1. Introdução
A inadimplência condominial é, historicamente, uma das maiores fragilidades administrativas enfrentadas por síndicos, gestores e operadores do Direito. Trata-se de um fenômeno que afeta diretamente a saúde financeira dos condomínios, comprometendo não apenas a prestação dos serviços essenciais, mas também a convivência coletiva, a segurança e a paz social no âmbito residencial.
Tradicionalmente, a inadimplência é enfrentada por meio da cobrança direta aos condôminos devedores, seja extrajudicial ou judicialmente, com todas as implicações procedimentais, custos, desgastes e morosidade que tal processo impõe. A figura do “condômino inadimplente”, nesse contexto, assume papel central em assembleias, atas, debates internos e mesmo nos planejamentos orçamentários.
Entretanto, este artigo propõe uma ruptura paradigmática: a extinção da figura do inadimplente no cotidiano condominial, a partir da contratação de garantidoras de crédito especializadas. Tal fenômeno, já observado na prática em diversos empreendimentos, ainda não foi abordado sob a perspectiva científica com o devido rigor doutrinário e jurídico como aqui se faz.
A tese central aqui defendida é de que, a partir da contratação de uma garantidora de crédito, o condomínio passa a receber integralmente, de forma pontual e segura, os valores devidos, independentemente do adimplemento do condômino. Em outras palavras: o risco da inadimplência é terceirizado, e seus efeitos deixam de existir no âmbito da coletividade condominial. Logo, para fins jurídicos, funcionais e sociais, não há mais inadimplentes ao condomínio. E ainda, este artigo propõe uma análise crítica dessa prática à luz dos princípios do ordenamento jurídico brasileiro, com foco na vedação ao enriquecimento ilícito e na boa-fé objetiva.
A metodologia adotada é dedutiva e qualitativa, com análise doutrinária, contratual, jurisprudencial e pragmática da função desempenhada pela garantidora de crédito. Também serão considerados aspectos filosóficos e econômicos, no intuito de fundamentar não apenas a viabilidade jurídica da tese, mas sua relevância teórica e social.
Trata-se, portanto, de uma proposta inédita no cenário jurídico brasileiro, que visa contribuir com a evolução do Direito Condominial, oferecendo um novo olhar sobre a gestão financeira coletiva, a responsabilização pelos inadimplementos e o papel das instituições garantidoras como ferramentas contratuais auxiliares na gestão financeira do condomínio.
2. Referencial teórico
A inadimplência condominial é disciplinada no ordenamento jurídico brasileiro, sobretudo, pelo CC, em seus arts. 1.336, inciso I, e 1.337. O primeiro dispõe sobre o dever fundamental de contribuir para as despesas do condomínio, ao passo que o segundo prevê sanções ao condômino inadimplente, como multa, juros e, em casos extremos, restrições ao uso de áreas comuns.
A doutrina majoritária reconhece que a contribuição condominial configura uma obrigação propter rem, isto é, uma obrigação que decorre diretamente da titularidade da unidade imobiliária, vinculando o proprietário independentemente de culpa ou uso efetivo do imóvel.
Rogério Tadeu Romano, ao tratar do tema, assevera que:
“A força vinculante das obrigações propter rem manifesta-se conforme a situação do devedor ante uma coisa, seja como titular do domínio, seja como possuidor. Assim, nesse tipo de obrigação, o devedor é determinado de acordo com sua relação em face de uma coisa, que é conexa com o débito, como ensinou Maria Helena Diniz (Curso de direito civil brasileiro, volume 2 : teoria geral das obrigações. 32 ed. rev. e atual. São Paulo: Saraiva, 2017, p. 27).”
No regime jurídico tradicional, o condômino inadimplente é sujeito a diversas consequências: protesto de boletos, negativação, cobrança judicial, penhora da unidade, além da exposição e conflito social gerados em assembleias. Trata-se de um fenômeno que interfere diretamente na governança condominial, exigindo do síndico, do advogado e da administradora, constante vigilância e energia dispendida em ações de cobrança.
