiais que deixam o credor à margem de qualquer tutela efetiva.

A denominada “lei da liberdade econômica”, promulgada sob 13.874/19, promoveu significativas alterações no regime normativo da desconsideração da personalidade jurídica quando observada sob a ótica da teoria maior, pois modificou e incluiu, no art. 50 do Código Civil, previsões específicas delineando os parâmetros objetivos e subjetivos em que se permite responsabilizar os sócios pelas dívidas da sociedade, merecendo destaque dois parágrafos que foram incluídos pela supramencionada lei:

§ 4º A mera existência de grupo econômico sem a presença dos requisitos de que trata o caput deste artigo não autoriza a desconsideração da personalidade da pessoa jurídica. (Incluído pela lei 13.874, de 2019)

§ 5º Não constitui desvio de finalidade a mera expansão ou a alteração da finalidade original da atividade econômica específica da pessoa jurídica. (Incluído pela lei 13.874, de 2019)

Não apenas se estabeleceu hipóteses em que não se considera desvio de finalidade ou cabível a desconsideração (em caso de grupo econômico), mas também se estabeleceu normas interpretativas, em seus §§1º e 2º, que devem orientar o intérprete na resolução do caso in concreto.

A alteração, festejada entre os empresários, passou a exigir, de forma clara, a demonstração de que houve abuso da personalidade, seja por desvio de finalidade, seja por confusão patrimonial. A simples dificuldade de execução, ou mesmo o encerramento desorganizado da empresa, não se confundem com a utilização dolosa da estrutura societária.

É de se ter em mente, no entanto, que a rigidez desmedida do critério legal, quando aplicada de forma mecânica e descontextualizada, enfraquece a função de proteção do instituto, contribuindo para a perpetuação da inadimplência e da irresponsabilidade empresarial.

Em outras palavras, é cada vez mais comum que devedores se escondam atrás de uma fictícia dissolução irregular para se esquivar do adimplemento de suas obrigações, mas nem toda empresa irregularmente dissolvida o assim faz para se furtar ao pagamento dos créditos que deve. Por isso, apenas a certificação de que a empresa tenha sido irregularmente dissolvida não se mostra suficiente para que seja aplicada a desconsideração da personalidade jurídica.

Em um ambiente econômico ainda permeado por informalidade e disparidades no acesso a meios probatórios, é necessário ponderar os impactos práticos dessa rigidez interpretativa, sobretudo para os pequenos credores, que frequentemente não dispõem dos recursos técnicos ou jurídicos exigidos para comprovar a utilização indevida da pessoa jurídica.

A confiança no ordenamento jurídico depende justamente dessa coerência: garantir que apenas em casos verdadeiramente abusivos se permita o rompimento da personalidade jurídica, protegendo, assim, tanto os credores quanto a integridade do sistema empresarial.

A responsabilização pessoal dos sócios não deve ser banalizada, mas tampouco deve ser tão restrita a ponto de frustrar o exercício de um direito legítimo, exigindo mais equilíbrio, sensibilidade, análise concreta e razoabilidade judicial, especialmente de tanta limitação probatória e da hipossuficiência - técnica e jurídica - dos microempreendedores.

_________

1 AgIntAgrRESP 2139331/MS. 4ª. turma, relator ministro Marco Buzzi, DJEn 24/3/25

Juarez Arnaldo Fernandes
Especialista em Direito Constitucional e Tributário, Empresarial e Recuperação de Empresas, Penal e Econômico, Contábil e Financeiro. Contador. Perito Contábil Judicial. Adm. Judicial. Parecerista.

Adriano Henrique Baptista
Graduado em Direito pela Universidade Norte do Paraná. Especialista em Direito Aplicado pela Escola da Magistratura do Paraná. Ex-assessor de juiz no TJPR. Advogado e administrador judicial.

Veja mais no portal
cadastre-se, comente, saiba mais

Artigos Mais Lidos

A força da jurisprudência na Justiça Eleitoral

3/12/2025

Edição gênica e agronegócio: Desafios para patenteabilidade

3/12/2025

Abertura de empresas e a assinatura do contador: Blindagem ou burocracia?

3/12/2025

Como tornar o ambiente digital mais seguro para crianças?

3/12/2025

Recuperações judiciais em alta em 2025: Quando o mercado nos lembra que agir cedo é um ato de sabedoria

3/12/2025