Migalhas de Peso

Os limites da liberdade de expressão: Um direito fundamental, mas não absoluto

É preciso distinguir censura, uma forma inadmissível de supressão da liberdade de expressão, da responsabilização por violar direitos fundamentais de outras pessoas.

5/8/2025

A convivência em sociedade é regulada por diferentes tipos de normas: morais, religiosas, familiares e jurídicas. O que diferencia as normas jurídicas das demais é o seu caráter obrigatório - ou seja, sua força coercitiva. No Brasil, o ordenamento jurídico é formado por normas de cumprimento obrigatório, cuja violação pode acarretar sanções legais, como restrições patrimoniais, perda da liberdade (prisão) e, em casos excepcionais, ameaça à própria vida - esta última hipótese prevista exclusivamente em situação de guerra declarada, nos termos da Constituição Federal.

As normas jurídicas se subdividem, segundo a doutrina de Robert Alexy, em regras e princípios, com base em um critério qualitativo. Para o autor, princípios são 'normas que ordenam que algo seja realizado na maior medida possível, dentro das possibilidades jurídicas e fáticas existentes', ao passo que as regras 'são normas que ou são satisfeitas ou não são'.

A partir dessa concepção, infere-se que as regras se submetem a um modelo binário de aplicação - ou se aplicam integralmente ao caso concreto (são satisfeitas), ou não se aplicam (não satisfeitas). Esse fenômeno é denominado subsunção, correspondente ao enquadramento de um fato ao que prescreve uma norma.

Os princípios, por sua vez, consistem em mandamentos de otimização, devendo ser concretizados na maior medida possível, consideradas as circunstâncias fáticas do caso concreto. Diante de eventual colisão entre princípios, deve-se ponderá-los para buscar a harmonização e coexistência deles sem atingir seu “núcleo duro”.

Nesse contexto, enquanto direito fundamental, a liberdade de expressão deve ser considerada como um princípio por ser passível de colisão com outros direitos fundamentais como a honra, a imagem, a dignidade da pessoa humana.

A consideração a esse respeito também é defendida por Norberto Bobbio:

Na maioria das situações em que está em causa um direito do homem, ao contrário, ocorre que dois direitos igualmente fundamentais se enfrentem, e não se pode proteger incondicionalmente um deles sem tornar o outro inoperante. Basta pensar, para ficarmos num exemplo, no direito à liberdade de expressão, por um lado, e no direito de não ser enganado, excitado, escandalizado, injuriado, difamado, vilipendiado, por outro. Nesses casos, que são a maioria, deve-se falar de direitos fundamentais não absolutos, mas relativos, no sentido de que a tutela deles encontra, em certo ponto, um limite insuperável na tutela de um direito igualmente fundamental, mas concorrente. E, dado que é sempre uma questão de opinião estabelecer qual o ponto em que um termina e o outro começa, a delimitação do âmbito de um direito fundamental do homem é extremamente variável e não pode ser estabelecida de uma vez por todas. (BOBBIO, Norberto. A Era dos Direitos. Trad. Carlos Nelson Coutinho. Rio de Janeiro: Campus, 1992, p.24).

A qualificação da liberdade de expressão como princípio revela, por consequência lógica, sua vocação para colidir com outros direitos fundamentais. Isso significa que tal liberdade não é absoluta: embora deva ser amplamente resguardada, deve igualmente ceder espaço quando em conflito com outros direitos e garantias fundamentais que possuem igual valor jurídico.

A propósito, nenhuma liberdade é absoluta, bom que se diga.

A harmonização dos princípios nos casos concretos, com a proteção de outros direitos fundamentais, sobretudo nos tempos modernos, é frequentemente interpretada de uma forma errônea como censura

No entanto, com o devido respeito ao entendimento em contrário, a conclusão é equivocada, uma vez que a censura pressupõe restrição prévia à manifestação do pensamento ou sanção motivada por juízos meramente ideológico-políticos, o que difere substancialmente da responsabilização por abusos que lesionem direitos alheios.