O ministro Raul Araújo do STJ destacou em seu voto no REsp 2.059.278/SC que:
“Não faz sentido esse absurdo. Qualquer proprietário comum de um imóvel existente num condomínio edilício se submete à obrigação de pagar as despesas. Se essas despesas não forem pagas pelo devedor fiduciante nem pelo credor fiduciário, elas serão suportadas pelos outros condôminos, o que, sabemos, não é justo, não é correto.”
A jurisprudência brasileira reconhece amplamente o direito do condomínio de aplicar multas, juros e, inclusive, promover execução direta da dívida condominial, prevendo como título executivo extrajudicial, conforme o art. 784, inciso X, do CPC que:
“o crédito referente às contribuições ordinárias ou extraordinárias de condomínio edilício, previstas na respectiva convenção ou aprovadas em assembleia geral, desde que documentalmente comprovadas”
É sobre esse arcabouço tradicional que se estrutura a prática cotidiana da administração condominial no Brasil: cobrança direta, ações judiciais e inadimplência como fato recorrente, oneroso e socialmente corrosivo.
3. Fundamentação jurídica
A tese aqui defendida se estrutura sobre sólidos pilares do Direito Civil e do Direito Contratual, tendo como eixo central a legitimidade da contratação de garantidoras de crédito por condomínios e os efeitos jurídicos que decorrem dessa relação.
O art. 421 do CC estabelece que “a liberdade contratual será exercida nos limites da função social do contrato”. A contratação de garantidoras por condomínios encontra respaldo nesse princípio, pois visa garantir a adimplência das obrigações condominiais, assegurando a saúde financeira da coletividade, a previsibilidade orçamentária e a pacificação social.
Além disso, o art. 286 e seguintes do CC tratam da cessão de crédito, sendo plenamente lícito ao condomínio ceder seu crédito condominial a terceiro (a garantidora), que se torna novo credor, podendo realizar a cobrança em nome próprio.
A sub-rogação prevista no art. 349 do CC também se aplica à hipótese em que a garantidora quita, por contrato, a obrigação do condômino inadimplente, vejamos:
“Art. 349. A sub-rogação transfere ao novo credor todos os direitos, ações, privilégios e garantias do primitivo, em relação à dívida, contra o devedor principal e os fiadores.”
Do ponto de vista funcional, a contratação da garantidora transfere a titularidade do crédito, elimina os riscos de inadimplência ao condomínio, e desloca a cobrança para um outro ente privado, com maior agilidade, especialização e eficácia.
Trata-se, portanto, de um contrato atípico, lícito, bilateral, comutativo, de trato sucessivo e com forte função social, devendo ser analisado sob a ótica da autonomia privada e da eficiência econômica.
4. Reflexões filosóficas
A relação entre coletividade, dever de contribuição e função social da propriedade tem raízes filosóficas profundas. O condomínio é, em essência, um microcosmo da sociedade: múltiplas individualidades coexistindo em um mesmo espaço, com regras comuns, deveres mútuos e interesses compartilhados.
Nesse contexto, a inadimplência não é apenas uma falha contratual, mas uma ruptura no pacto coletivo de convivência. Eliminar seus efeitos, portanto, representa mais do que uma medida administrativa é uma evolução filosófica e social: o reconhecimento de que a coletividade deve ser preservada, blindada, protegida da instabilidade provocada por faltas individuais.
Ao terceirizar o risco da inadimplência, o condomínio pratica uma forma elevada de inteligência coletiva. Preserva-se o bem comum, sem abrir mão da responsabilização individual. O inadimplente ainda existe, mas ele não afeta a coletividade. Isso é justiça em seu aspecto distributivo: cada um responde por seus atos, sem prejudicar os demais.
Essa proposta também reflete uma busca por pacificação social, evitando confrontos em assembleias, discursos estigmatizantes e conflitos pessoais. É, portanto, uma medida de civilidade, modernidade e maturidade institucional.
