Introdução
O desenvolvimento dos centros urbanos e a organização da sociedade em espaços mais restritos representa um desafio social tanto quanto jurídico. A sobreposição de interesses, a inevitável interferência recíproca entre os indivíduos, frustração de legítimas expectativas, o resguardo de direitos e o conflito advindo de conceitos subjetivos são alguns dos elementos que caracterizam a vida em sociedade e são potenciais geradores de litígios que invariavelmente serão submetidos ao Poder Judiciário.
Quando o legislador resolveu regular o relacionamento social no CC, fez constar dispositivo (art. 1.277) que resguarda o indivíduo contra abusos que porventura causem prejuízos à sua segurança, saúde e sossego. Não se preocupou o legislador, assim como em tantos outros dispositivos, de conceituar especificamente o bem jurídico tutelado (e talvez lhe fosse impossível) e principalmente os limites dessa tutela, autorizando, assim, que a defesa desses conceitos dependa essencialmente de noções particulares, e, portanto, subjetivas, e fluídas, na medida em que sofrem influências transversais diversas, inclusive de um dia para o outro.
É bem verdade que o legislador buscou esclarecer minimamente, no parágrafo único, as “interferências” dispostas no caput do art. 1.277, elencando alguns requisitos mínimos de identificação, quais sejam a destinação da propriedade, a localização do imóvel, o zoneamento urbano e os costumes do local. Esses requisitos a serem observados não chegam a debelar a problemática uma vez que, a despeito de sua objetividade, não permitem uma identificação automática da conduta abusiva.
Diante de uma disposição legislativa genérica e que admite uma miríade de condutas como possivelmente violadoras do sossego e de outros bens caros ao ser humano, surge a necessidade de se identificar os limites do pleno exercício da vida em sociedade. O ditado “o seu direito termina onde começa o meu” não serve para apaziguar, em absoluto, a problemática decorrente da vida em sociedade, pois nem a (in)falível sabedoria popular, assim como o legislador, agora formal e expressamente desculpado, foi capaz de estabelecer minimamente os limites do “seu” e do “meu” direito, apaziguando, assim, os conflitos.
Há, então, uma flagrante - e razoável - dúvida acerca do cabimento do que é aceitável, do ponto de vista da norma constante do CC, e do que, sobejando o aceitável, configura abuso. Entra a hermenêutica, que, nas palavras de Carlos Maximiliano1, “tem por objeto o estudo e a sistematização dos processos aplicáveis do direito, para determinar o sentido e o alcance das expressões de direito”. Nesse contexto, a avaliação e interpretação de outras normas pertinentes é de fundamental importância para se delimitar os limites do tolerável.
No mesmo sentido, Pietro de Jesús Lora Alarcón2 expõe que:
“... a função do direito é a ordenação da realidade através de normas que resultam da interpretação dos textos normativos (...) [de modo a] acobertar as diversas manifestações humanas, de forma que seja possível dirigir a sociedade para a superação das suas dificuldades e a conquista de seus objetivos”.
Se o CC não conceituou o sossego e nem criou limites objetivos ao resguardo da paz social na vida comum, o ordenamento jurídico brasileiro dispõe de outras normas que, interpretadas e aplicadas de maneira sistêmica, permitem suprir essa carência, oferecendo um ambiente saudável.
O objetivo do presente artigo é, portanto, promover uma análise sistêmica do ordenamento jurídico brasileiro, abordando os diferentes regramentos disponíveis e que permitem à sociedade o resguardo mínimo da ordem social, garantindo ao indivíduo, ainda que inserido no contexto das relações intersociais, conforto e segurança individuais.
1. O direito ao sossego como direito fundamental
O bem-estar do indivíduo e da sociedade é bem jurídico tutelado em nosso ordenamento. É dever do Estado, portanto, garantir ao cidadão os meios pelos quais seja possível alcançar uma vida digna. O conceito abrangente de dignidade da humana não exclui o direito ao sossego, mas, ao contrário, concede posição de destaque ao incluí-lo na Carta Magna (inciso X do art. 5º), de que a privacidade e intimidade das pessoas é inviolável. Mais adiante, ao tratar do meio ambiente no art. 225, o constituinte consignou que é direito de todos o meio ambiente ecologicamente equilibrado, trazendo a noção de “sadia qualidade de vida” ao texto constitucional.
