Migalhas de Peso

Territórios da mente, direitos migratórios e proteção neurojurídica

Migrar é também deslocar a mente. Este artigo propõe que a lei de migração abrace o neurodireito para garantir dignidade cognitiva e proteger o território invisível do pensamento.

28/7/2025

A migração não se resume à travessia de fronteiras cartográficas. Ela aciona rupturas internas, desestabiliza vínculos subjetivos e exige reorganizações narrativas. Onde o corpo transita, a mente reconstrói sentidos e identidade.

A lei 13.445/17 representou uma mudança paradigmática no ordenamento jurídico brasileiro, afastando a lógica repressiva do antigo Estatuto do Estrangeiro e aproximando-se de princípios universais de direitos humanos. Reconhecer o migrante como sujeito de direitos é um avanço normativo relevante. Contudo, na experiência concreta, a norma ainda esbarra em práticas administrativas limitantes, marcadas pela ausência de escuta qualificada e pela invisibilidade das dimensões emocionais e cognitivas da travessia migratória. A ideia de acolhimento, mesmo presente em dispositivos legais, ainda não contempla os territórios da mente que se deslocam junto ao migrante.

É nesse intervalo entre norma e vivência que o neurodireito se apresenta como possibilidade jurídica transformadora. Esse campo propõe salvaguardas para dimensões sensíveis da subjetividade humana - como privacidade mental, autonomia psíquica e proteção contra manipulações cognitivas. Ao conectar o neurodireito à política migratória, amplia-se o escopo da dignidade para além do corpo, incluindo também a mente em seu estado transitório.

Este artigo parte dessa intersecção e propõe um deslocamento epistemológico: migrar é também alterar territórios internos, e proteger cérebros em trânsito é reconhecer uma nova fronteira da justiça. O trabalho está estruturado em cinco seções que abordam os fundamentos legais da migração, os princípios do neurodireito, as lacunas normativas, o conceito de neuroterritorialidade e as perspectivas para uma política migratória ampliada.

Referencial teórico

A lei de migração brasileira (lei 13.445/17) consagrou pilares importantes como não criminalização da migração, igualdade de direitos entre nacionais e estrangeiros, acolhida humanitária e proteção contra discriminação. Trata-se de um marco jurídico alinhado às convenções internacionais e aos tratados de direitos humanos, que afirma o compromisso constitucional com a dignidade da pessoa humana. Ainda assim, o texto legal pouco dialoga com aspectos como saúde mental, sofrimento psíquico e reconfiguração cognitiva decorrente do deslocamento.

Enquanto isso, o neurodireito emerge como campo interdisciplinar voltado à proteção da integridade mental frente aos avanços neurotecnológicos. Seus pilares incluem o direito à privacidade neural, à identidade cognitiva e à autodeterminação psíquica, especialmente em contextos de vulnerabilidade. Iniciativas legislativas como o PL 522/22 e a PEC 29/23 propõem incluir os dados neurais como categoria jurídica sensível e constitucionalizar o direito à integridade mental no Brasil.

Autores como Rafael Yuste, Marcelo Iori e Michael Gazzaniga defendem que o cérebro humano não pode ser alvo de intervenções invasivas sem consentimento, e que o livre pensamento constitui uma dimensão inviolável da autonomia pessoal. Esses princípios, aplicados ao contexto migratório, convidam a ampliar o alcance da proteção jurídica.

No campo da neuroterritorialidade, o migrante é compreendido como portador de um território interno - feito de memória, afeto, língua, crença - que precisa ser reconhecido e protegido. A travessia migratória não apenas desloca o indivíduo fisicamente, mas também força a reorganização de suas redes neurais e simbólicas.

A intersecção entre lei de migração e neurodireito ainda é escassa na doutrina nacional. Este artigo propõe preencher essa lacuna, conectando dignidade cognitiva, deslocamento subjetivo e vulnerabilidade migratória, em favor de uma justiça mais ampla e sensível à complexidade da experiência humana.

Análise e discussão

A experiência migratória é marcada por instabilidade, expectativas frustradas e processos que desafiam a integridade emocional e cognitiva do sujeito. São frequentes os casos de migração forçada, deportação abrupta, espera prolongada por regularização e situações de xenofobia institucionalizada. Tais experiências geram impactos que não se limitam ao âmbito físico: desorganizam vínculos afetivos, interrompem ciclos mentais e afetam diretamente o estado de consciência e identidade do migrante.

No entanto, a legislação brasileira ainda trata essas situações com viés predominantemente documental. Os procedimentos são voltados à verificação de registros, prazos e requisitos legais, ignorando os territórios da mente que são mobilizados em cada travessia. A escuta institucional permanece técnica e objetiva, desprovida de ferramentas sensíveis à subjetividade.

