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IA e caixa-preta: O fim da transparência e o risco jurídico

Estudo de gigantes da tecnologia revela que IAs perdem a capacidade de explicar seu raciocínio. Analisamos o risco jurídico iminente da "caixa-preta" na responsabilidade civil e na regulação.

24/7/2025

A caixa-preta algorítmica: Um desafio iminente à racionalidade jurídica

A evolução exponencial da IA - inteligência artificial tem sido celebrada por seus avanços, mas um alerta recente, emitido por pesquisadores de instituições como OpenAI, Google DeepMind e Anthropic, impõe uma reflexão sóbria e urgente ao universo do Direito. Em um estudo de notável relevância, esses especialistas apontam que estamos, de forma progressiva, perdendo a capacidade de compreender como os sistemas de IA mais avançados efetivamente "pensam"1. Esta constatação não é meramente técnica; ela representa um abalo sísmico nos fundamentos da segurança jurídica em um mundo cada vez mais automatizado.

O conceito central abordado é a Cadeia de Pensamento (CoT - Chain of Thought), que se refere à capacidade de um modelo de IA de externalizar seu processo de raciocínio em linguagem natural antes de formular uma resposta final. Conforme o estudo, essa funcionalidade é, hoje, uma das únicas ferramentas viáveis para a auditoria e a verificação do comportamento algorítmico1. Contudo, a pesquisa adverte para um fenômeno preocupante: à medida que os modelos se tornam mais complexos, suas estruturas de raciocínio abandonam a linguagem humana em favor de representações matemáticas abstratas e ininteligíveis. A "caixa-preta" deixa de ser uma metáfora para se tornar uma realidade técnica iminente, com implicações jurídicas profundas e inadiáveis.

As implicações da opacidade para o sistema jurídico

A perda da monitorabilidade do raciocínio algorítmico ergue um conjunto de desafios críticos que demandam atenção imediata da comunidade jurídica.

1. Responsabilidade civil e o nexo causal elusivo

O pilar da responsabilidade civil reside na capacidade de estabelecer um nexo de causalidade entre a conduta (dolosa ou culposa) e o dano. Se o processo decisório de uma IA é opaco, como se pode atribuir responsabilidade por seus erros? Em setores críticos como diagnóstico médico, análise de crédito financeiro ou em veículos autônomos, a incapacidade de rastrear a falha lógica que conduziu ao prejuízo pulveriza a conexão causal, tornando a responsabilização uma tarefa hercúlea e, por vezes, impossível.

2. O novo contorno do dever de diligência profissional

Para advogados, magistrados e demais operadores do Direito, o uso de ferramentas de IA impõe um novo e rigoroso dever de diligência. A utilização de um sistema cuja cadeia de pensamento não pode ser monitorada equivale a terceirizar uma análise crítica a uma fonte inexplicável. Tal prática não apenas compromete a qualidade técnica do trabalho, mas tangencia a violação de deveres éticos, pois o profissional se torna um mero homologador de uma decisão cuja fundamentação desconhece.

3. A crise da prova e da auditoria algorítmica

No campo do Direito Processual, a explicabilidade é fundamental. Em litígios que envolvam decisões automatizadas, a capacidade de auditar o raciocínio da IA é um meio de prova essencial. A ausência dessa monitorabilidade pode configurar um vício de motivação em decisões administrativas automatizadas, abrindo margem para sua nulidade. Em decisões judiciais assistidas por IA, a falta de transparência sobre como a ferramenta influenciou a convicção do julgador fere os princípios do devido processo legal e da fundamentação das decisões.

4. A urgência de uma regulação orientada à transparência

A regulação do setor não pode ignorar esta realidade. A preservação da cadeia de pensamento legível deveria ser um requisito mínimo de governança algorítmica para sistemas utilizados em serviços públicos, no Judiciário e por plataformas de grande impacto social. A legislação, a exemplo do que já se constrói na União Europeia com o AI Act, precisa incorporar a monitorabilidade e a rastreabilidade como critérios mandatórios de segurança e conformidade, sob pena de se criar um vácuo normativo perigoso.

5. A fronteira contratual: Cláusulas de rastreabilidade

No âmbito do Direito Privado, a prática contratual deve se adaptar. Contratos que regem o fornecimento ou a utilização de sistemas de IA precisam, desde já, prever cláusulas específicas sobre transparência algorítmica. Tais disposições devem assegurar direitos de auditoria técnica, rastreabilidade decisional e acesso à lógica subjacente, alocando riscos de forma clara caso o sistema se torne opaco ou produza resultados danosos e inexplicáveis.

Considerações finais

O estudo não apresenta a cadeia de pensamento como uma solução definitiva, mas a posiciona como, talvez, "uma última e frágil oportunidade" para a segurança em IA¹. Ela é um dos últimos bastiões de legibilidade antes que a autonomia das máquinas se desvincule por completo da compreensão humana. Quando uma IA pode agir, mas não pode mais explicar sua motivação de forma inteligível, o risco transcende a tecnologia e se instala no cerne da segurança jurídica.

O Direito não pode ser um espectador passivo desta transição. A defesa da transparência nas decisões automatizadas é, em última instância, a defesa da própria racionalidade jurídica e, consequentemente, da Justiça.

_______

1 HENDRYCKS, Dan et al. Chain of Thought Monitorability: A New and Fragile Opportunity for AI Safety. [S.l.]: [s.n.], 2024. Disponível em: https://arxiv.org/abs/2507.11473. Acesso em: 22 jul. 2025.

Jamille Porto Rodrigues
Advogada e Professora de Direito Digital, Inteligência Artificial e Novas tecnologias aplicada ao Direito e Marketing Jurídico.

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