A vida em sociedade importa na convivência pacífica das pessoas, demandando limites ao exercício do direito de cada um de modo a não ofender, preterir ou mitigar o direito do outro sob pena de configurar abuso. Uma vez que o sossego público é fundamental ao bem-estar e sua violação tem como consequência prejuízo a um número indeterminado de pessoas, fez-se necessário, desde há muito, que o Estado avocasse para si a função de delimitar certos aspectos e condutas da vida cotidiana a bem da paz social.
Em obra que trata da dignidade da pessoa humana, o ministro Luís Roberto Barroso3 afirma que “a dignidade humana tornou-se um dos maiores exemplos de consenso ético do mundo ocidental”. Alerta, contudo, que “a dignidade, como conceito jurídico, funciona como um mero espelho, no qual cada um projeta os seus próprios valores”. Na visão de Sua Excelência, embora conceito de extrema relevância, a dignidade humana não detém uma definição específica. Depara-se, assim, com a mesma problemática relativa ao sossego, ideia abstrata que diferente de indivíduo para indivíduo e de grupo para grupo.
Independentemente da dificuldade de conceituação, é amplamente difundida a noção de que é direito fundamental do ser humano a criação e manutenção, pelos Estados, de mecanismos destinados a garantir e resguardar o sossego e o descanso elementos indispensáveis à saúde e ao pleno desempenho das atividades sociais. A esse respeito, Álvaro Lazzarini4 assim se posiciona:
“A ordem pública, em verdade, é mais fácil de ser sentida do que definida e resulta, no dizer de Salvat, de um conjunto de princípios de ordem superior, políticos, econômicos, morais e algumas vezes religiosos, aos quais uma sociedade considera estreitamente vinculada à existência e conservação da organização social estabelecida. (...)José Cretella Júnior anota que a noção de ordem pública é extremamente vaga e ampla, não se tratando apenas da manutenção da ordem na rua, mas também da manutenção de uma certa ordem moral, o que é básico em direito administrativo, porque, como sustentou com rigor científico, a ordem pública é constituída por um mínimo de condições essenciais a uma vida social conveniente, formando-lhe o fundamento à segurança dos bens e das pessoas, à salubridade e à tranquilidade, revestindo, finalmente, aspectos econômicos (luta contra monopólios, açambarcamento e carestia) e, ainda, estéticos (proteção de lugares e de monumentos)”.
Assim, qualquer conduta que remova o indivíduo de seu estado de sossego e que ultrapasse aquilo razoavelmente tolerável, poderá ser objeto de repressão ou sanção tanto por entes públicos quanto privados, não sendo necessária a intervenção do Poder Judiciário que, em regra, somente toma conhecimento do litígio em situações extremadas. A necessidade de punição do desordeiro é de fundamental importância para a manutenção do ambiente saudável, como reconhece Carlos Henrique Aparecido Rinard5:
“Estabelecido o pressuposto de que a garantia do sossego público traz melhor qualidade de vida às pessoas e de que a sadia qualidade de vida é corolário do princípio da dignidade da pessoa humana, toma-se a punição do poluidor como fator importante para a solução da problemática da poluição sonora”.
É portanto, indiscutível que é fundamental o direito a um ambiente seguro, equilibrado e saudável, sendo passível de sanção a interferência injusta por parte de indivíduos, grupos, instituições ou do próprio Estado.
1.1. Conceitos que envolvem o direito ao sossego
O conceito de sossego, como já exposto, é subjetivo. Segundo o dicionário Michaelis, sossego é o “estado de tranquilidade”, a “ausência de preocupações”. O dicionário Priberam conceitua como “quietação, calma”. O Dicionário Jurídico de De Plácido e Silva6 dispõe que:
“Na terminologia jurídica, entende-se o direito que é a todos assegurado, nas suas horas de descanso ou de recuperação às fadigas do trabalho de não ser perturbado ou molestado em sua tranquilidade (...) O direito ao sossego, assim, estabelece restrição ao direito de outrem de produzir perturbações à tranquilidade alheia”.
O direito ao sossego pode ser compreendido como um verdadeiro direito-dever, vinculado a um imóvel (obrigação propter rem) e aos vizinhos, sendo transmitido aos sucessores a qualquer título, o que confere, também característica de obrigação ambulatória dada a transferência a qualquer pessoa que detenha a posse do imóvel.