Uma coisa é a censura, totalmente inadmissível, outra coisa é a responsabilização de pessoas que extrapolam os limites e lesam o direito de outras pessoas. Isso pode ser constatado pelos posicionamentos do STF a respeito da matéria:

esse contexto e de acordo com a precisa e oportuna síntese de Daniel Sarmento, muito embora a posição adotada pelo ministro Carlos Ayres de Britto no julgamento da ADPF 130, quando sustentou que nenhum limite legal poderia ser instituído em relação à liberdade de expressão, pois as limitações existentes seriam apenas aquelas já contempladas no texto constitucional, cabendo tão-somente ao Poder Judiciário fazer as ponderações pertinentes em caso de tensões com outros direitos, o ministro Gilmar Ferreira Mendes, no voto condutor que proferiu no RE 511.961/SP, observou que as restrições à liberdade de expressão em sede legal são admissíveis, desde que visem a promover outros valores e interesses constitucionais também relevantes e respeitem o princípio da proporcionalidade (ROBL FILHO, Ilton; SARLET, Ingo Wolfgang. Estado democrático de direito e os limites da liberdade de expressão na constituição federal de 1988, com destaque para o problema da sua colisão com outros direitos fundamentais, em especial, com os direitos de personalidade. Constituição, Economia e Desenvolvimento: Revista da Academia Brasileira de Direito Constitucional. Curitiba, 2016, vol. 8, n. 14, Jan.-Jun. p. 112-142).

A responsabilização civil ou penal por condutas que excedem os limites da liberdade de expressão representa o exercício legítimo da jurisdição constitucional na proteção de bens jurídicos igualmente fundamentais.

A própria Constituição Federal estabelece limites legítimos à liberdade de expressão em seu Art. 5° por meio dos seguintes incisos: IV - é livre a manifestação do pensamento, sendo vedado o anonimato; V - é assegurado o direito de resposta, proporcional ao agravo, além da indenização por dano material, moral ou à imagem; e X - são invioláveis a intimidade, a vida privada, a honra e a imagem das pessoas, assegurado o direito à indenização pelo dano material ou moral decorrente de sua violação.

Tais limitações constitucionais são reforçadas, ainda, pela legislação infraconstitucional, especialmente pelo Direito Penal, que tipifica como crimes contra a honra as condutas de calúnia, difamação e injúria, todas incompatíveis com o exercício legítimo da liberdade de expressão.

Também se mostra como legítimo limite a proteção da democracia e do Estado de Direito, valores filosóficos e jurídicos estruturantes da ordem constitucional e social brasileira.

Com efeito, não se admite o uso da liberdade de expressão como escudo para discursos que visem à supressão ou erosão dos pilares que sustentam a República - o que também não pode ser confundido com críticas e debates que visem o aperfeiçoamento das instituições e da legislação.

Assim, a responsabilização por excessos no exercício da liberdade de expressão não se confunde com censura ou com qualquer forma de perseguição a determinadas posições políticas.

Trata-se, sim, do resguardo de direitos fundamentais tão relevantes quanto a liberdade de expressão e que devem ser respeitados e protegidos pela jurisdição. É uma medida de ponderação do próprio direito para harmonizar a coexistência de princípios colidentes.

Não se condena ninguém, civil ou criminalmente, por meras opiniões, visões de mundo ou por fazer humor, condena-se pelo abuso da liberdade de expressão quando fere outros direitos fundamentais que merecem igual proteção. Injúria, calúnia e difamação são crimes e ilícitos civis, o que não pode se confundir com exercício de liberdade de expressão.

Trata-se, enfim, de um princípio comezinho de convívio social e jurídico: o exercício de um direito encontra seu limite no respeito aos direitos alheios, ou, em tom coloquial, daquilo que se aprender desde o berço: “seu direito termina onde começa o do outro”.

Roberto Montanari Custódio
Advogado. Professor Universitário. Secretário Geral da Comissão de Defesa do Consumidor da OAB/SP.

Veja mais no portal
cadastre-se, comente, saiba mais

Artigos Mais Lidos

Abertura de empresas e a assinatura do contador: Blindagem ou burocracia?

3/12/2025

Como tornar o ambiente digital mais seguro para crianças?

3/12/2025

Recuperações judiciais em alta em 2025: Quando o mercado nos lembra que agir cedo é um ato de sabedoria

3/12/2025

Seguros de danos, responsabilidade civil e o papel das cooperativas no Brasil

3/12/2025

ADPF do aborto - O poder de legislar é exclusivamente do Congresso Nacional

2/12/2025