5. Proposta técnica
5.1. A natureza jurídica dos contratos em geral e o contrato com garantidoras
O contrato é, segundo o art. 421 do CC, um instrumento de autonomia privada voltado à criação, modificação ou extinção de relações jurídicas patrimoniais, devendo observar sua função social e os princípios da boa-fé objetiva. A doutrina moderna reconhece que, além de instrumento de liberdade, o contrato também é um mecanismo de equilíbrio, devendo respeitar a dignidade da pessoa humana e o equilíbrio das prestações.
Dentro do ordenamento jurídico brasileiro, os contratos típicos encontram respaldo em normas específicas (como compra e venda, locação, prestação de serviços etc.), enquanto os contratos atípicos, como o celebrado entre condomínio e garantidora, devem obedecer às normas gerais dos contratos, notadamente os arts. 421 a 480 do CC.
O contrato firmado entre o condomínio e a garantidora de crédito condominial é um contrato atípico, bilateral e oneroso, comutativo e de trato sucessivo. Nele, a garantidora se compromete, mediante remuneração mensal ou percentual, a pagar ao condomínio os valores das cotas condominiais inadimplidas pelos condôminos, assumindo o risco da cobrança futura.
Tal contrato tem natureza de sub-rogação clássica, seja ela expressa ou tácita nos contratos, o que impõe redobrada cautela jurídica. A ausência de regulação específica exige a elaboração minuciosa de cláusulas contratuais claras, delimitando obrigações, prazos, penalidades e principalmente os limites da atuação da garantidora.
Por fim, é dever do advogado condominial garantir que tal contrato esteja conforme os princípios da legalidade, da transparência e da função social, evitando cláusulas abusivas, omissões que causem prejuízo à coletividade e vícios que possam comprometer sua eficácia jurídica e sua execução futura.
5.2. O regime tradicional da inadimplência condominial
O modelo tradicional de enfrentamento à inadimplência condominial depende da responsabilidade direta do condomínio na cobrança dos condôminos inadimplentes. Isso gera desgastes entre vizinhos, sobrecarga administrativa para o síndico, altos custos jurídicos e instabilidade financeira.
No regime tradicional, o condomínio é o responsável direto pela cobrança das cotas condominiais, o que implica uma série de obrigações formais e operacionais. Cabe ao síndico ou à administradora a emissão dos boletos, o controle dos pagamentos, o envio de notificações extrajudiciais aos inadimplentes, a negociação de acordos e, se necessário, o ajuizamento de ações de cobrança. Todo esse processo exige tempo, investimento em assessoria jurídica especializada, e expõe o condomínio a conflitos internos e desgaste institucional. Além disso, o condomínio permanece desprotegido quanto ao prazo de recebimento, o que fragiliza sua capacidade de planejamento orçamentário.
Mesmo com títulos executivos extrajudiciais e amparo legal para cobrança, o tempo entre o inadimplemento e a recuperação dos valores pode ultrapassar anos, comprometendo seriamente o caixa condominial.
A cobrança tradicional, quando não feita por um corpo jurídico eficiente, enfrenta entraves como a morosidade do Judiciário, a resistência dos devedores, a possibilidade de recursos protelatórios e a demora para se chegar à penhora. Esse conjunto de fatores compromete a efetividade da execução e mantém o caixa do condomínio deficitário por longos períodos. A imprevisibilidade de recebimento impede obras, manutenções e compromissos contratuais, afetando diretamente a coletividade. Além disso, o acúmulo de inadimplência tende a gerar aumento da taxa condominial para os adimplentes, o que pode agravar ainda mais o desequilíbrio financeiro.
5.3. O surgimento das garantidoras e sua função contratual
As garantidoras de crédito condominial surgem como uma solução empresarial inovadora para os condomínios que não possuem uma cobrança efetiva e que já estejam em adiantado desgaste financeiro. Mediante contrato, assumem integralmente o risco da inadimplência, antecipando os valores de cotas condominiais ao condomínio e cobrando diretamente os inadimplentes.
Juridicamente, essa relação se estrutura como um contrato atípico de prestação de serviço com cláusula de assunção de risco, previsto na liberdade contratual do art. 421 do CC. O condomínio, assim, deixa de ser parte afetada pela inadimplência: os créditos são quitados integralmente e no prazo. O inadimplemento passa a ser um problema da garantidora, e não da coletividade condominial.