O conceito jurídico de sossego perpassa por uma série de conceitos e preceitos, normas e primados nacionais e internacionais, tais como bem-estar, ordem social, meio ambiente equilibrado, paz de espírito. Somente a interpretação sistêmica das normas atinentes, aliada à averiguação do fato, permite o reconhecimento de sua nocividade, que será sancionável somente se ultrapassar os limites da razoabilidade.
A negativa de se impor sanção - pública ou privada -, entretanto, não nega ou afasta a ocorrência da interferência e nem autoriza a insistência ou escalada da situação averiguada. O isolado festejo com música alta e algazarra, o fechamento de uma rua para um evento social eventual, a utilização de fogos de artifício para celebrar uma vitória esportiva não caracteriza, em regra, a interferência. A repetição constante ou acumuladas destas ou de outras condutas, sem dúvida, importarão numa interpretação diversa.
Também é verdade que as interações humanas podem sofrer adequações sem que, necessariamente, sejam estabelecidos conflitos ou aplicadas sanções. Neste ponto, a sensibilidade dos indivíduos envolvidos corrobora para o aumento da civilidade da população. Admitir a limitação aos direitos da posse ou propriedade é uma forma de subsunção à máxima latina jus et obligatio sunt correlata (a todo direito corresponde uma obrigação).
Nesse sentido, ao ensinar sobre a limitação ao Direito constitucional de propriedade, Carlos Alberto Dabus Maluf7 dispõe que:
“Cumpre à norma jurídica (...) limitar os domínios dos proprietários dos prédios contíguos, em favor da harmonia social, reduzindo ao máximo as prováveis discórdias, impondo-lhes um sacrifício que precisa ser suportado para que a convivência social seja possível e para que a propriedade de cada um seja respeitada”.
Maria Helena Diniz8, a despeito de não conceituar especificamente o direito ao sossego, apresenta uma lista de requisitos que, caso presentes, permitem identificar o vilipêndio ao direito da personalidade, são eles:
“a) o grau de tolerabilidade, pois se o incômodo for tolerável o juiz despreza a reclamação da vítima, já que a convivência social, por si só, cria a necessidade de cada um sofrer um pouco; b) a invocação dos usos e costumes locais, afinal não se pode exigir o silêncio da vida campestre em uma megalópole como São Paulo, pois, nesse caso, há uma perda do sossego em detrimento dos benefícios dos grandes centros; c) a natureza do incômodo ao sossego; e, d) a pré-ocupação, mas a anterioridade não é um critério absoluto para verificar o uso nocivo da propriedade”.
Antes de prosseguir na análise da conceituação jurídica de sossego no Direito brasileiro, a seguir serão expostas algumas das espécies de interferências mais comuns na vida em sociedade atual.
Leia o artigo na íntegra.
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1 MAXIMILIANO, Carlos. In Hermenêutica e Aplicação do Direito. 6ª ed. São Paulo: Freitas Bastos, 1957. p. 13.
2 LORA ALARCÓN, Pietro de Jesús. In Ciência política, Estado e direito público: uma introdução ao direito público da contemporaneidade. São Paulo: Verbatin, 2011.
3 BARROSO, Luís Roberto. In A dignidade da Pessoa Humana no Direito constitucional contemporâneo. 1ª Ed. Belo Horizonte: Fórum, 2022. p. 09.
4 LAZZARINI, Álvaro. In Limites do Poder de Polícia. p. 71. Disponível em: . Acesso em: 22 de outubro de 2023.
5 RINARD, Carlos Henrique Aparecido. In Direito Fundamental ao sossego público. Ed. Funjab. Florianópolis. 2012. p. 02.
6 SILVA, De Plácido e. Vocábulo Jurídico. 7ª ed., Rio de Janeiro. ed. Forense, 1982. p. 270.
7 MALUF, Carlos Alberto Dabuz. In. Limitações ao Direito de propriedade. São Paulo, Revista dos Tribunais. 2005. p. 176.
8 DINIZ, Maria Helena. Curso de Direito Civil Brasileiro, 7ª. ed. São Paulo, Saraiva, 1991, p. 181.