O neurodireito, ao se preocupar com os estados mentais e cognitivos, oferece uma chave hermenêutica potente para decifrar essas ausências. Em contextos migratórios, proteger cérebros em trânsito significa garantir que a pessoa não seja submetida a práticas que violem sua intimidade mental - seja por tecnologias de perfilamento, seja por interrogatórios invasivos ou abandono emocional. A legislação poderia incorporar protocolos que assegurem suporte psicológico, respeitem a diversidade cognitiva e garantam ambientes institucionalmente seguros para a mente.

A dignidade cognitiva do migrante deve ser reconhecida como dimensão integrante da proteção jurídica, especialmente em fases sensíveis como pedido de refúgio, acolhida provisória ou reintegração social. A legislação migratória, fortalecida por princípios do neurodireito, pode avançar em direção a uma justiça que considere também o invisível.

Considerações finais

Reconhecer o migrante como sujeito de direitos requer mais do que garantir-lhe acesso a serviços básicos. É preciso enxergar sua condição subjetiva, suas memórias feridas, sua identidade fragmentada e seus processos mentais em reconstrução. A dignidade humana, tal como consagrada constitucionalmente, inclui o direito a pensar livremente, a preservar sua memória, sua linguagem e sua consciência.

Ao propor a incorporação do neurodireito à lei de migração brasileira, este artigo defende a criação de políticas públicas que respeitem a neurodiversidade e a neuroterritorialidade dos migrantes. Isso implica oferecer serviços psicossociais, impedir a instrumentalização da mente por tecnologias sem consentimento e formar agentes públicos para compreender os impactos cognitivos da travessia.

A proteção da mente em trânsito não é um luxo - é uma necessidade ética diante das complexidades da mobilidade contemporânea. Proteger cérebros em trânsito é garantir que nenhum direito humano se perca nas entrelinhas da burocracia. É afirmar que justiça não é apenas acolhimento físico, mas também cuidado com aquilo que cada pessoa pensa, sente e lembra.

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Referências

ACNUR – Alto Comissariado das Nações Unidas para Refugiados. Proteção Internacional dos Refugiados: guia para tomadores de decisão. Brasília: ACNUR Brasil, 2018.

BRASIL. Lei nº 13.445, de 24 de maio de 2017. Institui a Lei de Migração. Diário Oficial da União: seção 1, Brasília, DF, 25 maio 2017. Disponível em: https://www.planalto.gov.br/ccivil_03/_ato2015-2018/2017/lei/l13445.htm. Acesso em: 24 jul. 2025.

BRASIL. Lei nº 13.709, de 14 de agosto de 2018. Dispõe sobre a proteção de dados pessoais. Diário Oficial da União: seção 1, Brasília, DF, 15 ago. 2018. Disponível em: https://www.planalto.gov.br/ccivil_03/_ato2015-2018/2018/lei/l13709.htm. Acesso em: 24 jul. 2025.

BRASIL. Projeto de Lei nº 522, de 2022. Altera a Lei nº 13.709/2018 (LGPD) para incluir dados neurais como categoria sensível. Câmara dos Deputados, Brasília, DF, 2022.

BRASIL. Proposta de Emenda à Constituição nº 29, de 2023. Acrescenta o direito à integridade mental à Constituição Federal. Senado Federal, Brasília, DF, 2023.

DUVIGNEAU, Katia. O direito à identidade no contexto migratório. Revista de Estudos Migratórios, São Paulo, v. 14, n. 2, p. 63–78, 2019.

FERNANDES, Daniela; SILVA, Maurício. Os fundamentos constitucionais da Lei de Migração. Revista Brasileira de Direitos Humanos, Brasília, v. 14, n. 2, p. 119–140, 2020.

GAZZANIGA, Michael S. Who's in charge? Free will and the science of the brain. New York: HarperCollins, 2011.

IORI, Marcelo. Neurodireitos: a proteção da mente humana na era das neurotecnologias. Revista de Direito e Neurociência, São Paulo, v. 3, n. 1, p. 45–59, 2021.

YUSTE, Rafael et al. Four ethical priorities for neurotechnologies and AI. Nature, [s.l.], v. 551, p. 159–163, 2017. Disponível em: https://www.nature.com/articles/551159a. Acesso em: 24 jul. 2025.

Carlos José Britto da Silva
Carlos Britto é advogado há mais de 10 anos, certificado pelo IBMI e HarvardX. Inscrito na OAB/RJ e OA/PT, atua em Direito Administrativo, Internacional, Migratório e Empresarial.

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