O contrato firmado entre o condomínio e a garantidora possui natureza atípica, fundamentada no princípio da liberdade contratual previsto no art. 421 do CC. Sua estrutura contempla obrigações bilaterais: o condomínio contrata a garantidora para garantir a adimplência de suas receitas, enquanto esta assume o risco do inadimplemento, repassando os valores mensais mesmo diante da inadimplência individual.
Trata-se de um contrato oneroso, comutativo, sinalagmático e de prestação continuada. Embora não expressamente previsto no ordenamento, é plenamente válido, desde que respeitados os princípios da função social do contrato, boa-fé objetiva e equilíbrio das prestações. Sua finalidade é garantir previsibilidade financeira e estabilidade de gestão, transferindo os ônus da cobrança para um terceiro especializado.
5.4. A eliminação prática da inadimplência: Análise jurídica e funcional
Quando há garantidora, o condomínio recebe os valores integrais e pontuais, com estabilidade de caixa e autonomia financeira. O inadimplemento não gera mais reflexo sobre a coletividade. O crédito é quitado, e o condômino inadimplente passa a ser devedor apenas da garantidora.
Juridicamente, sob a ótica do condomínio, não há mais inadimplência. A função social do contrato está plenamente satisfeita. A jurisprudência já reconhece a validade dos contratos com garantidoras e a cessão de crédito condominial.
A cessão de crédito entre pessoas jurídicas é prática consolidada no Direito brasileiro, regulamentada pelos arts. 286 a 298 do CC. É comum em operações como factoring, securitização de recebíveis, contratos bancários e em relações empresariais diversas. Nesses casos, o credor original transfere seu crédito a um terceiro, que assume a posição ativa na relação obrigacional. Essa lógica é aplicável ao contrato com garantidora, que, ao assumir os valores devidos ao condomínio, passa a ter legitimidade própria para cobrar o condômino inadimplente.
Conforme ensinamentos de Orlando Gomes e Maria Helena Diniz, a cessão de crédito é válida desde que não haja vedação legal ou contratual e que o devedor seja notificado. No caso condominial, a cessão pode constar expressamente no contrato com a garantidora, conferindo-lhe todos os poderes legais para agir em nome próprio.
5.5. Limites da cobrança por garantidoras: A impossibilidade de atuarem em nome do condomínio
É crescente o número de garantidoras de crédito que, após assumirem o pagamento das cotas inadimplidas, buscam realizar a cobrança diretamente dos condôminos inadimplentes. No entanto, observa-se que muitas dessas empresas passam a emitir notificações e ajuizar demandas como se fossem representantes legais do condomínio, o que levanta sérias controvérsias jurídicas.
Do ponto de vista técnico-jurídico, é necessário distinguir duas figuras jurídicas distintas: o condomínio, sujeito ativo da obrigação condominial original, e a garantidora, que, ao pagar a dívida, assume o crédito por sub-rogação. A garantidora não se torna representante legal do condomínio, mas sim novo credor, com base no art. 349 do CC:
“A sub-rogação transfere ao novo credor todos os direitos, ações, privilégios e garantias do primitivo, em relação à dívida, contra o devedor principal e os fiadores.”
Assim, a garantidora pode efetuar a cobrança em seu próprio nome, como cessionária ou sub-rogada do crédito, mas jamais poderá fazê-lo em nome do condomínio.
Conforme estabelece o art. 884 do CC:
"Aquele que, sem justa causa, se enriquecer à custa de outrem será obrigado a restituir o indevidamente auferido."
Nesse sentido, uma vez que o condomínio tenha recebido da garantidora os valores relativos às cotas inadimplidas, perde a legitimidade material para promover cobrança em face do condômino, sob pena de incorrer em enriquecimento sem justa causa.
Ainda que a jurisprudência do Superior Tribunal de Justiça tenha firmado entendimento de que a ausência de cláusula expressa de sub-rogação impede a garantidora de cobrar em nome próprio, esse posicionamento não autoriza o condomínio a postular judicialmente um crédito que já foi adimplido. O crédito deixa de existir em relação ao condomínio, pois a obrigação foi extinta pelo pagamento feito pela garantidora.
Cabe aqui, respeitosamente, discordância ao entendimento do Superior Tribunal de Justiça quanto ao entendimento de sub-rogação apenas por cláusula expressa, eis que, na prática, a sub-rogação acontece nos contratos entre condomínios e empresas garantidoras de forma expressa e de forma tácita.
Ignorar a existência da forma tácita de sub-rogação é ignorar o dado real, o fato como ele acontece na vida jurídica prática.
Permitir a cobrança nessas condições viola também os princípios da boa-fé objetiva e da função social do crédito, previstos no CC. A ausência de cláusula formal não pode legitimar uma prática que resulta em duplicidade de cobrança e insegurança jurídica.
Nos contratos em que a garantidora antecipa os valores das cotas condominiais inadimplidas, há, de fato, a extinção da relação obrigacional entre o condomínio e o condômino inadimplente.
Essa extinção não depende da existência de cláusula expressa de sub-rogação, pois resulta de fato jurídico consumado: o adimplemento da obrigação ao credor originário.
Assim, a relação de crédito passa a existir, no plano material, entre o condômino e a garantidora, ainda que esta não possa figurar formalmente no polo ativo.
Portanto, insistir na legitimidade ativa do condomínio, após ter sido plenamente satisfeito pela garantidora, é ignorar a realidade material da relação jurídica e promover o desequilíbrio contratual.
A duplicidade de cobrança afronta diretamente os princípios que regem o processo executivo, sobretudo os princípios da legalidade, da boa-fé e da vedação ao abuso de direito.
A execução pressupõe crédito certo, líquido e exigível. Se o crédito já foi pago, não há título executivo hábil que justifique a demanda por parte do condomínio. A insistência na cobrança caracteriza desvio de finalidade do processo judicial e tentativa de enriquecimento indevido.
Além disso, cria-se um risco de constrangimento e lesão ao condômino, que poderá ser compelido a pagar novamente por um débito já quitado no plano financeiro, ainda que formalmente o crédito tenha retornado ao condomínio por meios indiretos.
Independentemente da existência ou não de cláusula contratual de sub-rogação, o condomínio que já recebeu os valores inadimplidos de uma empresa garantidora não pode figurar como credor em ação de execução.
A continuidade da cobrança, nesse cenário, revela abuso de direito e enriquecimento ilícito, afrontando preceitos fundamentais do ordenamento jurídico. A ausência de formalidade não justifica condutas que violam a boa-fé, a legalidade e a equidade entre as partes.
Urge, portanto, uma releitura crítica da jurisprudência dominante, de modo a compatibilizá-la com os princípios basilares do Direito Civil e Processual Civil, restaurando o equilíbrio nas relações condominiais e garantindo segurança jurídica aos envolvidos.
5.6. Efeitos sociais, econômicos e administrativos da ausência de inadimplência
A estabilidade financeira permite previsibilidade orçamentária e elimina o risco de colapso administrativo. O condomínio deixa de litigar, e o foco da assembleia volta-se para a gestão construtiva.
Socialmente, desaparece o estigma do inadimplente. Filosoficamente, há uma transmutação: a dívida existe apenas na relação privada entre garantidora e condômino, e não mais no contexto coletivo. A inadimplência, para o condomínio, é juridicamente inexistente.
Economicamente, a antecipação dos recebíveis e a segurança do fluxo de caixa viabilizam investimentos, obras, negociações com fornecedores e valorização do patrimônio. A ausência de inadimplência torna o condomínio mais competitivo, mais atrativo e mais organizado.
Administrativamente, o síndico deixa de exercer o papel de cobrador, ganhando tempo e autoridade para se dedicar à gestão. A administradora passa a operar com segurança e previsibilidade. O jurídico pode focar na consultoria e prevenção, ao invés de se limitar à cobrança.
Sob este prisma, a proibição de participação em assembleia de um condômino que só é inadimplente frente à garantidora, mostra-se incoerente e abusivo. Mantem-se restrição de participação política e social frente ao condomínio que não mais é seu credor.
5.7. Contra-argumentos possíveis e refutação
Alguns argumentarão que a inadimplência ainda existe, apenas muda de titular. Isso é verdade no plano individual, mas não no coletivo. Para o condomínio, o crédito foi satisfeito. Portanto, quanto a ele, passa a inexistir a figura do inadimplente.
Outro ponto seria o risco de a garantidora falhar. Mas esse risco contratual não compromete a tese, que se refere à vigência e eficácia do contrato. Caso o contrato seja rescindido ou descumprido, o regime jurídico da inadimplência tradicional poderá ser retomado, mas enquanto vigente, os efeitos da inadimplência são plenamente neutralizados.
Poder-se-ia alegar, também, a jurisprudência do Superior Tribunal de Justiça que apenas reconhece a sub-rogação quando da existência de cláusula contratual expressa, ora, neste sentido justamente que a presente tese é original, justificando e fundamentando que existe a sub-rogação tácita nos contratos onde não há a cláusula expressa, e que esta exerce os mesmos efeitos práticos jurídicos da sub-rogação expressa.
Por fim, pode-se alegar que haveria enfraquecimento do dever moral do condômino. No entanto, a cobrança pela garantidora é profissional, eficaz, menos conflituosa e tão certa como a cobrança tradicional. A obrigação continua existindo, apenas deslocada do condomínio para um novo credor.
6. Consideraçõe finais
A inadimplência condominial, fenômeno historicamente enfrentado com mecanismos desgastantes, onerosos e muitas vezes ineficazes, encontra nas garantidoras de crédito uma solução que não apenas mitiga seus efeitos, mas os elimina estruturalmente no âmbito da coletividade condominial.
Este artigo sustentou, com base doutrinária, contratual e filosófica, que o condomínio que contrata uma garantidora de crédito não possui mais condôminos inadimplentes, pois a obrigação de pagamento das cotas passa a ser satisfeita pontualmente por terceiro, e os riscos são integralmente assumidos por este novo agente. Ainda, que existe a sub-rogação tácita nos contratos onde não há a cláusula expressa, e que esta exerce os mesmos efeitos práticos jurídicos da sub-rogação expressa.
Trata-se de uma transformação funcional do conceito de inadimplência, que, embora ainda exista como relação jurídica entre garantidora e condômino, deixa de ter qualquer reflexo interno no condomínio. A coletividade não sofre, o caixa não colapsa, o síndico não litiga e os vizinhos não entram em conflito. Em termos práticos e jurídicos, a inadimplência simplesmente desaparece da esfera de preocupação condominial.
Essa constatação, embora nascida da prática de mercado, ainda não havia sido teorizada academicamente de forma sistemática no Brasil. A presente pesquisa, portanto, propõe uma nova lente de análise para a realidade condominial moderna, promovendo um deslocamento de paradigma: do condomínio litigante e exposto, para o condomínio blindado, eficiente e financeiramente saudável.
Essa nova realidade impõe também desdobramentos doutrinários e jurisprudenciais futuros, exigindo a atualização de entendimentos sobre legitimidade ativa para cobrança, assembleias de prestação de contas, previsões orçamentárias e até mesmo o papel das administradoras diante da figura da garantidora.
Mais do que uma mudança técnica, esta tese representa uma proposta de evolução para o Direito Condominial, alinhada à função social da propriedade coletiva, à desjudicialização das relações privadas e à valorização de soluções inteligentes, pactuadas e seguras para os desafios da vida urbana.
Por fim, espera-se que este artigo contribua com o desenvolvimento da doutrina nacional, inspire a atuação de síndicos, administradoras, advogados e magistrados, e abra caminho para uma nova forma de pensar o condomínio: livre da inadimplência, protegido por contratos, e guiado pela eficiência jurídica e pela paz coletiva.
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Referências
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